sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

E é isso que sinto com O Cheiro do Ralo.

A ralo é o catalizador dos cheiros. Mas é um daqueles catalizadores de Voyage 84 à álcool. Ou seja: fede pra caramba e nos dias frios demora pra pegar no tranco.

Foi isso que senti ao assistir O Cheiro do Ralo, dirigido por Heitor Dhalia e baseado na obra homônima de Lourenço Mutarelli.

Não que eu queira comparar o filme ao saudoso carro dos tempos Sarney. Longe disso, quero apenas dizer que tudo que entra, deve sair por algum lugar. E tudo que sai, por força da ação/reação do Newton, deve entrar por outro. Porém, se o primeiro fotograma do filme está para uma bunda em movimento, bunda esta que carrega uma bermudinha de paraíso, e o segundo fotograma do filme está para um boteco no qual o protagonista, o Lourenço, vai comer um xis-qualquer-coisa todos os dias para tarar na bunda da garçonete, que é a mesma da bermudinha de paraíso, a premissa dos meus argumentos não deve estar errada.

E desconfio que ela está muito menos errada, quando descubro que o Lourenço é dono de um comércio no qual compra coisas usadas de qualquer um que aparece, para revender coisas usadas a quaisquer outros que apareçam. O problema, ou a ascenóide dramática, como disseram certa vez uns jurados de um festival de teatro que detonaram com a minha peça porque ela não tinha a tal de ascenóide dramática, coisa que o Stanislavsky inventou, surge quando o ralo do banheiro do comércio do Lourenço começa a transpirar um odor horrível.

Ou melhor e pra ficar mais claro: um horrível cheiro de merda.

Ou um cheiro de merda horrível e todas as variações de costume.

A partir daí, inicia todo transtorno do personagem, o qual, sempre associando o ralo à bunda e a bunda à garçonete da bermudinha de paraíso, entra em um transtorno tão grande que quase é linchado por populares que desconfiam que uma das suas clientes havia sido violentada sexualmente – quando na verdade só queria vender os prazeres do seu corpo por uns trocados. A sorte do Lourenço é que a muvuca toda esvoaça ao som de uns tiros do seu segurança, um sujeito gay de bom gosto, visto que compra baralhos de mulheres nuas pra jogar um pôquer que só imaginar imagino – e ainda por cima com medo de imaginar.

É lógico que essa premissa toda incorre em mil outras premissas em suas entrelinhas. Mas o que me chama atenção no cinema, não é ficar discorrendo sociologicamente sobre quaisquer filmes ou mesmo encontrar ponteios metafísicos em uma obra. O que me chama atenção é o trato da imagem e o trato da luz que sob a imagem incorre. Se a fotografia é a arte de desenhar com a luz, o cinema é a própria luz em movimento, sendo que sem o cinematógrafo, o qual também só é pela luz, nenhum filme se daria. Portanto, é a partir desta abordagem, ainda que acima tenha feito um breve dissertar sobre o filme, que tento alcançar esta obra que acabo de assistir.

Em primeiro lugar, o cenário vintage, construindo um passado do qual lembramos mas ao qual não conseguimos tocar com a memória, muito me chamou atenção. Até mesmo pelas pin-ups que aparecem no filme: a primeira uma garçonete, aquela da bermudinha de paraíso, e a segunda uma aparente drogada louca por uns trocamos e uma seringa, o que se evidencia pelo fato de que o último objeto que ela tenta vender para o Lourenço, é um prato desses que os viciados do mundo separam monte a monte os montes do seu caixão.

Em segundo lugar, a câmera no mais das vezes parada, mais focada na escuridão que na luz ou no lusco-fusco de escuridão e luz que envolve o próprio Lourenço, muito me chamou atenção. Se não fosse assim, ele não declararia por tantas vezes que não gosta de ninguém, que não gosta da sua mãe e nem da mulher que abandonou quando os convites para o casamento já estavam na gráfica. Seria neurótico o Lourenço? Essa câmera revela mais do Selton Melo, no caso o Lourenço, do que ele imagina. A voz baixa e quase rouca do personagem, turco ao enésimo grau ao ponto de ter dinheiro nas caixas de charutos que já fumou por cima da sua mesa de contador decadente, dá o tom dessa imagem vintage e lusco-fosca, denunciadora de um mundo que talvez esteja pra ruir e por isso mesmo beire o irreal e o absurdo.

Em terceiro e último lugar, é de se dizer que os cenários se resumem ao local onde o Lourenço trabalha, ao bar da garçonete com bermudinha de paraíso e à casa do Lourenço. No mais, apenas Lourenço andando pela rua ao som de uns dissonantes rocks atuais, os quais parecem buscar o pop mas destruir o próprio pop a cada batida de guitarra. Talvez isso também diga do fato de que único cenário nitidamente iluminado do filme é o banheiro, aquele mesmo do qual provém o cheiro do ralo, o qual, como o olho incômodo que o Lourenço comprou das mãos de um cliente que anteriormente havia lhe oferecido uma arma, insiste em se manter ciente de tudo, como se o olfato, o único dos sentidos plenamente indescritível, fosse o que mais valesse em toda essa obra – e justamente por isso perturbasse tanto.

Essas minhas considerações, bem sei, e devem saber todos que me lêem, não passam de algumas impressões sobre o filme, o qual com certeza traz coisas bem mais profundas em suas entrelinhas e bordas. O próprio fato do Lourenço dizer a certa altura que com o olho que comprara de um cliente e com a prótese japonesa que comprara de outro (prótese de uma perna, friso), conseguiria construir seu pai, o qual supostamente morreu na Segunda Guerra Mundial, já renderia uma tese. Tese dessas que diz que a mentira é uma imagem e a imagem é uma mentira, como me falou certa vez uma professora psicanalista: “o cinema é totalmente inconsciente, Eduardo”. Mas como falei acima, prefiro não me ater a esses detalhes, mas sim às impressões que esses detalhes todos me proporcionaram.

O mais interessante de tudo, é que da primeira vez na qual a bunda da garçonete aparece sem a bermudinha de paraíso, aparece com uma calça toda branca, sendo que o único lugar totalmente iluminado do filme é o banheiro do comércio do Lourenço, lugar do qual o ralo transpira um horrível cheiro de merda ou um cheiro de merda horrível. Se o autor e o diretor estavam querendo falar que empilhamos quinquilharias em nossas vidas sem sentir o cheiro que sai das nossas próprias bundas, das quais escorrega parte do lixo de tudo aquilo que comemos, não sei. Mas chego a acreditar que tanto a lanchonete da garçonete com bermudinha de paraíso quanto o banheiro do comércio do Lourenço, sejam o mesmo lugar e por isso mesmo tenham apenas algumas ruas decadentes, ao som de rocks que querem ser pop mas não o são, ligando um ao outro.

Se o Lourenço compra e vende quinquilharias materiais e a garçonete esgana o estômago de todos com um xis-qualquer-coisa e um arco de costas para dar os ares da sua bunda, alguma coisa existe nessa confusão toda, que de tão confusa chega beirar o irreal justamente por mostrar uma realidade que desmorona.
Talvez por isso hajam disparos que querem se aproximar do ralo no final, sendo que tais disparos tem a ver com olhos postiços e bundas de pin-ups decadentes, as quais, pelo menos nos últimos minutos, são banhadas por umas lágrimas que os óculos não deixam escorrer, e portanto são artificiais.

Talvez o próprio ralo seja o olho e a prótese que o Lourenço comprou tentando construir seu pai que morreu na Segunda Guerra Mundial, o que é pura mentira.

Talvez nosso cheiro bom, de perfumes e sabonetes, seja o banho que não poderemos tomar quando enfim morrermos.

E o olho, então, seja o infinito fedor daquilo que nossa civilização construiu com o decorrer dos anos, empilhando coisas como se fossem corpos e corpos como se fossem coisas.

Aliás, lembro que meu avô tinha um Voyage 84. Fedia pra caramba. Sorte que ele vendeu. Só que não sei pra quem, apesar de lembrar que o pesar da venda foi como se despir frente a uma multidão: a vergonha é mais que vergonha e passa a ser a única realidade viável.

Surge então uma via-crucis ao som de David Bowie, na qual o ralo é o olho e o olho é o ralo, visto que a merda, basta a gente olhar ao redor, está por todos os lados. E chego a desconfiar que a bunda é o único paraíso, ainda mais se não for só bermudinha.

E é isso que sinto com O Cheiro do Ralo.

2 comentários:

Biba disse...

Eduardo, muito interessante como você discorre sobre o filme, pegando elementos (signos) como a bunda da garota, o olho, o ralo, etc. Seu comentário me chamou atenção porque dou aula de cinema e peço aos alunos que analisem obras que indico. No final, eles devem apresentar um comentário. Raramente veem coisas assim, os significados, que é o que você busca. Geralmente me deparo com a história sendo contada tal qual é. Ficamos o semestre todo buscando os significados e mesmo assim nem todos conseguem ver alguma coisa para além da história do filme. Você faz uma boa leitura, centrada em pontos essenciais à obra. Gostei.
Bju
Carpe Diem!!!

adri antunes disse...

olá, vi o filme sim! vi no cinema! e a propósito, como fui aluna da Biba, sou uma completa apaixonada por cinema! paixão aliás, que nasceu das aulas dela! gostei muito da sua leitura do filme! além de tudo o que vc destacou ou colocaria apenas mais um ponto em análise: o Lourenço é quem fede! ele é o próprio cheiro do ralo! ele é o cara podre! é um cara que vive das podridões dos outros e chega uma hora que como vc bem destacou, o cheiro começa a ficar insuportável!
um filme mto bem feito! aliás, tu sabia que ele foi feito todo na sequencia? se não estou enganada eles filmaram tudo em 30 dias, na sequencia da montagem! show, né?
ah, tem um outro filme do diretor que é mto bom, Du, "nina", é um filme experimental baseado em crime e castigo. tu já viu? vale mto! um bjuuu grande
ah, sim, nunca te falei nada de mim, né..., pois é, sou repórter de tv.
bj