sexta-feira, 29 de maio de 2009

Uma Roseira.*

Uma roseira cresce
nas grades brancas da casa
há tempos abandonada.

Ninguém lhe priva de espinhos
ou constrange suas flores
ao apanhar cirandas
no que verte dos cheiros.

Ninguém lhe furta espaço,
ninguém lhe toca ou lhe nota,
e ela, vermelha e verde,
pinta um abraço morno
com tintas lisas e fêmeas.

Mas um dia os dias
irão lhe cobrar razões,
irão lhe tomar perfumes,
irão lhe render estufas,
e ela, vermelha e verde,
não mais será a dona
dos donos mortos da casa
há tempos abandonada.

*Sou viciado em casas abandonadas. A imagem simplesmente me remete a tanta coisa que nem sei o que falar nesse comentário. Hoje queria escrever sobre como consegui algumas comprovações acerca do Princípio da Sincronicidade do Jung ou sobre a razão do último poema aqui postado ter sido dedicado ao Guido Emmel. Entretanto, remexendo alguns escritos antigos, coisa de cinco anos atrás, achei esses versos dando sopa e cheguei a conclusão de que os mesmos seriam mais do que apropriados para este final de maio no qual o frio finalmente chega por esses lados do sul do Brasil. Além disso, estou tremendamente chateado por meu artigo semanal ter saído sem algumas palavras-chave em um jornal aqui da cidade. Porém, perfeição é a última coisa que se pode pedir de mim – quanto mais após essas taças de vinho que me atiçam a mente mas me deixam o corpo no ponto do sono. Por isso, PONTO FINAL. Ah, e com certeza essa fotografia aí em cima veio de Portugal. Só não me perguntem porquê.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Para Guido Emmel.

Me intriga a nota da compra:
perdida, dobrada e suja, marcada por intenção,
me diz pouco de nada ou quase nada de pouco,
ao mencionar alguém que só me chega por nome
e de quem qualquer retrato nem me será lembrança,
pois vai longe aquele ano ali datilografado, e eu,
do tempo impresso, só posso imaginar outros carros
e outros modos que memórias de negativos
projetaram em matinês.

Me intriga essa vida alheia
que cruzou por minhas questões,
sem que eu tivesse tempo
de me certificar da identidade escondida
nas manchas de indicadores que apontaram
mundos num mundo descortinado:
fugas e gases tênues,
nebulosas que são berços,
labirintos espiralados desviando para o vermelho –
talvez bem perto do atalho que me liga ao olhar
impresso em palavras, frases distantes de conclusão,
que silenciam apegos, enervam a noite calma,
do alto de qualquer monte calculando a poesia
dessa coisa sem nome que existe por todo lado
e que está nessas marcas rasas, fracas e apaixonadas,
de um homem quieto que lia estrelas que se apagavam.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Assim me sou mais espelho para desenhar consoantes logo ao sair do banho, suponho.


"O mundo sou eu que nomeio", falei no início de maio, mesmo que não saiba o autor da tirinha acima e nem do que me provoca agora esse rebuliço por dentro. Se eu soubesse, faria alguma diferença? Se a libido é uma forma substanciosa de chamar o desejo ou o tesão, o ímpeto e os gestos que o ímpeto gera são os mesmos para todas as pessoas, com algumas variações de ordem aqui e ali. Por isso é que acho que minha alma não passa de mais um órgão das minhas entranhas. Do contrário, nada disso existiria. Podem fazer a autópsia, dou o aval agora mesmo, mas deixem eu morrer primeiro. Meu coração não suporta mais de um bisturi quando em cada beijo há uma denúncia e cada parcela dos lábios desfralda tão-somente uma carência. Há fome e há necessidade de se ter fome pelo mero gosto da pele. Mas há também o vício vizinho que não se avizinha de nós, deixando a grossa espera de algo que nunca vêm. E calamos enquanto vou embora ao som dos meus pés empacotados no tênis. Fica o salivar na língua que dança e esfaima o catre rubro da boca. Mas nada se pode ver, nada se pode fazer, e ainda há de persistir essa vontade imensa de que tudo torne a ser como jamais nos foi – em cada denúncia, em cada carência, em cada futuro, em cada sonho, seja de um maio nomeado ou não, porque rebuliço por rebuliço, sou um poeta-ouriço: basta admitir, nem que seja para o meu coração se cuidar de mim, já que nem todos os bisturis são de metal e absolutamente todos inexistem sem um par de mãos. Por isso concluo: "o mundo sou eu que nomeio" sim, mas só nomeio o mundo que os outros me nomeiam como mundo. No mais, apenas emponcho vazios em cada palavra dita no anagrama dos amanhãs que sobem dos bueiros da madrugada. Se eu cruzar com um bêbado ou um cachorro, é possível que encontre rostos familiares na fumaça do quase-inverno. Porém, antes da familiaridade dita assim, de plancha, tem que existir a familiaridade conquistada e reiterada comigo mesmo. E essa, para vocês que querem de uma vez o aval para a autópsia já autorizada, ainda não conquistei. Portanto aguardem que enquanto isso me cuido de mim e até durmo de lado. Vai saber se aquela frase dos meus dezesseis anos não me aparece letárgica no teto e me pergunta novamente: "O QUE IMPORTA?". Da última vez, lembro que era Carnaval e que acabei me machucando. Dessa vez, qual é a profundidade do meu mergulho? Se eu soubesse, faria alguma diferença? Até aqui, pelo que percebi, mergulharei de qualquer jeito, como quem pula no Ijuí consciente da fundura que desconhece mas intui pelo mero correr do barro. Espero, contudo, que o poço seja profundo e que eu jamais volte a querer tocar o órgão da minha alma: quero que ele continue com suas palpitações rijas mas flácidas, inquietas mas cálidas, apaixonadas mas tímidas, enovelando pus mas vertendo aquilo que me faz viver. Assim me sou mais espelho para desenhar consoantes logo ao sair do banho, suponho. Afinal, "o mundo sou eu que nomeio" e ninguém mais precisa saber do meu alfabeto. A razão? Maio não acabou. Portanto, pode chover chuva fina nas margens verdes do meu coração: único estribo de mim, desfeito à paciência dos mares porque se sabe unicamente rio em todas as suas veias e caminhos.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Quando não tenho mais cabeça pros meus pés.

Não sei o que pensar da minha vida. Não sei o que sentir sobre minha vida. Apenas penso e sinto minha vida a partir daquilo que vivi e vivo.

Para além ou aquém disso, existe uma infinitude de possibilidades que certamente já estão inscritas no meu presente mas que ainda não pude perceber.

Quando perceberei? Perceberei?

Desconfio há algum tempo do que o Jung chama de sincronicidade. Não que eu queira ser metafísico e abobado como um daqueles roqueiros de Porto Alegre nos idos dos anos setenta. Mas o fato é que certos eventos tem apenas uma relação casual de sentido entre si e não uma relação de causa-efeito, sendo que essa relação casual de sentido é atribuída justamente pelo sentido que abribuímos aos eventos.

Se estamos procurando um apartamento para alugar, ou melhor, andando na rua com o pensamento em um apartamento para alugar, e vemos logo uma placa que diz de um apartamento no qual alguns meses depois você está morando, algo isso deve dizer além de puro acaso. E não é que eu queira atribuir uma definição a tudo. Se quisesse, acreditaria em algo maior e diria que meu destino é pré-estabelecido. Mas apesar de saber do próprio vir-a-ser eterno e incompleto daquilo que sou, desconfio que alguma coisa gira em sincronia com aquilo que penso e sinto e que acaba abraçando todas as pessoas e coisas do Universo.

Que isso é bonito, é. Mas não chega nem perto da 9ª Sinfonia do Beethoven.

Quem me dera ser músico para poder dizer o indizível.
Quem me dera ser mais do que alguém que escreve por necessidade e porque vê na própria linguagem a única possibilidade de ser para além da própria vida. Quem me dera ser o que nunca fui ou serei porque justamente não sou.

Mas não disse acima que no presente existem possibilidades inscritas que sequer percebemos? Mas não disse acima da sincronicidade do Jung, dos roqueiros de Porto Alegre, das partituras do Beethoven?

Tudo me soa interligado demais para estabelecer diferenciações plenas entre uma coisa e outra – entre uma pessoa e outra. Não há hegemonia de saberes assim como não há hegemonia de sentires.

O que há é a hegemonia da própria vida em todos os cantos, jorrando pelos becos das ruas sem nome que nossos peito sequer desconfiava que existiam antes de certas experiências.

Como dar nome para isso?

Domingo desses, acho que dezembro passado, acordei feliz com uma música à Bob Dylan na cabeça. Peguei o violão.

E ela é assim:

Quando não tenho mais cabeça pros meus pés

Já me parece tão normal
Querer algo assim real
Que nunca vai dizer aonde ir
E nesse rumo é que eu sigo
Sabendo que às vezes é preciso
Esquecer de sonhar pra não dormir

Por isso foi que levantei
Sem ter nos olhos qualquer lei
Mas dentro da minha boca a solidão
De saber que amanhecia
Nada mais que mais um dia
Apenas esse sol e o verão

Mas nem por isso me deixei
Levar por isso que eu sei
Porque nem sempre sei o que falar
De tanta coisa que senti
De tanta coisa que eu vi
Ao ponto de sem pontos continuar

Porque o mundo me parece o que é
Quando não tenho mais cabeça pros meus pés
E só me sei sem um horário em qualquer hora
Porque o sentido é um atraso que demora

Até que nós enfim perdemos a paciência
E então dizemos que foi só coincidência
O fato de andarmos mudos ao falar
E tanto ouvirmos sem podermos escutar

Mas não importa o que se diz
Quando se sabe que é feliz
Aquele que não diz e só sorri
Ainda que a foto do sorriso
Seja às vezes um motivo
De uma explosão que está por vir

E neste quadro sem moldura
Mais vale esse pendura
O branco de uma tela de estar
Olhando assim como quem cria
Perto da luz do meio-dia
Para que a noite possa naufragar

Nos olhos de um verde-azulado
De tarde até mesmo alaranjado
Como quem só descasca a razão
E sabe que aquele suco
Antes de ser só um produto
É a prova de que existe um coração

Pulsando forte sob o peito de quem é
Sem um motivo ou razão em qualquer fé
Seguindo apenas com a pressa da paciência
Que sabe que não foi só uma coincidência

Cada encontro em cada rua assim sem nome
Tão deslocada quanto a sorte do pronome
Que só se dá em algum sentido e algum norte
Quando existe uma palavra que dê sorte

Assim como a minha sorte foi traçada
No vento forte que batia na sacada
Enquanto o sol me acordava e me dizia
Que toda vida não passava de um dia

E que por isso entre cantar e só falar
Mais me valia ter a voz para olhar
Todo este mundo que só parece o que é
Quando não tenho mais cabeça pros meus pés


(Preciso dizer mais?

Sim: viverei como um gole d'água em um copo de sol. E isso não é só uma coincidência significativa.)

terça-feira, 19 de maio de 2009

O país dos coitados.

Não somos um país de coitados e nem temos moral pra afirmar isso. Que fomos e ainda somos explorados pelos países do norte durante vários séculos, isso é fato. Que os ídolos da nossa juventude alienada no mais das vezes proferem discursos vazios com face de ideologia burra, isso também é fato. Mas afirmar que por conta disso o Brasil não poderá ter o lugar que merece no cenário mundial é absurdo demais. Entretanto, tendo em vista a própria acomodação do povo brasileiro frente aos fatos do cotidiano, creio que nosso lugar de destaque no cenário mundial é cada vez mais mentiroso do que andam dizendo por aí.

Se o Lula é cumprimentado pelo Obama com ares de bons amigos, vá lá. Mas por qual motivo esse mesmo Lula precisa de uma quase Força Aérea Um se o próprio Primeiro ministro da Inglaterra transita pelo globo com aviões de linha? Sinceramente, tendo em vista as tantas e tamanhas desigualdades sociais que nos acometem, isso chega a ser arquerozo de tão perverso.

Claro que existem programas governamentais que criam condições de sobrevivência para as famílias mais pobres. Mas quando a concessão desses programas governamentais no mais das vezes necessita do aval das prefeituras de certos municípios, acabamos por cair na própria falta de coitadice do nosso povo. E por quê? Porque nosso povo é bem mais malandro do que coitado, sendo que esse discurso de que somos um país emergente que integra o que insistem em chamar de Terceiro Mundo, também não passa de uma canalhice.

Se um policial abordar alguém na rua por conta de uma infração de trânsito, é óbvio que alguns irão buscar meios de não serem multados por vias que não passam por nenhum padrão ético e moral. E se é assim, como queremos exigir ética e moral dos nossos governantes, os quais, e disso não me esqueço, dizem até que é chique emprestar dinheiro para o FMI? A depravação e a malandrice do povo brasileiro não tem limites.

Que existem pessoas trabalhadoras e honestas, existem. Mas o fato é que essas pessoas, de tanta sacanagem que todos os dias vêem, ficam se perguntando se realmente vale a pena ser trabalhador e honesto e então acabam por cair na malandrice e na canalhice cara ao nosso povo. E aqui não estou falando daquele malandro do Chico Buarque que passa o dia ganhando trocados em mesas de bilhar. Aqui estou falando daquele malandro que se aproveita dos outros, que mente para os outros, que passa a perna nos outros com o único intuito de se dar bem. Afinal, se tantos “boludos” fazem o que a lei não permite, por qual motivo o povo não poderia fazer o mesmo? Por isso que repito que a corrupção governamental tanto municipal quanto estadual e federal não passa de um reflexo da própria cultura brasileira.

Desde que os portugueses e espanhóis chegaram por aqui, essa cultura se instalou e tomou a face do chamado “jeitinho brasileiro”. Mas esse “jeitinho brasileiro” nada mais é do que um modo bondoso de chamar imoralidade e falta de ética de valor cultural ou o que o seja. E por falar em cultura, quem lê um livro ao invés de ficar assistindo os supostos costumes da Índia na novela das oito? E se lê um livro, que livro lê? Zíbia Gasparetto? Paulo Coelho? Augusto Cury? Lair Ribeiro? Dan Brown? Isso tudo não passa de pura literatura escapista, de pura fuga da realidade, de pura droga que está diretamente relacionada com o próprio crack que anda correndo solto pelas ruas de Santo Ângelo. A única diferença é que se uns matam seus neurônios com uma fumaça tóxica, outros matam seus neurônios com uma cultura besta.

Logo, que não nos façamos de coitados porque coitados não somos. Que fomos explorados, fomos sim. E que ainda somos explorados, somos sim. Mas de quê adianta a constatação desse fato se notícias cobrem notícias e sempre aparece um assassinato da hora pra todo mundo ficar indignado e no dia seguinte esquecer de tudo porque tem que trabalhar por uns trocados para sobreviver? A imbecilidade humana não tem limites. E o único futuro do brasil, como bem disse Olavo de Carvalho, é a perpetuação do Imbecil Coletivo, o qual, da escola à universidade, apenas repassa aos cidadãos uma suposta cultura pausterizada que em nada está para a própria compreensão da realidade.

Somos ainda reféns da Europa e dos Estados Unidos em nossos olhos e ouvidos. Somos ainda reféns de um “jeitinho brasileiro” que é canalha e sacana por natureza. E enquanto não houver uma mudança cultural efetiva em todos esses campos que se dizem detentores do saber e portanto podem vir a ser formadores de opinião, nada disso irá mudar. Continuaremos a ser um país de coitados que, antes de serem coitados, estão mais para bandidos do que qualquer outra coisa. E não me venham falar que um Deus nos salvará. Nossa moral e ética nem com Ele deve estar de bem.

domingo, 17 de maio de 2009

Pela garganta da noite.

Silencia minha voz pela garganta da noite. Na fronteira das estrelas a solidão do que sou. Deixo o campo no horizonte do presente dessas horas. Me aqueço com o fogo calmo de anteontem. Há muito senti dias como suor pelo corpo. Só me resta disso ausência que é pele da memória. Trago pouco comigo pois quase nada sobrou. E os anos hoje me calam antes do sol nascer.

Madruguei com água fria os olhos cheios de lua, porque me deu na veneta de deixar a porta aberta pra que ali da cozinha a janela mostrasse a idéia do que era o céu de um meio de maio.

Quando meus pés rangeram as tábuas brutas do assoalho, ouvi ao longe o canto de uma coruja acordada. Um vento semeava folhas com geadas e amanheceres – e venezianas sopravam chiados frios visitantes.

Apaguei todas as luzes, puxei os panos da cama, mas antes de me deitar e me confundir com as coisas, divisei no meu encalço o caminho do luar desenhando minha sombra. Vi contornos nublados, precisos e verticais, que estancavam o óleo de traços fracos medidos.

Um medo estranho, um anseio, um desejo da minha face nas poucas cinzas do chão, fez meu cotidiano passo verter pulso diverso na casa acostumada. Dei largo ao gesto impensado de feiras e de semanas com o sono sem chave que o inverno abraçou.

Dormi como quem acorda, abri um mundo fechado – e um sol de brilho incolor uniu em nó a corrente do que se passou em mim.

Me afoguei no açude que fica perto daqui. Moldei os dedos no barro de uns peixes invisíveis. Pulmões, coração pesado fluindo sangue de um poço à beira de secar na corda que rompia e que cortava as palavras. Não busquei movimento ou qualquer reação. Soltei membro por membro na angústia que me tomava. Havia uma força nas costas, havia uma força no ventre, havia uma força em mim que dizia ser a entrega o único rumo livre. Sussurrava tão suave, em tons de resposta e consolo, que percebi a pergunta minando pouco a pouco na voz vaga do peito. Por mais que eu não soubesse qual era a interrogação, o imenso de mim disse frases feitas de um suspiro – e o corpo sentiu o lodo que saía dos poros.

Um astro surgiu no alto, secou a terra molhada, o sal tumultuou minha língua, turvou o gosto da lama – e pedras de um deserto brotaram então afiadas como flores sem vida.

Me vi de areia e dor jogado no infinito, rastejando em direção a uma luz distante. A boca já saturada era carne e mosca sem qualquer distinção entre presa e predador.

Os pontos ao meu redor não inspiravam nascer senão pelo couro gasto, de rugas, mapas e vales, que um lagarto exibia fora de sua toca. Tinha um ar de esfinge na simulada estátua daquela sua aspereza.

Movi os tornozelos para que os joelhos apoiassem os metros que haviam de ser vencidos palmo por palmo. Então um riso impreciso que não se sabia grito, corou meu rosto de fome – mas com felicidade.

Pensei transitar cidades, interiores, divisas – e quando a escuridão caiu por cima daquilo, olhei para trás o nada que havia percorrido.

Foi coisa de lua, eu sei. Não cruzo mais limites. Não presta colher verde o que se come vermelho. Eu devia ter freado o que me tomou inteiro. Se fosse assim não teria despertado desse jeito. Não teria corrido, esbarrado no sofá para ver no espelho aquele que sempre fui. Não teria depois me flagrado com o que agora devora o sossego que persegui. Mas não adianta remorso – e tudo já transbordou nas nuvens que sangram mais um amanhecer.

A água, a falta dela, o fim lado a lado, a dupla monotonia de pequeno intervalo, cobriu com um sonho aquilo que eu escondia nas penas do meu próprio leito.

Como pode ser possível a minha maré virar os corais de um repouso? Como pode a represa de repente ceder ao peso de uma visão?

Nem sei se existe resposta. Então me sento e calo nesta madrugada pouca sorvendo quieto a mágoa na bomba do chimarrão.

Talvez meu engano todo não passe de um respingo, de uma toada fraca em meio a todo esse caos. Mas quis me encontrar promessa em qualquer desejo meu e não divisei os vãos daquilo que realizei.

Então meu sonho é vida, minha condição de fim – e só posso erguer este muro com minhas velhas lembranças que silenciam minha voz pela garganta da noite.

sábado, 16 de maio de 2009

O que é pior: solidão na terra ou no mar?

O que é pior: solidão na terra ou no mar?

Somos estátuas contemplando o vazio.

Talvez esculturas existam por isso e ninguém as compreenda.

É dolorido demais ficar frente a frente consigo.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Lembrava de quando jogava pac man.

Lembrava de quando jogava pac man.

Lembrava de quando jogava pac man porque não gostava mais de jogar vídeo-game depois que não mais se jogava pac man. Até sabia que poderia baixar de algum site o pac man antigo, aquele com tela azul e bichinhos amarelos. Mas não fazia sentido jogar o pac man antigo na tela de um computador novo. Não seria como jogar pac man na tela da televisão do tempo em que jogava pac man. Por isso perdeu o sono naquela noite. Talvez isso não fosse motivo para perder o sono, mas o fato de não mais poder jogar pac man na tela da televisão antiga era muito mais do que simplesmente isso. As coisas sempre eram muito mais do que fazer ou não fazer e sempre eram muito menos do que fazer. Se fossem simplesmente fazer, OK. Se fossem simplesmente não fazer, OK também. Mas havia algo que se perdia no fato de não mais poder fazer aquilo que lembrava, porque lembrar, apesar de estar para viver o que se viveu nem que seja na lembrança, já é perder demais. É perder demais porque se lembra. E por isso tentou não lembrar mais de quando jogava pac man.

Quis lembrar de quando deixou de jogar pac man.

Quis lembrar de quando deixou de jogar pac man porque era difícil lembrar de quando jogava pac man. Mas lembrar de quando deixou de jogar pac man também era pensar quando jogava pac man, porque dizia de uma perda. Dizia de uma perda de quando jogava pac man. Mas quando deixou de jogar pac man? O pac man continuava a existir quando deixou de jogar pac man, então a sua escolha não estava para a inexistência do pac man. Talvez tivesse deixado de jogar pac man porque surgiu um outro jogo interessante. E por mais que gostasse de jogar pac man, o outro jogo era mais interessante que pac man. Talvez porque houvessem mais cores do que o azul da tela e os bichinhos amarelos. Azul e amarelo podem estar para uma flor e para o céu. Mas naquela lembrança estavam para a televisão e para o jogo. E por mais que todos os dias as flores podem estar para o céu, sua lembrança não suportava lembrar do azul e do amarelo do pac man. E por isso decidiu lembrar de quando deixou de jogar pac man.

Quis lembrar de quando deixou de jogar pac man e por que havia deixado de jogar pac man.

Quis lembrar de quando deixou de jogar pac man e porque havia deixado de jogar pac man porque só lembrar de quando jogava e de quando deixara de jogar não explicava tudo. Por mais que tentasse ou objetivamente isso pudesse explicar tudo através de uma afirmação e de uma negação, uma afirmação e uma negação explicam as coisas de maneira muito rasa, explicam os fatos de maneira muito escassa. O SIM e o NÃO são apenas um SIM e um NÃO. Um OK é apenas um OK. Mas com relação a quê ou ao quê esse SIM e esse NÃO e quem sabe este OK estão? Foi aí que lembrou do computador. Foi aí que lembrou do primeiro OK quando os computadores ainda nem liam CD.

Então lembrou do primeiro disquete.

Lembrou do primeiro disquete que era grande e que não guardava tantos dados quanto guardava um CD de música naquela época. Talvez nem guardasse o pac man. Quantos Kbytes cabiam naquele disquete? Era um disquete grande, negro, opaco. Era feito de opacidade. Uns textos guardava. Uns textos curtos que eram feitos também em uma tela azul mas de letras brancas. Se também eram feitos em uma tela azul, assim como o pac man, que relação guardavam esses textos feitos em uma tela azul com letras brancas com o próprio pac man? Talvez fossem como nuvens. Como nuvens que estavam no céu perto de uma flor amarela e perto do azul do céu. Mas não era disso que ele falava naquele tempo.

Por isso lembrou que falava de coisas negras naquele tempo.

Falava de coisas negras. Sim, falava de coisas negras. Mas o que eram coisas negras? As coisas negras realmente eram negras para ele naquele momento em que ele falava de coisas negras na tela azul e com letras brancas? Não, as coisas não eram negras. As coisas negras que ele falava eram coisas negras apenas a partir da lembrança que ele tinha de que eram coisas negras. Naquele tempo que ele falava coisas negras as coisas não eram coisas negras. Eram palavras brancas. Eram palavras brancas em uma tela azul que de certo modo estavam relacionadas com os bichinhos amarelos. Algumas coisas comiam. Algumas coisas recusavam comer. Mas haviam também fantasmas.

E ele lembrou que os fantasmas eram brancos.

Ele lembrou que os fantasmas eram brancos porque os bichinhos eram amarelos e porque as letras que ele falava no computador no tempo em que escrevia na tela azul com letras brancas eram negras. Então haviam quatro cores. Havia o azul, havia o amarelo, havia o branco e havia o negro. Azul era o céu e era a tela. Amarelos eram os bichinhos e eram as flores. Brancas eram as letras e eram os fantasmas que perseguiam os bichinhos. E as coisas que ele falava eram negras, mas só eram negras porque ele lembrava que eram negras e de alguma forma elas eram negras apenas no agora de ele lembrar que elas eram negras. Naquele tempo que ele falava elas não eram negras. Mas o que ele falava? Ele falava de si. Ou do que pensava de si

Foi aí que se deu conta de que ele falava de si com letras brancas.

Ele falava de si com letras brancas coisas que eram negras. Coisas que eram negras ele falava de si com letras brancas. Assim como os fantasmas que perseguiam os bichinhos amarelos eram brancos, ele falava de coisas negras com letras brancas. Quem sabe as coisas eram negras na lembrança apenas porque haviam os fantasmas brancos. E fantasmas brancos talvez também queiram devorar flores amarelas assim como devoram os bichinhos amarelos do pac man. Mas quais eram as coisas brancas que poderiam devorar as flores amarelas? Talvez as nuvens.

E notou, quase em lembrança, que as nuvens eram brancas.

Lembrou e notou que as nuvens eram brancas porque o céu era azul e porque os fantasmas do pac man eram brancos. E as nuvens que eram brancas traziam chuva para as flores que eram amarelas e que faziam essas flores crescerem. Mas às vezes as nuvens que eram brancas se tornavam negras e acabavam com as flores que eram amarelas porque choviam demais. Choviam demais porque estavam carregadas demais. E o sol que também era amarelo com o tempo fazia as flores amarelas se tornarem brancas. Ou amarelo-queimado. Amarelo-queimado por água. E água congelada queima.

Mas água congelada também gela. Além de chover de nuvens negras, água congelada também gela, e se gela, gela branca.

Mas se água congelada além de gelar queima, o que a água congela? A água congela a lembrança das coisas negras mas também torna as coisas brancas negras caso queime. Caso queime de maneira ártica, as coisas, com certeza, passam a ser negras, mesmo que em algum momento houvessem sido brancas. E a tela no final sempre era negra. A tela no final sempre era negra e ainda que dissesse algo bom, continuaria a ser negra, para em algum momento simplesmente apagar. E por fim os bichinhos do pac man, fossem eles os bichinhos amarelos ou os fantasmas brancos, que, de qualquer forma, não deixavam de ser bichinhos, ainda que mortos. Talvez inclusive fossem bichinhos amarelos mortos que queriam, agora brancos, devorar seus antigos semelhantes.

E era de um antigamente de uns vinte anos que ele lembrava ao lembrar que jogava pac man.

Lembrava que jogava pac man e um dia o jogo acabou e ele correu para o pai pedir para o pai ligar de novo o jogo que ele não sabia ligar de novo.

Mas o pai ligava? Nem sempre o pai ligava.

Às vezes o pai dizia que era hora de ir dormir. Naquele dia o pai disse que era hora de dormir.

É hora de ir dormir, disse o pai, a escola, a escola.

Então ele foi dormir e quando acordou sentiu vontade de dizer coisas negras com letras brancas na tela azul do computador que tinha um disquete grande e negro no qual não cabia o pac man.

Pai, o disquete é grande mas é pequeno.

Pai, o disquete precisa ser maior, disse no dia seguinte.

Ou isso foi depois?

Mas o fato é que tempo acabou e o disquete diminuiu. E acabou tanto o tempo que o disquete se foi. Do disquete veio o CD que antes trazia apenas música. Com o tempo o disquete passou a inexistir e existia apenas o CD que agora trazia filmes.

E o CD que agora trazia filmes era um espelho. E o CD que agora trazia filmes também trazia coisas negras porque ele gostava de riscar coisas vermelhas e negras no CD que agora trazia filmes.

Os nomes dos filmes é que eram negros mas eram escritos em vermelho. Até que um dia cansou desses nomes e fez tudo envermelhecer. E já havia passado algum tempo desde o tempo em que ele jogava pac man. Mas as coisas brancas não existiam mais e agora eram apenas coisas negras e ele não mais queria pedir para o pai ligar o jogo que ele não sabia ligar. O pai apenas teria outro, isso que pensava. Outro que pediria para jogar pac man e talvez não escrevesse coisas negras em letras brancas mas coisas brancas em letras negras.

E lembrasse algum dia que um dia jogava pac man. Mas fosse outro.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

É possível que exista uma oportunidade.

É possível que exista uma oportunidade.

Contudo, o fato de haver de um lado a possibilidade e de outro a oportunidade, considerando que tais termos giram em torno da própria existência, denota tanto a incerteza do antes quanto a incerteza do depois, sendo que há apenas um agora que se reveste de presente entre as indefinições do passado e do futuro.

Se realmente somos um hiato entre dois nadas, é entre a possibilidade de sermos e a oportunidade do que viremos a ser que residimos.

Porém, ao passo que nos encontramos nesse impasse de desconfiança eterna dentro da nossa finitude, concentramo-nos, no mais das vezes, em infernos de exatidão que apenas travestem nossa existência com traços matemáticos que em nada estão para a própria existência.

Se os números e as formas são a condição de possibilidade da linguagem, e portanto do humano, há como conceber a dicção dos números e das formas sem o uso da linguagem?

Obviamente não.

Lastrar aspectos formais da percepção humana tanto na matemática quanto na geometria, como queria Kant, é sintoma de uma concepção limitada do ser humano, visto que adstringe seu adjetivo mais intrínseco à frieza dos números e das formas.

Se residimos em um presente que se encontra entre a possibilidade e a oportunidade dispondo da linguagem para dizer da nossa existência, configurando-se esta, sumariamente, como um hiato entre dois nadas, já que, se por um lado tem a indefinição da possibilidade, por outro tem a angústia da oportunidade, ao mesmo tempo que somos um hiato entre dois nadas também estamos suspensos no próprio nada, já que teremos que construir nossa vida a partir da possibilidade/oportunidade de existir.

Entretanto, apesar de termos a possibilidade/oportunidade como portos que possibilitam essa construção, a própria possibilidade já traz consigo uma gama de fatores que indicam a possibilidade da possibilidade, isto é, para uma coisa ser possível outra coisa deve ser possível e assim sucessivamente.

Desta maneira, nossa construção se dará mais no viés da oportunidade que no viés da possibilidade, considerando-se, porém, que é a partir desta que traçaremos o que seremos.

Tendo possíveis passados erguemos oportunos futuros a partir da indefinição e da angústia que habita nosso presente.

Se somos, somos agora.

Não há forma que comporte o ser humano assim como não há espaço que comporte o tempo.

A existência, contudo, é o tempo.

Se é possível que exista uma oportunidade, é agora, e não no passado ou no futuro, que essa possibilidade fará o intercâmbio com essa oportunidade para erigir em substância viva.

Nossa forma é nosso corpo, mas a percepção que provém do cognoscibilidade do cognoscível não é apenas conhecimento.

Se o fato do coração bater implica no batimento, o fato de sentirmos implica no sentimento. E é o sentimento que traçará o que o conhecimento sempre procurará moldar.

O corpo é a forma do ser humano
assim como o tempo é o lugar do ser humano.

Conseqüentemente, entre nadas estamos suspensos no nada.

A oportunidade talvez seja a consciência da pele, pois não há como pensar sem ter os pés cravamos no chão, mas sabendo que a mesma matéria que compõe o chão compõe o universo e também nosso corpo.

Por isso é preciso sentir o tempo da terra, o tempo do cosmo, o tempo do corpo.

Por isso é preciso saber-se parte e todo ao mesmo tempo.

Por isso é preciso reafirmar o lugar que habitamos falando do lugar que habitamos e é preciso ser e vir-a-ser ao mesmo tempo, pois tudo é presente no campo das oportunidades e um presente no campo das possibilidades.

Nossa grandeza é o segundo que não percebemos infinitamente dividido pelo que somos, pois aponta para a possibilidade da oportunidade de viver esse segundo sem perceber esse segundo ao pensar esse segundo quando da divisão desse segundo pelo que somos.

A qualidade do ser humano é o tempo.

Mas é entre reticências, entretanto, que somos.

Se a reticência é o nada, antes de apenas riscarmos o vazio, arrisquemo-nos a ser a partir do que somos – ou seja: a partir de agora.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Uma fluorescente nos incendeia o rosto.

Nascemos. Uma fluorescente nos incendeia o rosto. Um frio no toca as pálpebras não abertas. Alguém nos desprende e sentimos dor. Alguém no bate e sentimos ar. Como conseqüência, gritamos.

Nascemos. Continuamos nos braços de alguém. Nos colocam em uma bacia de água morna. Nossos membros se mexem em convulsão. Nos tocam. Nos limpam. Fazem com que nosso ventre deixe de ter um sentido. Como conseqüência, existimos.

Nascemos. Somos enrolados em uma toalha felpuda. Existe um conforto que não está para o frio das pálpebras e nem para o calor da fluorescente. Aos poucos a retina se acostuma com a luz. Como conseqüência, percebemos.

Nascemos. Uma pessoa nos pega com cuidado. Nos deitam em uma cama ao lado dessa pessoa. Vemos com os olhos recém abertos o que chamaremos de rosto no futuro. Então sentimos uma necessidade que vem da boca. Como conseqüência, choramos.

E se gritamos, existimos, percebemos e choramos nos minutos que se seguem ao nosso nascimento, é porque a próxima etapa será falarmos, pois apesar de nos depararmos com rostos sem-nome em cada esquina, é necessário que um nome seja dado a tudo isso. Caso contrário, não há mais nada, visto que as etapas anteriores já foram vencidas.

Por baixo desse cotidiano de ponteiros, porém, existe uma dança que aprendemos logo ao nascer.

Nossos membros que em convulsão se movem, dão uma pista dessa dança. Nossas pálpebras que no útero se contraem em sonho e mistério, mas no mundo se contraem em pleno frio, também dão pistas dessa dança.

E enquanto não aceitarmos a total ausência de sentido para tudo que não esteja para essa dança, falaremos sem parar daquilo que não sabemos mas que se encontra na raiz da própria fala.

Todo o mais é um ritual profano e divino. Todo o mais convulsiona sêmen e terra em uma mística que traz do cosmo a semente da própria vida.

Se hoje nascemos no incêndio das fluorescentes para depois sermos enrolados em toalhas felpudas, ontem nascíamos na terra, nas folhas, com o cordão umbilical se misturando à placenta recém despovoada no canteiro de alguma casa, seja de barro, madeira ou pedra.

E o tempo?

Começa quando falamos. Começa quando vemos tantos sem-nome se dirigir a nós, que somos obrigados a fazer algo além de gritar, existir, perceber e chorar. Começa quando, ao nomear as coisas, envelhecemos nossa história e o nosso próprio rosto envelhece por pura ilusão dos passos dessa dança que aprendemos mas da qual não queremos saber.

Então morremos.

Morremos sem encontrar sentido algum além daquela dança dos membros e das pálpebras. Morremos entre o sexo e a morbidez do cheiro que exala das entranhas. Morremos sem qualquer compreensão daquilo que vivemos, daquilo pelo quê choramos, daquilo tudo que sentimos.

Não houve nenhum porque no incêndio dos olhos pela fluorescente da sala de cirurgia.

Somente houve um porque para a necessidade da boca.

Essa boca, antes de morrer, irá procurar outras bocas, irá sugar outras bocas, desejará ir além da palavra em outras bocas justamente para gritar, perceber, chorar e existir antes de falar. E por isso essa boca trará consigo a presença da eterna ausência, de um saciar que não sacia, de um ventre que perdeu o sentido quando foi separado daquela que lhe deu a vida, pois amar também é uma forma de fome:

- Eu te fome assim como tu me fome. – e é isso.

Biológicos? Só se for pela comida e pelo desejo.

No mais, apenas o que falamos e apenas o que passamos enquanto falamos para morrermos. História e linguagem: nossa constituição fundamental. Afora esses siameses, ossos e carne para assim sem mais morrermos.

Além? Não, seria demais pedir um além. E seria canalhice dizer que alguém pode ter contato com esse além.

Se nascemos gritando para existir e se existimos para perceber e depois chorar, somente as palavras poderiam ser este além. Antes disso, a dança das pálpebras em sonho e dos membros em convulsão e nada mais. Portanto, nosso messias maior é o verbo, filho da dança e do mistério ao qual jamais teremos acesso mas mesmo assim ouviremos.

Desta maneira, nossa única possibilidade é a ação, pois na inação da morte os microorganismos farão sua parte.

E como naquele nascimento de ontem, voltaremos para a terra.

Afinal, nascemos.

E mesmo assim o mundo continuará a dançar a dança da qual morreremos desconfiando sem jamais aprender.

domingo, 10 de maio de 2009

CANTO ANTIGO.

Se a ampulheta dos dias quebra na areia do tempo,
envidraçando as horas no deserto do agora.

Se o sopro dos anos anula minhas certezas
no calor da imagem perdida de um espelho esfacelado.

Se existe somente o brilho fugidio
de uma estrela temerosa entre o vazio e o fim.

Se pulsa no peito a palavra, o sangue e a voz
emudecendo o ruído de uma agonia que respira.

E se chegar até mim a doença de um passado
construído e erguido com recortes do presente,
quero saber o porque dos meus passos para trás
que avançam sem querer pela rua onde diviso
as parcelas do que fui em seqüências sem razão
que a luz de poucos postes faz chegar aos meus olhos.

Quero ter a nitidez de primeiro olhar o mundo
para só depois saber que o mundo olha pra mim.

Quero a paz de tardes quietas, de praças e de abraços
percorridos pelos passos das flores que estão no chão.

Quero o sabor da minha vida no paladar dos meus rumos.

Quero a lembrança e a certeza de saber que já senti.

Quero entrever momentos de silêncios e suspiros
que só corações molhados pelas chuvas de verão
podem recriar em cenas tão reais que são em sonho.

Quero ter para mim o que amei e vivi –
o que disse a pessoas que nunca mais pude ver.

Quero instantes pequenos com cheiro de doce e riso –
e quero também as coisas que jamais quis desejar.

Mas acima de tudo quero voltar a ser o que fui
quando nada de mim era ação, verbo e corpo.

E quero então saber que minha história só existiu
porque ao sol o infinito resolveu se fazer tempo.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O gaúcho da Avenida Brasil.

O gaúcho sentava no meio-fio da Avenida Brasil. A Justiça Federal estava fechada porque era sábado. Os carros e os ônibus que passavam certamente iam para a Fenamilho. Enquanto isso, sol de seca no céu, uma placa de PARE fazia companhia para o gaúcho que não era um gaúcho desses que acha que tradição é vestir a pilcha uma vez por ano na Semana Farroupilha. Ao contrário disso, era um gaúcho negro, barba negra por fazer, palheiro encostado na boca e dois litros de vinho para amansar um mal desconhecido.

Ele não acenava para os passantes como uma pedinte da Praça Rio Branco nos dias do Fórum da Juventude. Também não tinha o semblante sério e desiludido de um sujeito que senta nas muretas de um terreno abandonado da Avenida Getúlio Vargas – e nem mesmo tinha algo a ver com um senhor que implora trocados na Rua 25 de Julho. Distante desses rostos, limitava sua ação à quietude do palheiro e do vinho, biquiando de quando em quando o copo plástico de sua calma.

Cruzando por ali com umas sacolas de mercado, pensei que deveria ter uma câmera fotográfica em mãos. Bem poderia usar a câmera do celular, mas nunca fui de confiar em nada que tenha mais de duas funções. É claro que isso é rabugentice ou quem sabe burrice, mas ninguém que prefere a voz do Google à mudez inquieta das bibliotecas tem o direito de me questionar ou dizer da desrazão das minhas manias.

O fato é que o gaúcho não merecia uma foto de celular. Talvez merecesse um Bresson ou os olhos do Iberê, sendo que de forma alguma o visor do meu telefone teria alguma dignidade para sua imagem. E como sou das letras, das palavras sem voz que facultam meu querer desde a 1ª Série do Ensino Fundamental e do beabá da Professora Marlene nos idos do Odão, me restam essas frases desmerecidas de talento mas impregnadas do que senti – o que bem pode esbarrar na profecia do Gide ao dizer que com belos sentimentos se faz má literatura.

Entretanto, aqui cabem duas perguntas: a) tive um belo sentimento?; b) faço literatura? Diante desses conceitos, prefiro me calar. A palavra está além do pensamento e o sentimento está além da palavra. Com alguma sorte e talento, o porão das frases, aquele que sempre abriga o duplo do Jaime Vaz Brasil, pode traduzir a linguagem desse silêncio. Mas como a sorte apenas me acompanha em alguns momentos de dormência, não interessa nada do meu irrequieto umbigo. Por isso volto ao gaúcho, seu palheiro e seu vinho de garrafa verde.

Então seria mais um desgarrado do Sérgio Napp e do Mario Barbará? Então viriam crianças gritar “o louco! o louco!” como na poesia do Cenair? Tudo isso tem e não tem sentido diante daquela imagem. Fosse eu outro, apenas diria que era um mendigo enchendo a cara na rua. Mas sendo eu esse que fala até das manchas de um muro de limo, isto para parafrasear Quintana, é impossível que o sol de sábado diga somente o casual e cínico juízo da maioria que cruzava e tornava o gaúcho um mero recorte invisível do dia dois de maio.

Confesso que senti vontade de conversar com ele. Sempre fui despachado demais com as línguas das minhas falas. Mas atrapalhar aquela introspecção de vinho e palheiro, seria atrapalhar o desconhecido de um sentir e me igualar a alguns vereadores que pensam que sopões em vilas são garantia de voto. Por isso segui meu rumo com as sacolas na mão. E antes de não mais olhar para o gaúcho, percebi que a placa de PARE era um aviso para mim. Assim é que cheguei em casa, puxei uns papéis velhos da escrivaninha e me surgiram essas frases.

Compadecimento? Pena? Comiseração? Nada disso. Apenas um recorte da vida. Apenas a vida de alguém que jamais voltarei a ver, mas que agora habita meu sentir escrito. Qual vampiro, sugo o sangue do real em uma transfusão contínua para o meu tédio e o meu peito. E após essa depravação de verbos e adjetivos, me calo. Afinal, como disse Vinícius de Moraes, hoje é sábado. E justamente por isso, o gaúcho tem o direito da calma, do palheiro e do vinho no meio-fio da Avenida Brasil, porque a vida, antes de ser um juízo, uma razão ou uma fala, nada mais é que vida.

Além do mais, Marcia Tiburi já falou que os moradores de rua são o inconsciente da cidade. Logo, fica a pergunta, caros santoangelenses:

DE QUAL MAL PADECEMOS?

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Pensei que era uma estrela no maio recém nascido.

Pensei que era uma estrela no maio recém nascido.

Até esbocei um pedido lembrando de quem não fui.

Mas quando sombras passaram por trás das nuvens, percebi que era só um morcego.

Ou será que eram outras aves de noite morta?

O fato é que a pergunta não traz nenhuma resposta e tudo quanto direi será só um orbitar ao redor do que não sei.

Por isso é que desisti de qualquer consideração.

Se foram morcegos ou estrelas, que diferença faz?

Em tempos em que o tempo desconfia até da vida, nos quais cantamos o medo das coisas e das pessoas, como poderei tecer pedidos nesta madrugada?

Há somente um desejo que a natureza agride quando sai da própria boca.

E se essa fumaça foi o mote do meu erro, não guardo qualquer grilo, ainda mais quando eles não existem nesta parte da cidade.

Talvez se eu fosse longe, para os campos amanhecidos, a realidade seria outra.

Mas isso é só uma divagação.

Divagação também foi quando aos oito anos joguei moedas em uma fonte de Curitiba para achar um osso de dinossauro.

O que eu queria descobrir?

Queria acaso encontrar a fonte do que não fui em fósseis que a terra deu pra esconder?

Não: fico com as nuvens, ao menos hoje aos meus vinte e quatro.

E se pensei o diverso, estrela, nuvem, morcego, não faz diferença alguma.

O mundo sou eu que nomeio, mesmo que o final nunca traga um ponto.