quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

E com sorte, o sono.

Respeito os cabarés vazios. Respeito as mesas desarrumadas, os cigarros amassados e o cheiro de rum que exala de cada copo que não se deu por inteiro.

Respeito até mesmo o palco e a cortina, quietos em sua espera de madeira que nenhum Lobo Antunes foi capaz de descrever.

A única coisa que não respeito, é a ausência de nome desse mesmo cabaré e muito menos a ausência de nome de quem cantou nesse cabaré na noite passada.

Se nossa vida é sem sentido, é porque ela tem uma face e não um nome.

Mas como apenas podemos ser no mundo enquanto linguagem, já que distantes disso somos boca de vulcão, os nomes é que me fazem ter respeito tanto pelos cabarés quanto pelas pessoas.

E quando falo em nomes, não falo em honra ou dívidas a pagar. Falo, por outro lado, em identificação, em dizer o que fala e porque fala, já que desde os tempos de Voltaire nos sussurram essa pestana nos ouvidos – e graças a Gutemberg tudo isso se tornou livro.

Imaginar um cabaré vazio a essa hora da madrugada, até me traz uma certa melancolia boa de sentir.

Gosto de pensar nos copos de rum que não se deram por inteiro, nos cigarros amassados pelo chão e nas mesas desarrumadas no desalinho de um abajur vermelho. Gosto também de pensar nas tábuas do palco, na cortina do palco, no pedestal para o microfone do palco, e quem sabe em uma banda que deixou seus instrumentos largados pelos tablados cinzentos do palco, para que na noite seguinte não tivesse de usar nada além das mãos e das gargantas para que o cabaré realmente fosse cabaré, pois sem música sequer vida há.

Essa coisa de cabarés por algum motivo me remete a gêiseres. A razão talvez esteja pela água quente que provém da pedra fria. Ou da pedra fria que brota água quente como o rum na garganta da angústia. Mas como tudo, desde os ópios de Nietzsche, pode ser visto por diversos ângulos, prefiro ficar com a imagem do cabaré silencioso, apenas piscando um neon qualquer por cima de uma biblioteca de bebidas âmbar que Borges não pôde imaginar.

Esse neon ao qual me refiro, com certeza será azul. E será azul porque o som ali cantado na noite recém acabada, foi azul também, como se a Isabella Rossellini
tivesse conhecimento da existência da minha cidade e do cabaré que agora imagino.

Se tudo isso soar clichê ou mera tentativa de pouso em algum lugar, ao menos algo voou, pois o pior da escrita não é o chão e nem é o céu, mas sim o meio termo vago que não admite o próprio nome para dizer o que tem de dizer, acabando por morrer enquanto regava as plantas do jardim.

Tramar discussões qualquer tecelã trama. Inventar tragédias se tornou tão monótono quanto falar de Hamlet. Os jornais nos ditam as regras do dia da mesma forma que os relógios nos ditam as regras das carteiras e das bolsas. Havendo o descompasso entre uma e outra coisa, haverá com certeza um lapso, sendo que nesse lapso o dia não nascerá feliz como um dia quis Cazuza.

Ao contrário, esse lapso nos levará a esse cabaré silencioso, morno pelas coxas que antes roçavam pernas decadentes e jovens que por ali cruzavam. Distante de qualquer sorriso, esse lapso será o segundo no qual aquela namorada antiga nos virou o rosto quando iríamos dar o último beijo e isso nos fez compor uma música sertaneja. Mas de uma ou de outra forma, esse lapso terá um nome, ainda que este nome seja tão raro e de tão difícil compreensão quanto a oficina de Antonius Stradivarius.

Quando o lapso enfim cessar e as bocas puderem voltar ao rum que ficou nos copos, aos cigarros que irão amassar e às mesas que ficarão ainda mais desarrumadas pelo vermelho dos abajures, talvez soe um Dizzy Gillespie pela língua de alguém no palco. Ainda no campo das possibilidades, é provável que alguém traga um teclado e tudo se transforme tão brega quanto um filme dos anos 80 que tenha a Madona por protagonista. E aqui não haverá nenhum Da Vinci. Muito diferente disso, haverá apenas a decadência de um silêncio que deixou de ser, dando espaço para calças que se cruzam e escondem coxas que se querem, fazendo com que a madrugada se torne o lar das decadências que querem chorar mas escondem o choro no fundo dos copos.

Mesmo assim, toda decadência tem um nome. Seja financeira, amorosa, profissional, conseguimos nomear aquilo que nos assola e nos tira do casulo dos travesseiros. O horóscopo pode dizer que iremos sair janela afora na manhã seguinte, mas o fato é que nossas asas deixaram de ser azuis há muito tempo e não existe mais nada a fazer a não ser se contentar com o corpo que temos. E se temos um corpo, isso já é o bastante, pois a partir dele poderemos assistir o Freaks do Tod Browning sabendo que a beleza da pele não é proporcional à beleza do peito.

Sei que falo que tudo se relaciona com tudo para no fim se relacionar com nada. Sei que falo que a trama das palavras é fina demais para suportar a nossa dor. Mas ao menos quando falo, identifico delírios e sonhos em meio a retratos dos cotidianos que vivo, jamais deixando de lado os ares que respiro em prol de devaneios que poderia vir a ter com o chimarrão que todas as noites me acompanha.

Por vezes é possível que as tentativas sejam tão frustradas quanto tiros na lua, como disse Leopoldo Rassier. E ainda que eu não precise me salvar no aconchego do meu pala, me salvo na payada das minhas vozes, entrecortadas por tantos, mas tantos ruídos, que tem dias que me sinto Henry Spence, mesmo que não tenha que cuidar tão bem do meu aquecedor de parede.

Mas talvez seja justamente esse meu erro. Talvez, como Henry Spence, eu tenha que entrever na caixa de correios um espermatozóide que não é. Talvez tenha que jogar xadrez em um palco que não existe e deixar uma cantora avessa ao Gillespie dizer que “no céu tudo está bem”. Meu erro quem sabe esteja em renegar as pequenices que de tão pequenas me escapam, ainda que a cada dia que passe eu olhe os olhos dos cães como quem quer encontrar a pergunta morta dos bichos que a Hilda Hilst decifrou.

Por todos esses motivos, é que respeito os cabarés vazios, é que respeito os inseticidas que não matam e respeito todos esses viciados que o mundo abraça para logo depois tornar apenas adubo. Mas longe de tudo isso, não presto respeito algum àquelas coisas e pessoas que não posso nomear, sabendo que essa minha falta de respeito é mais medo do que qualquer outra coisa, já que, podendo ao menos inventar um nome, seria exatamente isso que faria para então ter a mínima compreensão do que vejo e sinto, porque de anônima basta minha face no espelho pela manhã.

Portanto, que “o dia venha mugindo pra se banhar em água rasa”. Portanto, que os cabarés vazios continuem, pois até o silêncio tem o nome de silêncio porque só existe quando as vozes calam, o que prova que somente a mudez é possível.

No mais, essa profusão de nomes e letras. No mais, essa ausência de sentido que a tudo anima no momento em que nomeia, mas destrói no momento em que significa.

No gelo escasso dos dias, é possível que morramos de hipotermia ainda que exista um último cigarro por amassar.

O bom é que sempre haverá um cabaré e um rum pela metade. E com alguma sorte, talvez alguns braços nos abracem e a solidão do amanhecer seja menos só que o Sol – essa vida que queima insciente da própria morte.

Daí nossa tristeza. Daí nosso rancor. Daí nossa impossibilidade de às vezes cavar no buraco no qual nos encontramos e dar um beijo naquela que há tanto tempo nos acompanha.

Mas tudo sempre será azul como uma borboleta machadiana: basta um piparote e virão as formigas.

Por conta disso o pó não existe: o que existe é a ausência: o que existe é a contínua inalação do nada.

E sem nome, nada há. E sem conversas, nada há, ainda que a órbita de todo assunto gire ao redor do medo de cada um.

Mas hoje fiquemos com esse cabaré vazio, prato deprimente da fome de cada dia que a cada dia queremos saciar e não saciamos.

Fiquemos com nossa sombra por sobre as letras do que não entendemos, porque só isso nos trará os sonhos. E com sorte, o sono.

9 comentários:

Biba disse...

Du, este é o texto mais belo dos que li aqui. Na semiose das palavras você credita ao nomear toda a importância das coisas. Sim, querido Du, sem nomeação tudo se perde, fica sem forma, sem latência, sem rumo. É preciso nomear as coisas, as pessoas, os bichos... Quando estudei Mircea Eliade aprendi sobre isso, eu que procurava entender porque sou Biba quando tenho um nome enorme e alguns me chamam por outros destes nomes. Um nome é tudo. Belo texto e tema.
Beijo grande,
Biba

gloria disse...

esse teu texto é do lugar das mestiçagens, da vibração da mistura, do que não almeja o lugar supostamento puro das explicações. dar um nome é dar um lugar, é passar do plano da invenção, da força bruta do instituinte para as marcas de projeções simbólicas. isso dito de forma conceitual. dar um nome é um rito de acasalamento entre o sentido e as palavras, a coisa e figura. você tece essas linhas nessa bordadura errante, entre o cotidiano que escapa de significação, o silêncio povoado de ditos tantas vezes indecefráveis e os sinais de vida que pulsam nas cenas "marginais". andar por aqui é nomadizar e eu sou uma andarilha, sigo o cheiro que me instiga. bjs

Anônimo disse...

Anônimo que fala de "viagens" depois da meia-noite - Caro Eduardo. Tomo a liberdade de falar isso porque estou convencido de teu potencial enquanto escritor. Vejo nossas páginas virtuais como espaço para a publicação de ensaios , os quais, alguns deles (reescritos até quando não sei...), um dia nos encorajaremos de publicá-los. Claro, ningúem é obrigado a fazer isso. Conheço pessoas que não suportam reescreverem seus escritos... É uma questão pessoal, subjetiva.

adri antunes disse...

a imagem de cabaré, borboletas e vazios me agrada muito! gostei mto do seu texto, menino! dar nome é como dar identidade, se pensarmos racionalmente, mas nomear também é restringir, principalmente com relação aos sentimentos! enfim...hj estou prolixa! acabei de escrever minha dissertação e postei um texto mirado, judiado com gosto de fome de vida real mesmo! ehe! ah, sim, arrumar com biblioteca com alguém junto é sempre uma confusão! a da minha casa tá parecendo um depósito de poesias e prosas, alheias ao sofá que virou cama, ao computador que toca aretha franklin o tempo todo, e ao gato que dorme sempre sobre Kafka!
no mais, sigo esfregando os olhos, um dia ei de ver de verdade!
bjusss

ah, viu wall-e??

Anônimo disse...

Quando encaramos uma oficina literária, a primeira coisa que fazemos é aprender a conviver com a CRÍTICA aos nossos escritos. Considero um passo importante, que vai nos levar à auto-crítica (acho que é um pouco por isso que os escritores dizem que não há um texto pronto/acabado, ele pode ser reescrito sempre). A dificuldade nossa na web é o TEMPO. Um bom texto (e esta não é uma crença apenas minha) precisa, também, do repouso na gaveta, ser "esquecido" e desejado depois... Nos blogs temos pressa. Se não postarmos, perdemos o "leitor". E assim o texto vai "pro ar" meio "cru", afobado. Embora, muitos de nossos textos, quando os lemos algum tempo depois, ainda gostamos deles... Eduardo, poderia dizer isso pessoalmente por e-mail a vc, mas acho legal compartilhar com teus leitores, e saber o que eles pensam disso. De qualquer maneira, acho que a grande vantagem da web é ensaiar nossos escritos antes de torná-los livros. Depois de publicados, aí não tem volta. Já pensou, daqui há alguns anos perambularmos pelos sebos comprando nossos livros, para evitar que as pessoas tenham acesso a eles?!... Foi o que fez o Charles Kiefer, se não me engano, com seu primeiro livro... Bem, já escrevi demais... Perdão pela intromissão... "Nomear é preciso. Viver não é preciso". Abraço do Américo.

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Tô sempre vindo aqui!

Seu blog é muito bom! Parabéns!

Abração.

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Com certeza a urgência nos faz cometer equívocos, quanto mais em meios internáuticos. O texto precisa de maturação assim como nós precisamos de nove meses para nos tornarmos serem humanos viáveis ao mundo, ainda que o mundo nem sempre seja viável para nós. Caso contrário, ocorre como um acidente de carro no qual você se depara, no meio da madrugada com uma família inteira prcisando de socorro: sua intenção é ajudá-los de pronto. Porém, essa ajuda, se não feita com o devido apuro técnico, pode levar algumas pessoas em direção a morte. Com os textos é a mesma coisa e a urgência do mundo atual faz com que corramos tanto, mas tanto, que por vezes tropeçamos em nossas próprias pernas e caímos feito bêbados pelas ruas das nossas palavras. Fica aqui, portanto, meu comentário lato sensu a todos os comentários hoje postados, agradecendo a atenção de todos vocês que comigo compartilham idéias e emoções, e, muito além disso, literatura e arte, já que, ao meu ver, sem tais paradigmas, invencionices cotidianas, não há razão para viver. Um fraterno abraço a todos.

Anônimo disse...

Sono, muito sono. Tentei ler todo seu texto, mas cansei de resistir ao cansaço. Bjos.

Anônimo disse...

Oi, Eduardo. Rebelando-me contra a instituição do silêncio, ainda que saiba que falar é ainda, penosamente, calar, te nomeio com teu nome. Nesse momento, declaro a tua existência, já que a tua presença se impôs.

Hum... Não gosto desse tom.

Mas, mesmo naquele dia com sono, tentando te ler e fechando as cortinas dos olhos, mesmo antes, percebi que somos 'você' ou 'tu', 'moço', 'moça'. Que esse meio que mente proximidade veda o nome, tão difícil de dizer que, quando dito, sai com voz de menino adolescente mudando a voz.

Oi, Eduardo. Tudo bem?

Desafino.

Oi, Eduardo!

Repetir até que seu nome seja meu também. :)

Bjo da Tággidi