quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O JOGO.

Acordou do amor. Queria lembrar dos braços dele. Não conseguia. Queria lembrar das mãos, dos cabelos. Não conseguia. Lembrava um rosto estranho que quanto mais próximo, mais distante ia. Havia aprendido jogos que escondem cartas debaixo da manga. Mas sempre fora às claras. Se uma briga ir madrugada adentro, com pratos voando pela janela, ótimo. Mas se as coisas forem feitas como se faz em escritórios, tornando o sentimento uma questão corporativa, pedia a conta. Relações não são contratos, ainda que a conveniência dite as normas de tudo.

Mas como pedir o fim? Chegar com um “acabamos”? Seguir os conselhos da Cláudia ou da Nova? Nada parecia real. Tudo tinha cheiro dos argumentos dele, ironias que detinham coices, coices que detinham afagos e afagos adiados pelo horário e pela filha que morava noutra cidade.

O dia era cor de chumbo quando deu partida no carro. Havia neblina por detrás dos morros. Talvez aquilo dissesse algo: a neblina também era cinza. Mas ela sabia que coisas não dizem nada além delas mesmas. Entrar nesse jogo de relacionar tudo com tudo, seria idêntico ao pôquer no qual se encontrava sua vida. Esqueceu ou tentou esquecer desses detalhes, ignorando as piscadelas que a memória queria escavar.

Como manhã e domingo, com certeza ele estaria dormindo. Pela madrugada havia enchido a cara, dado fiasco ao cantar no palco de um pub qualquer e transado com “alguém fim de festa”. Mas havia acontecido ou tudo era tão sem lógica quanto a neblina atrás dos morros? Não passava de suposição. Mas toda loucura têm raiz naquilo que se supõe.

Quando chegou, desligou o motor e o suor das mãos. Desceu, caminhou pela calçada que separava o jardim da porta. Ao apertar a campainha pela primeira vez, ninguém atendeu. Esperou, apertou novamente. Ninguém. Colou o polegar no botão e foi aí que ouviu uns passos perto da porta.

“Sim?”, disse um homem nos seus setenta anos, vestindo bermuda xadrez e camiseta de campanha de vereador. “O senhor mora aqui?”, perguntou. “Sim.”, respondeu o velho com cara sonada, cabelos brancos espetados pelo travesseiro, braços com manchas roxas, rosto molhado pelo tapa frio da água.

Ela franziu a testa, olhou para baixo e depois para o número da casa. 985. Não era engano. Há um ano freqüentava aquele lugar. Final de semana sim, final não. Até nos dias da semana, quando o trabalho gerava o despudor do pós-trabalho e o remédio para a tristeza era sexo e cerveja, às vezes estava ali.

“A senhora deseja alguma coisa?”, quis saber o outro, coçando olhos de sono com costas de mãos transparentes. “Não...”, disse rouca, “acho que me enganei de número...”.

Voltou devagar, pela calçada, separando o jardim da porta. Já não queria o fim. Queria um começo. Imaginava um recomeço sem conhecimento seguro, exato do quê. Por que ele não estava na casa lilás 985? Por que saiu de lá de uma hora para outra? Puxou o celular da bolsa. Telefone dele desligado. Entrou no carro como entrando num lugar pela primeira vez. Sabia só que era manhã e domingo e tudo cinza. A neblina dos morros era falta de cor como seu carro cinzento. Tudo o mais, ausente. Por qual motivo não estava? E o celular desligado? Tudo era mudez. Fumaça em lâmpada fosca. Carta debaixo da manga. Suspensão na véspera de um golpe.

Quem sabe seu amar tivesse estancado, de tanto guardado, de um guardar avarento, sem porque, tudo jogado. Quem sabe nem árvores existissem e tudo não passasse de mera coincidência que brota da mesma forma que feijão do algodão dos jardins de infância de abandono espontâneo. Quem sabe tivesse demorado demais e tudo se tornara pálido, cartas marcadas, previsível. O amor, como um blefe, envelhecera antes de descer à mesa do jogo.

Conhecer todas as regras cinzenta.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

CINCO FACES DE UM ENTARDECER.


Dedo na lâmina dos dias. Língua no gume das auroras. Vidro no tapete do destino. Face ao quebra-cabeça do espelho. Rastejando, carne e osso, chorar lágrimas que abrem garimpos nas cavidades do olhar que perdeu a si mesmo na distância que de si o separava. Nada virá: o pássaro continuará com os órgãos de suas asas por sobre ramagens e abismos que de longe parecem chama, mas são joelhos afiados por pedras e junções. Pouco esperar a não ser raios refletidos na terra. Vapores indizíveis maculam certeza e descaso. O indicador alheio é mais que solidão ou imagem narcisa. Desarmado, impressentido em pêlos e sêmen, beija feridas e sorri, eliminando a sombra dos passos na enxaqueca do presente que a tudo consome e confunde.


Extremo em declive e fosso. Mas também extremo em braços que batem o vazio das águas. “Pra onde?”, é a voz de alguém antecipando fatalidade. E na gangrena que queima, algum olhar no horizonte de plano e linha. Se nós e sedas irão cruzar um com o outro, não sabe. Se queixas podem ou não afetar futuros, não faz idéia. Bolores do tempo não pernoitarão seu sono. Trovões continuarão. Haverá prédios, ruas, riscos e satélites. Nas cócegas dos pulmões, arejados por culpa inocente, permanecerá. No peito somente estrelas do mar.


Caso, acaso: planície tenra de costas tortuosas. Caules dentre caules no vigor de cordas que massas criam. Juncos de lama e viço na fissura das pedras. É lilás a copa que vê. O pássaro é um quase-caminho para o que não sabe. Alça morada ao infinito que teme. Um fio mínimo sustenta a argamassa do entardecer. Cala com naco úmido o que era puro banho em seus cabelos. Assusta a pena que coça e já se duvida ciente. Mel não lhe escorre nem aspira velhice de dias e fumaças. Apenas ônus de um frescor furtado. Baforada infantil que logo passa.


Brilho. Lustre. Manchas cor-de-fome no corpo do desconhecido. Nos dias festivos ou quando há parafina, um canal do acaso pretende flores vermelhas altivas e orvalhadas onde só musgo verde e escorregadio pode nascer. Escada de nuvens modulando o eco de troncos agora tolhidos. Acena náufrago na torrente do asfalto. Cruza o areal da rua em incompletude que ofusca. Sombras correm por corredores de casas que não mais são. Calcam óleo e querosene em toda madeira que tenha intenção ao longe. Réstia de vela e música de alguma estrela ou planeta. Amnésia e cura que a tudo responde. Portanto vá mas volte, pois aquilo que alisa e limpa pode cair nesse exato delicado toque.


Brutalidade e chama. Esparrama atalho fugaz. Insinua farol do nada na certeza da lenha. A intenção da imagem pela imagem não se alcança. Mas algo gritou quando todos dormiram. No murmurar rouco de uma fonte avessa, soletrou luz negra de um passado calcário no mosaico das constelações. Beleza na curva de um rio de saliva, suor e sangue. Quando sonhou, divisou no silêncio o lamento da foto viva na lareira da sala. Seria imprecisão áspera e verídica de um beijo impossível. E seria homem: lâmina, fosso, acaso, lustre e chama de entardecer.

Crédito da imagem: Fran Setim, foto simples feita de um telhado. Ao entardecer, ouvindo Beethoven. “Beethoven é crepuscular”, diz ela.