sábado, 28 de fevereiro de 2009

E minhas desculpas nada sinceras.

Ninguém nunca me disse nada como você me disse naquele bar.

Lembro que escorria uma baba pelo canto da sua boca e que você sugava essa baba cigarro após cigarro. Lembro dos seus óculos grossos e da sua camisa azul-bebê. E lembro também que disse para você que seus problemas poderiam ser resolvidos lendo Fernando Pessoa. Mas hoje me dói não saber quem você é e não ter pagado mais algumas cervejas para você.

Você me contou que trabalhou no exército como engenheiro e que estava aposentado. Contou também que havia se divorciado e seus filhos não tinham mais contato com você. De vez em quando uma filha de Curitiba vinha lhe visitar. Fora isso era só você, sua aposentadoria e alguns serviços, os quais se tornavam cada vez mais escassos.

Confesso que cheguei a pensar que você achou que eu era bicha. Cheguei a pensar que você achou que eu conversava com você porque queria transar com você seja da forma que fosse. Mas apesar de ter pensado isso enquanto conversava com você, a cada palavra notava que de alguma forma eu poderia ajudar você e que não importava se você quisesse me comer ou quisesse que eu comesse você.

Se isso tivesse acontecido, aliás, eu não lembraria dessas palavras e minha vida talvez tivesse tomado um rumo completamente diferente. Quem sabe o mesmo ocorresse com a sua vida e existe até a possibilidade de que estivéssemos hoje morando juntos. Afinal, você me disse que gostava de literatura e eu sempre puxo conversa em bar com quem fala que gosta de literatura.

E como fui muito franco com você, talvez você não se deu por conta de que eu gosto é de mulheres e que homens não me interessam. Se um dia me interessarem, admitirei sem problemas. Mas hoje e naquele tempo, homens não me interessam a não ser para parcerias dentre cervejas e para amigos dentre conversas.

Porém, felizmente ou infelizmente, lembrando de você agora, vejo seus olhos cansados e amarelados por detrás dos óculos grossos, sua camisa azul-bebê amassada, o cigarro queimando seus dedos e a cerveja escorrendo água pela mesa da Brahma. Mas principalmente vejo você sugando aquela baba do canto da boca cigarro após cigarro.

Você me contou que fez muitas coisas erradas na vida e eu não lembro das coisas que você me contou. Mas lembro que você me contou que errou com seus filhos e com sua ex-mulher e que hoje se sentia completamente sozinho. Disse que de vez em quando pagava umas putas da Avenida Brasil e que isso era o máximo de amor que sentia. Além dessas putas, seu amor estava guardado nas fotografias.

O estranho é que não lembro se você falou que sentia algum arrependimento pelos seus erros. Lembro que você disse do seu apartamento empoeirado. Lembro da dúzia de cervejas que tomamos. Lembro que eu disse pra você ir pegar um Fernando Pessoa na Biblioteca Pública. Lembro da sua camisa azul-bebê e dos seus olhos cansados e amarelados. Mas não lembro de nenhum arrependimento em tudo que ouvi de você.

Como se passaram mais de cinco anos, talvez você nem esteja vivo e eu esteja inventando memórias. Talvez você tenha morrido e estas palavras se direcionem tão-somente ao nada, o que invariavelmente aconteceria, porque ainda que você esteja vivo, temos de convir que ler Fernando Pessoa não irá resolver nenhum problema seu. O que falei foi somente pra você deixar de se sentir sozinho e sentir que alguém já sentiu tudo aquilo que você sentia. Em cada cigarro e cerveja que compartilhamos, foi exatamente essa minha intenção. Se você percebeu isso, não sei. O que sei é que fui embora feliz naquela madrugada quase-manhã, pois pensei que havia ajudado alguém.

Mas é possível que alguém ajude alguém? É possível que tudo quanto falei para você tenha se perdido na ressaca que você teve? Chego a pensar que se você achou que eu era bicha, talvez tenha até se masturbado pensando em mim quando chegou em casa. Porém tenho de confessar que sua baba escorrendo pelo canto da boca era extremamente repulsiva e não sei como não vomitei ao ouvir aquilo chiado de lábios que não se continha cigarro após cigarro.

Hoje eu posso dizer que estou bem. Já quanto a você, não posso dizer nada. Lembro apenas que nossa conversa aconteceu em um Bar chamado Farroupilha em um mês de inverno de uns cinco anos atrás ou mais. Além disso, lembro que havia ido em uma festa no Clube Gaúcho e que estava um tanto exaltado por um Bukowski que havia lido há tarde. Mas o que me deixa tranqüilo é que eu não lhe indiquei Bukowski, mas sim Fernando Pessoa.

Ou será que isso foi um erro?

O Bukowski começa Hollywood com o seguinte parágrafo:

“Eu morava num conjunto de casas populares na Carlton Way, perto da Wersten. Tinha cinqüenta e oito anos e ainda tentava ser escritor profissional e vencer na vida apenas com a máquina de escrever. Iniciara esse curioso meio de vida aos cinqüenta anos. Mas não se pode viver sempre escrevendo, e havia muito espaço a preencher. Eu o preenchia com uísque, cerveja e mulheres. Acabei me enchendo da maioria das mulheres e me concentrei no uísque e na cerveja.”

Já o Pessoa começa Mensagem com o seguinte texto:

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso; viver não é preciso.
Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e (a minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tornou o misticismo da nossa Raça.”

Em primeiro lugar, duas considerações: Fernando Pessoa era poeta e Bukowski era romancista, apesar de ter publicado alguma poesia.

Em segundo lugar, mais duas considerações: Fernando Pessoa era português e Bukowski era americano.

Em terceiro lugar, as últimas duas considerações: Mensagem do Pessoa não tem nada a ver com Hollywood do Bukowski.

Mas por qual motivo então essa duas obras me vêm às mãos quando lembro de você que sugava baba cigarro após cigarro e deixava a água escorrer do copo de cerveja na mesa da Brahma?

Talvez na verdade, enquanto você estava para o Bukowski que há tarde eu havia lido, eu estava para o Pessoa que toda noite lia e continuo lendo. Talvez enquanto você estava no amor das putas da Avenida Brasil, eu estava madrugando em algum livro ou escrevendo algum poema que jamais publicarei. Por isso é que talvez eu tenha feito um grande mal a você, porque a verdade é que tentei passar para você uma receita de mim.

Disse para você ler Pessoa. Disse para você não se sentir sozinho no mundo porque todos se sentiam sozinhos no mundo. E ouvi todas as suas histórias para esquecer de todas as suas histórias e lembrar apenas da repulsa que senti pela sua baba e pelos seus dedos queimados pelo cigarro.

Disse tanto para você, que hoje vejo que queria que você simplesmente tentasse compreender o mundo como eu compreendo. Queria apenas que você soubesse que as vozes estão por todas as partes e que se estamos sozinhos, ao menos nas ruas existem pessoas. Queria que alguém ouvisse alguns conselhos adolescentes e tivesse seus cinqüenta e poucos anos ouvindo os conselhos adolescentes de um Estudante de Direito. Queria que a lembrança do meu ego se transformasse no pó do seu apartamento e que talvez você até roubasse todos os livros do Fernando Pessoa da Biblioteca Pública.

E foi por conta disso que voltei feliz para casa, pensando que havia ajudado alguém, quando na verdade havia apenas falado do meu egoísmo, da minha falta de compreensão do outro e da minha extrema dificuldade em sair de mim ao tentar entender o outro.

Portanto, meu caro senhor, muito embora certamente você não lembre de mim, peço desculpas pelas minhas palavras. Peço desculpas pelos meus ouvidos e pela minha boca e até mesmo por você ter se aberto comigo da forma como se abriu. Talvez você tenha se enforcado no dia seguinte por culpa minha. Talvez sua vida tenha mudado completamente no dia seguinte por culpa minha. Mas fatos são fatos e o fato é que você certamente acordou de ressaca e apenas lembrou que um rapaz falou bastante do Fernando Pessoa em um Bar chamado Farroupilha e que isso foi tudo. O fato é que você certamente até pensou em ir na Biblioteca Pública, mas também pensou que um livro é apenas um livro e não uma pessoa, mesmo que eu desconfie que tenha prometido escrever um livro sobre sua história.

Se prometi, novamente peço desculpas, meu caro senhor, pois o máximo que escreverei sobre sua história serão essas frases que estão chegando ao fim. Talvez o futuro me traga algo, mas se eu for trabalhar somente com possibilidades, cairei na completa loucura. Afinal, talvez agora você esteja morto assim como eu agora esteja escrevendo.

E foi apenas aí que Pessoa e Bukowski ao mesmo tempo.

E por quê?

Porque as faces da solidão jamais podem ser sós. Sempre existem fotografias e apartamentos empoeirados. Sempre existe a angústia de ser e a saudade feita de pedra que jamais desmontará o passado. Sempre existe a engenharia do ontem construindo o prédio do hoje e os alicerces do amanhã. E sempre existem as mulheres que nos visitam nas memórias de camas e berços.

E o que sempre lembrarei, é que escorria uma baba pelo canto da sua boca e que você sugava essa baba cigarro após cigarro e eu sentia repulsa daquilo tudo e não compreendia você. Mas mesmo assim voltei para casa feliz. Até pensei que uma árvore seca pudesse ser o retrato do sol que nascia. Mas logo senti nojo de você e tudo se perdeu na decadência de mim. Restaram somente essas linhas. E minhas desculpas nada sinceras.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ao modo de Sá Carneiro.

Ontem passei a madrugada lendo Mário de Sá Carneiro e me saiu esse poema que tem o cheiro da sua métrica. Nunca pensei em publicar poemas por aqui, mas hoje certa realização incerta me comove ao saber que de certo modo compartilhei sua voz lusa com minha voz gaúcha e rouca de mate. Fiquei tão feliz que não dormi a noite toda, passei o dia na correria, cheguei em casa cansado, capotei às oito da noite e acordei agora pra tomar um banho e passar alguns produtos nesse meu rosto, o qual, apesar de contabilizar tão-somente vinte e quatro anos, já guarda as marcas desse mundo corrido que nos incute olheiras e neuroses dia após dia, fazendo com que as pernas por vezes tropecem em si mesmas na urgência extrema da tortura dos relógios. Da qualidade do poema não posso falar nada. Mas o mero fato da felicidade que senti ao escrevê-lo, já me dá razões mais do que plausíveis para por aqui postá-lo, ainda que isso seja mais questão de vaidade do que qualquer outra coisa. Mas certa vez um conhecido me disse que Napoleão falava que o mundo é feito de vaidade e egoísmo. Da realidade da sua premissa, nada posso falar, mas se a felicidade é o que nos dá um pouco de sossego nessa humanidade desvairada, ao menos assim temos um up manhã após manhã, conflito após conflito, fazendo com que nossos abacaxis, como disse uma amiga, se tornem mais salada que abacaxis e portanto se tornem arte.

Ao modo de Sá Carneiro.

Existe uma dor de assombro em tudo aquilo que faço:
se me vejo, me refaço, nervoso no meu transtorno.
Nada me diz ou sussurra um remédio pr’este mal,
o qual, além impingir mil inconstâncias vis,
me coloca no nariz um certo ar de palhaço.

Mas o que faço se desço dessas mesas nas quais subo?!
Se subo é porque conheço as palavras que direi!
E ainda que o que direi seja pura nostalgia,
que se faça a alegria desses males que tracei!

Nos bares e nas esquinas, tramo pernas como vidas:
subo ruas cambaleantes que transtornam meu planeta.
Se sei que o teto gira, por que o Sol há de girar?
Qual o motivo de estrelas, se sei que vou apagar?

Mas não! Não é para tanto! A vida tem os seus risos!
Por exemplo: esses livros que tenho aqui na estante,
são as palavras estanques que eu deveria ter lido.

Deveria mas não li por pura preguiça e pirraça,
porque tenho achado graça dessa gente que escreve
e que em versos transcreve desassossegos banais
que por certo seus iguais sentem mais mas não expelem.

E por que é que deveriam cantar ao mundo seus gritos,
se os gritos do mundo bastam pra acordar os vizinhos?

(Hã... são todos grandes sozinhos!)

Os galos que se anunciam não são meus amanheceres,
mas nem por isso quereres deixaram de me habitar
distantes de qualquer bar mas perto dos meus viveres.

E confesso que as lembranças são mais vivas na saudade
e que essa mocidade mais consome do que ri.
Se num canto alguém beijo, noutro canto me mato,
nem que seja como pato daquela lá que traí.
Porém não há de ser belo um canto sem qualquer dor,
já que dizem que o amor é assim assim com ela.

Portanto, pra encurtar essas palavras sem nexo,
só predigo que o sexo é a razão do meu estar.
Se ao amanhecer chimarreio o gosto de erva e chá,
é porque não existem lençóis para eu me enrolar.

Na verdade os poetas, escritores ou o que o valham,
que cantam suas proezas nas línguas dos sete mares,
são recalcados vazios de vasta imaginação,
que na solidão dos sótãos se masturbam nalgum colchão.

Já eu, que aqui confesso, minha completa negação,
entre o nada e o tudo, prefiro alguma palavra.
Por isso meus dedos caem, de cara, peito e cabelo,
esperando que além de pêlos minha escrita tenha alma.
Mas não essas almas chulas que andam pelos botecos,
fazendo com que garrafas sejam mais que uns tarecos.

Quero minh’alma limpa, ao modo de Sá Carneiro,
pra quê este fevereiro não me acabe com transtornos
e pra quê o ano todo seja assim tão igual
quanto essa insônia banal que me fez fugir do sono.

Completo assim o meu canto que de cantar só tem nome,
porque nenhum verso insone vale mais que uma joaninha,
dessas vermelhas e pretas que nos sobem pelas mãos
e que certa vez minha mãe disse que trazem sorte.

Assim, joaninhas do mundo, vermelhas, pretas ou verdes,
caiam por sobre as redes de todas as minhas palavras!
Façam com que as bocas de cada linha que traço,
sejam mais que um passo e um mergulho no nada!

Tragam pra mim a sorte de encontros inesperados,
de feriados e compassos que sequer imaginei,
fazendo do meu assombro algo mais que lembrança
e trazendo alguma esperança pra este que já nem sei.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

E com sorte, o sono.

Respeito os cabarés vazios. Respeito as mesas desarrumadas, os cigarros amassados e o cheiro de rum que exala de cada copo que não se deu por inteiro.

Respeito até mesmo o palco e a cortina, quietos em sua espera de madeira que nenhum Lobo Antunes foi capaz de descrever.

A única coisa que não respeito, é a ausência de nome desse mesmo cabaré e muito menos a ausência de nome de quem cantou nesse cabaré na noite passada.

Se nossa vida é sem sentido, é porque ela tem uma face e não um nome.

Mas como apenas podemos ser no mundo enquanto linguagem, já que distantes disso somos boca de vulcão, os nomes é que me fazem ter respeito tanto pelos cabarés quanto pelas pessoas.

E quando falo em nomes, não falo em honra ou dívidas a pagar. Falo, por outro lado, em identificação, em dizer o que fala e porque fala, já que desde os tempos de Voltaire nos sussurram essa pestana nos ouvidos – e graças a Gutemberg tudo isso se tornou livro.

Imaginar um cabaré vazio a essa hora da madrugada, até me traz uma certa melancolia boa de sentir.

Gosto de pensar nos copos de rum que não se deram por inteiro, nos cigarros amassados pelo chão e nas mesas desarrumadas no desalinho de um abajur vermelho. Gosto também de pensar nas tábuas do palco, na cortina do palco, no pedestal para o microfone do palco, e quem sabe em uma banda que deixou seus instrumentos largados pelos tablados cinzentos do palco, para que na noite seguinte não tivesse de usar nada além das mãos e das gargantas para que o cabaré realmente fosse cabaré, pois sem música sequer vida há.

Essa coisa de cabarés por algum motivo me remete a gêiseres. A razão talvez esteja pela água quente que provém da pedra fria. Ou da pedra fria que brota água quente como o rum na garganta da angústia. Mas como tudo, desde os ópios de Nietzsche, pode ser visto por diversos ângulos, prefiro ficar com a imagem do cabaré silencioso, apenas piscando um neon qualquer por cima de uma biblioteca de bebidas âmbar que Borges não pôde imaginar.

Esse neon ao qual me refiro, com certeza será azul. E será azul porque o som ali cantado na noite recém acabada, foi azul também, como se a Isabella Rossellini
tivesse conhecimento da existência da minha cidade e do cabaré que agora imagino.

Se tudo isso soar clichê ou mera tentativa de pouso em algum lugar, ao menos algo voou, pois o pior da escrita não é o chão e nem é o céu, mas sim o meio termo vago que não admite o próprio nome para dizer o que tem de dizer, acabando por morrer enquanto regava as plantas do jardim.

Tramar discussões qualquer tecelã trama. Inventar tragédias se tornou tão monótono quanto falar de Hamlet. Os jornais nos ditam as regras do dia da mesma forma que os relógios nos ditam as regras das carteiras e das bolsas. Havendo o descompasso entre uma e outra coisa, haverá com certeza um lapso, sendo que nesse lapso o dia não nascerá feliz como um dia quis Cazuza.

Ao contrário, esse lapso nos levará a esse cabaré silencioso, morno pelas coxas que antes roçavam pernas decadentes e jovens que por ali cruzavam. Distante de qualquer sorriso, esse lapso será o segundo no qual aquela namorada antiga nos virou o rosto quando iríamos dar o último beijo e isso nos fez compor uma música sertaneja. Mas de uma ou de outra forma, esse lapso terá um nome, ainda que este nome seja tão raro e de tão difícil compreensão quanto a oficina de Antonius Stradivarius.

Quando o lapso enfim cessar e as bocas puderem voltar ao rum que ficou nos copos, aos cigarros que irão amassar e às mesas que ficarão ainda mais desarrumadas pelo vermelho dos abajures, talvez soe um Dizzy Gillespie pela língua de alguém no palco. Ainda no campo das possibilidades, é provável que alguém traga um teclado e tudo se transforme tão brega quanto um filme dos anos 80 que tenha a Madona por protagonista. E aqui não haverá nenhum Da Vinci. Muito diferente disso, haverá apenas a decadência de um silêncio que deixou de ser, dando espaço para calças que se cruzam e escondem coxas que se querem, fazendo com que a madrugada se torne o lar das decadências que querem chorar mas escondem o choro no fundo dos copos.

Mesmo assim, toda decadência tem um nome. Seja financeira, amorosa, profissional, conseguimos nomear aquilo que nos assola e nos tira do casulo dos travesseiros. O horóscopo pode dizer que iremos sair janela afora na manhã seguinte, mas o fato é que nossas asas deixaram de ser azuis há muito tempo e não existe mais nada a fazer a não ser se contentar com o corpo que temos. E se temos um corpo, isso já é o bastante, pois a partir dele poderemos assistir o Freaks do Tod Browning sabendo que a beleza da pele não é proporcional à beleza do peito.

Sei que falo que tudo se relaciona com tudo para no fim se relacionar com nada. Sei que falo que a trama das palavras é fina demais para suportar a nossa dor. Mas ao menos quando falo, identifico delírios e sonhos em meio a retratos dos cotidianos que vivo, jamais deixando de lado os ares que respiro em prol de devaneios que poderia vir a ter com o chimarrão que todas as noites me acompanha.

Por vezes é possível que as tentativas sejam tão frustradas quanto tiros na lua, como disse Leopoldo Rassier. E ainda que eu não precise me salvar no aconchego do meu pala, me salvo na payada das minhas vozes, entrecortadas por tantos, mas tantos ruídos, que tem dias que me sinto Henry Spence, mesmo que não tenha que cuidar tão bem do meu aquecedor de parede.

Mas talvez seja justamente esse meu erro. Talvez, como Henry Spence, eu tenha que entrever na caixa de correios um espermatozóide que não é. Talvez tenha que jogar xadrez em um palco que não existe e deixar uma cantora avessa ao Gillespie dizer que “no céu tudo está bem”. Meu erro quem sabe esteja em renegar as pequenices que de tão pequenas me escapam, ainda que a cada dia que passe eu olhe os olhos dos cães como quem quer encontrar a pergunta morta dos bichos que a Hilda Hilst decifrou.

Por todos esses motivos, é que respeito os cabarés vazios, é que respeito os inseticidas que não matam e respeito todos esses viciados que o mundo abraça para logo depois tornar apenas adubo. Mas longe de tudo isso, não presto respeito algum àquelas coisas e pessoas que não posso nomear, sabendo que essa minha falta de respeito é mais medo do que qualquer outra coisa, já que, podendo ao menos inventar um nome, seria exatamente isso que faria para então ter a mínima compreensão do que vejo e sinto, porque de anônima basta minha face no espelho pela manhã.

Portanto, que “o dia venha mugindo pra se banhar em água rasa”. Portanto, que os cabarés vazios continuem, pois até o silêncio tem o nome de silêncio porque só existe quando as vozes calam, o que prova que somente a mudez é possível.

No mais, essa profusão de nomes e letras. No mais, essa ausência de sentido que a tudo anima no momento em que nomeia, mas destrói no momento em que significa.

No gelo escasso dos dias, é possível que morramos de hipotermia ainda que exista um último cigarro por amassar.

O bom é que sempre haverá um cabaré e um rum pela metade. E com alguma sorte, talvez alguns braços nos abracem e a solidão do amanhecer seja menos só que o Sol – essa vida que queima insciente da própria morte.

Daí nossa tristeza. Daí nosso rancor. Daí nossa impossibilidade de às vezes cavar no buraco no qual nos encontramos e dar um beijo naquela que há tanto tempo nos acompanha.

Mas tudo sempre será azul como uma borboleta machadiana: basta um piparote e virão as formigas.

Por conta disso o pó não existe: o que existe é a ausência: o que existe é a contínua inalação do nada.

E sem nome, nada há. E sem conversas, nada há, ainda que a órbita de todo assunto gire ao redor do medo de cada um.

Mas hoje fiquemos com esse cabaré vazio, prato deprimente da fome de cada dia que a cada dia queremos saciar e não saciamos.

Fiquemos com nossa sombra por sobre as letras do que não entendemos, porque só isso nos trará os sonhos. E com sorte, o sono.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

E o tridente de quatro lâminas sempre estará presente, porque o vento é só vento e nada mais.

Não existe alegria sem tristeza. Se houvesse tristeza sem alegria, jamais sentiríamos alegria.

Assim como é impossível existir tristeza sem alegria, é impossível andar pelos corredores de um hospital sem estar em um labirinto. As camas espalham doenças e o ar espalha as dores daqueles que trazem consigo tristezas e doenças.

Em cada leito, habita o desassossego. E em cada madrugada, habita o sono que só vem depois que o peito se aquieta.

Mas para aquietar o peito, é preciso muito mais que afago e é preciso muito mais que voz. A poesia circula as ruas da noite do mesmo modo que as doenças circulam os labirintos dos hospitais.

Entretanto, nem sempre temos a doença dos hospitais pois nem sempre temos a poesia da ruas. Os bancos não são nossas camas.

Por isso viver é doído.

Por isso escrever não tem nada a ver com saber quem somos. Escrever é fuga e vício e só.

Se somos algo na escrita, esse algo não passa de reflexo.

Vozes vêm e vão e no fim permanece o silêncio do poste que ilumina a rua na frente do meu prédio.

E hoje é uma noite na qual nem os cães latem. Hoje é uma noite na qual sopra um vento fresco que balança as cortinas da biblioteca e chega até mim como se quisesse dizer alguma coisa.

Mas o mundo não diz nada. Somos nós que dizemos o mundo.

As casas são simplesmente casas e as ruas são simplesmente ruas. O poste na frente do meu prédio existe porque essa é sua função e nada mais.

Se uma perturbação de repente nos afeta, se algo do nada nos surge, é como se um tridente de quatro lâminas se cravasse em nossos olhos, os quais do azul passassem ao amarelo e do amarelo passassem ao poste que ilumina a rua da frente do meu prédio.

A razão de tudo isso não habita o lado esquerdo ou direito do nosso cérebro. A razão de tudo isso é apenas o vento que move as cortinas da biblioteca e me dá a esperança de alguma razão que não chegará.

Somos aquilo que não queremos dia após dia. Do contrário, nem existir existiríamos, pois não teríamos qualquer motivo para continuar a viver.

E é isso que pensam os suicidas: passaram a ser o que realmente são e portanto deram um fim às próprias vidas. Enforcaram suas mágoas, cortaram as veias das suas palavras e tudo transcorreu tão simples como um suspiro.

Andar nos cemitérios pode até ter a ver com andar pelos labirintos de um hospital. Mas a tristeza das lápides é muda, enquanto a tristeza dos leitos range dor após dor, desassossego após desassossego.

Se uma senhora de noventa e um anos quebra a bacia ao levantar da cama por conta dos seus ossos porosos, isso é apenas conseqüência da sua existência.

Se um câncer me surgir do nada quando eu estiver no auge de alguma coisa que as pessoas consideram essencial, isso não quer dizer nada também.

Sofrer é a conseqüência de sorrir assim como sorrir é a conseqüência de sofrer.

A vida concorda com a morte na medida em que aceita ser vida. E antes mesmo de sairmos do útero, essa consciência nos habita, ainda que dia após dia procuremos negá-la com compras, amores e artes.

Talvez a única esperança seja a criação.

Talvez a única salvação seja encontrar uma obra-prima no porão de um sebo úmido.

Se alguém saberá que se trata de uma obra-prima, isso dependerá dos olhos desse alguém, os quais poderão mudar de cor de uma hora para outra: do azul ao amarelo e do amarelo ao poste que ilumina a rua na frente ao meu prédio.

A madrugada é a matéria muda das nossas dores.

E o tridente de quatro lâminas sempre estará presente, porque o vento é só vento e nada mais.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

E mantendo as boas maneiras, bom Carnaval a todos, porque no mais sigo galo véio com meu mate que pela janela não criou asas.

Tem um terreno baldio aqui na frente do prédio. Nele crescem essas plantas que crescem em terrenos baldios. Olhando pra elas ali da sacada, chego a pensar que são folhas de maconha. Mas o fato é que nunca vi folhas de maconha fora dos programas do Datena e das camisetas do Gabeira. Então por qual motivo me veio esse pensamento? Acho que pela inutilidade tanto da maconha quanto do terreno baldio.

Primeiramente, que fique claro que não tenho nada contra maconheiros. E muito menos contra terrenos baldios. Se querem ficar dando risada de um copo de suco de uva que parece o Universo em expansão, tudo bem, não tenho nada a ver com isso. Se querem deixar um terreno criar mato até que as formigas montem um formigueiro tão, mas tão grande, que se torne uma metrópole de formigas, tudo bem também. Mas o que mais me deixa irritado, é a quantidade de coisas inúteis que existem no mundo. E mais do que isso: o quanto de inutilidades acumulamos com o decorrer dos anos.

Olhe pra sua estante. Olhe pro seu guarda-roupa. Não existem livros e revistas e camisas e camisetas que não precisavam estar ali mas ainda estão ali? Não existem por cima da mesa da sala aqueles bibelôs ridículos que alguma tia trouxe de uma viagem à Fortaleza? Se alguém me disser que não, estará mentindo. Mas também não tenho nada contra a mentira. Quanto a ela, estou com o Quintana: “a mentira é uma verdade que deixou de acontecer”. E tenho dito.

O que me irrita de verdade nesse mar de inutilidades, é que com o tempo acabamos nos tornando dependentes delas. Quando eu tinha oito anos, por exemplo, depois que assisti um Globo Repórter que falava sobre extraterrestres e logo depois assisti um filme chamado Fogo no Céu, o qual contava a história de um camarada americano que foi abduzido por uns extraterrestres cor-de-rosa, passei dois anos dormindo com o colchão no chão do quarto. O meu argumento era simples: pensava que se deixasse o colchão no chão, os extraterrestres teriam maior dificuldade de me abduzir. Mas só hoje é que me dou conta do óbvio: por qual motivo extraterrestres vindos sabe-se lá de qual galáxia iriam querer me abduzir?

Até onde me consta, não sou um sujeito nem bonito nem feio e muito menos especial. Não que eu queira dar uma de Zé Bonitinho ou me fazer de galã pra ganhar elogios. Mas é que uma cruza minha com uma extraterrestre cor-de-rosa não ia sair algo que preste. Se fosse pelo lado intelectual, até poderia dar algum crédito a esses seres de outro mundo. Sem qualquer humildade, sempre tive alguns entendimentos no mínimo legais sobre certas coisas. Mas entendimentos legais não chegam aos pés de entendimentos reais e de viagens espaciais, o que faz com que esse meu medo infantil de extraterrestres se torne uma coisa completamente boba e desprovida de lógica assim como um celular que toca Barbie Girl. E portanto é inútil.

Do mesmo modo que passei dois anos dormindo com o colchão no chão por conta dos ETs, isso lá nos meus oito anos, passei mais uns três anos dormindo na cama com um pé encostado na parede e uma garrafa d’água do lado da cama. A coisa da garrafa d’água herdei do meu pai, porque ele sempre leva uma garrafa d’água pro quarto. Mas isso de pé encostado na parede não sei de onde tirei e nem sei porque me dava alguma segurança para o sono. E se eu contar que passei por uma época, a qual durou mais ou menos seis meses, na qual só conseguia dormir com o corpo completamente coberto, ninguém acredita. Ou será que acredita? Bem: se tem gente que monta seitas em homenagem aos extraterrestres, sejam eles cinzas, cor-de-rosa ou verde-limão, acho bem possível que esse meu relato seja completamente verídico aos olhos de qualquer leitor. Se acham que até o Big Brother e o Estado Democrático de Direito são reais, vá saber o que se passa pela cabeça das pessoas.

Mas o que exala de tudo isso, é a inutilidade que permeia nossa vida. Por exemplo: pra quê tantos livros publicados sendo que mais da metade nem a denominação “obra” merece? Isso é no mínimo um crime contra a natureza, porque cada livro publicado corresponde a algumas árvores derrubadas. Por isso que talvez eu esteja primeiramente me aventurando pelos lados da internet antes de publicar qualquer coisa. Deus me livre meus possíveis filhos chegarem a me dizer:

- Pai! Tu é um criminoso, tá ligado?! Derrubou cem árvores por tabela pra escrever esse lixo! Essa bosta cheia de conceitos que ninguém entende! Te liga, porra!

Antes de ouvir isso, prefiro que minhas palavras fiquem aqui dentre zeros e uns, fazendo o que tem que fazer aos olhos de quem quer fazer alguma coisa com elas, se é que sua inutilidade também não se encontra no próprio fato de elas existirem.

Mas voltando ao ponto central do que falo, ou seja, a inutilidade, hoje (segunda-feira, friso) saí pela manhã com a intenção de resolver mil coisas. E o que encontro? Tudo fechado: cartório, fórum, bancos, lojas, bares. E por quê? Certamente porque o povo passou a madrugada de borracheira e folia e não estava em condições de trabalhar. Ou quem sabe, para incorrer em uma lógica mais lógica ainda, se é que isso existe, os patrões resolveram dispensar todo mundo pra deixar os chicotes mais e mais ardidos no lombo dos trabalhadores, hipótese esta que considero a mais viável e cabível já que estamos falando do Brasil – país mandado e desmandado pelos uivos do FMI e dos Senhores Feudais do Senado.

Por conta desses motivos, é que defendo que o dia ideal pra se fazer festa é na sexta-feira. E por quê? Primeiro: se você trabalha no sábado, fica meio assim, meio assado, mas leva na boa a ressaca da noite anterior, isso porque poderá descansar logo mais. Segundo: se você não trabalha no sábado, tem o sábado e o domingo pra curar a canseira da festa. Terceiro: se você é daqueles que gosta de fazer festa na sexta e no sábado e ainda por cima não trabalha no sábado, acaba de chegar ao paraíso, já que seu final de semana será muito mais do que agitado, badalado e coisa e tal, muito embora seu domingo beire uma UTI hepática.

Sendo assim, pra quê Carnaval? Pra quê fingir que tudo está bem por três, quatro, cinco dias e depois acordar vomitando a própria bile ou quem sabe a fatura do cartão de crédito? Essas coisas tropicais aqui no meu mundo sub-tropical, não fazem sentido algum. Que a Semana Farroupilha deve ser totalmente dedicada ao gauchismo, é outro papo. Mas Carnaval pra quê? Pro pessoal da Bahia trabalhar três meses e viver o resto do ano com o dinheiro dos turistas? Que me perdoe o resto do país, mas não encaro as coisas assim. E admito que toda crítica tem uma grande parcela de inveja, isso pra já não me jogarem pedras de cara.

Mas país que quer ir pra frente, país que quer ser “o país do futuro”, o que falam desde 1500 aqui pra esses lados da América, tem mais é que se lascar trabalhando em todas as áreas possíveis – e mais especificamente aquelas que usam mais o cérebro do que o bíceps. Se os patrões querem que os chicotes ardam no rabo dos trabalhadores, então que as coisas sejam invertidas: os trabalhadores que larguem os patrões e os patrões que vão se ver com a Justiça do Trabalho. Claro que alguns vão me dizer que se você fizer isso, irá entrar para o index dos funcionários indesejados, daqueles que se revoltam contra o sistema.

Mas aí eu pergunto: que sistema se sustenta sem revolta? Até mesmo meu computador se revolta contra mim de vez em quando. Tem horas que um parágrafo some do nada e só depois me dou conta de que ele era uma porcaria. E por quê? Porque de revolta em revolta, de trabalho em trabalho, é que as coisas andam pra frente. Mas ficar nessa de feriados pra cá e pra lá, é coisa de gente que quer que o mundo acabe em barranco pra morrer escorado. E pra ser mais franco ainda, até essa coisa de Semana Farroupilha me irrita um pouco por conta do excessivo bairrismo, apesar de eu ser viciado nessas coisas. No fundo, tudo é motivo pra borracheira nesse país, seja ele do norte ou do sul. E enquanto isso os bancos nos cobram taxas metafísicas das quais a procedência sequer imaginamos, mas que com certeza financiam as orgias que nenhum Calígula ou Fellini imaginariam em um delírio à base de cogumelos de bosta de vaca.

Retomando a calma e o fôlego, já que por pouco não finquei a cuia pela janela, uma vez que falei em morrer escorado em barranco, esse prédio no qual eu moro fica numa ladeira – a qual, grosso modo, é um jeito chique de chamar um barranco. Ou melhor dizendo: ao pé de um morro – ou barranco, a escolha é sua, caro leitor. Acontece que essa ladeira ou barranco tem uma descida cavalar pra chegar até a garagem e uma subida que alguns corsinhas não conseguem vencer pra sair da garagem. Talvez por conta disso exista o terreno baldio com as plantas que, apesar de lembrarem folhas de maconha, são apenas plantas que crescem em terrenos baldios que servem de metrópoles para formigas.

Mas por mim que as coisas continuem assim. Façam festa, gastem o que não têm e transem com que não conhecem sob o risco de acordar ao lado de um sujeito peludo vestido de bailarina russa. E se querem se contentar com o que os patrões impõem e viver uma vida de um final de semana em Gramado a cada cinco anos, daquelas que o sujeito tira fotos e mais fotos pra mostrar pros netos o foundie com salame, queijo e melancia que devorou com quatro garrafas de vinho da Serra Gaúcha, tudo bem também. Sinceramente, não me importo. A única vida que posso mudar é a minha e ponto final, a qual já tem problemas demais a serem resolvidos. Os outros que cuidem das suas. O máximo que posso fazer é escrever ou planejar atentados terroristas.

Mas como ainda não apelei pra violência e nem compactuo com os métodos do Bin Laden e muito menos dos caras lá de Israel, fico aqui detrás do computador com um sorriso irônico nessa madrugada de Terça-feira de Carvanal que parece que logo trará chuva. E acho até legal a hipótese de ver os foliões pegarem uma baita de uma gripe depois de um banho de chuva. Pura maldade, confesso, a qual, entretanto, não chega aos pés das taxas que o seu banco cobra – e isso eu garanto.

E por quê?

Porque, se não existe revolta, tudo é tão inútil quanto esse texto que acabo de escrever. E se falei besteiras, viva o besteirol, porque, afinal, é Carnaval, meus caros pierrôs e colombinas.

E mantendo as boas maneiras, bom Carnaval a todos, porque no mais sigo galo véio com meu mate que pela janela não criou asas.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

E aliás, acabou de chiar minha cuia.

Há algum tempo penso seriamente em parar de beber. Geralmente esse pensamento me ocorre quando acordo de ressaca. Estranho que hoje não acordei de ressaca. Mas isso é um mero detalhe. O fato maior, é que beber mais me traz problemas que soluções, já que nunca vi o futuro no fundo das canecas de chopp, muito embora tente me tornar vidente há anos. Mas depois que li que um alemão adivinha o amanhã das pessoas apalpando suas nádegas, creio que o mundo chegou a um grau de putaria que qualquer generalização seria incapaz de descrever.

E por falar em descrições, enquanto as caixinhas de som do meu computador transpiram Meat Puppets, ouço alguns vizinhos ouvindo algumas bandinhas alemãs, dessas de baile de interior e coisa e tal. O refrão que me chega é mais ou menos assim: “oh! Catarina, Catarina, meu amor/deixa eu amar você/oh! Catarina, Catarina, meu amor/estou louco pra te ver”. Considero que o sentimento exposto pelo cantor em comento, do qual não duvido da sinceridade, é tão genuíno quanto este rock dos anos 80 que me chega aos ouvidos. Mas mais genuíno ainda é o chimarrão que me desce estômago adentro, ainda que o calor beire as margens dos quarenta graus nessas terras de Santo Ângelo em fevereiro.

E como sou um sujeito que procura manter certa coerência textual, acho que essa coisa de falar de vidência em copos de chopp e bandinhas mescladas à rock dos anos 80, tem tudo a ver com O Avesso da Psicanálise do Jacques Lacan que ontem peguei na biblioteca da Faculdade na qual leciono. E por quê? Porque de uma ou de outra forma, todas essas coisas falam de desejos do futuro que são tão incertos quanto o fato de uma senhora de cem anos fumar há noventa anos e ter pulmões de vinte anos.

Logo, como entender o mundo?

Um idiota poderia me perguntar:

- Como entenderei o mundo se o mundo não me entende?

Pra esse idiota, responderia o seguinte:

- O mundo não te entende porque o mundo não precisa te entender, caralho!

O idiota me retrucaria (idiotas sempre retrucam):

- Mas eu sou no mundo. Portanto o mundo deve me compreender.

Então eu responderia:

- Você sabe o que é o mundo fora da palavra mundo?

Aí certamente o idiota iria se aquietar ou simplesmente arrumar um compromisso e sumir da conversa.

Por esses motivos que não acredito nesses universos “de dentro” que a Clarice Lispector e a Virgínia Wolff tentaram falar. O Universo é apenas um, ainda que os físicos atualmente falem que somos apenas um Universo em um mar de Multiversos. Mas isso é conversa pra outras horas. O que quero dizer mesmo, é que o futuro inexiste assim como o presente e o passado são completas ilusões. Temos de criar essa cronologia para suportar a existência. Caso contrário, o mundo seria mais caótico do que já está – o que, convenhamos, talvez até fosse bom para que alguns retardados que por aí andam finalmente se toquem.

Não que eu duvide do talento literário da Clarice Lispector e da Virgínia Wolff. Gosto muito de ambas, aliás. Mas como falou o António Lobo Antunes em uma entrevista, ele até achava genial a Clarice antes de descobrir que tudo que ela falou já estava na Virgínia Wolff. Logo, como dizer de universos “de dentro”? É algo tão besta quanto falar em psicologia transpessoal ou psicologia quântica – besteiras que fazem falastrões ganhar rios de dinheiro em tempos de executivos que só lêem livros de auto-ajuda e raciocinam na forma de cifrões. E além do mais, a única coisa que nos consome por dentro é um câncer galopante e uma diarréia pós-feijoada.

Por isso é que considero que a artista da literatura que conheço que realmente falou desses universos “de dentro” com alguma dignidade, foi a Hilda Hilst. E por quê? Porque ela sabia que o “de dentro” só é “de dentro” por conta do “de fora”. E que, por conta disso, assim como sempre disse o Carl Sagan, tudo se relaciona com tudo na medida em que tudo é feito da mesma matéria. Se no conto Fluxo a Hilda Hilst fala de um poço que tem por teto uma clarabóia, isso já basta para explicar o pensamento dessa escritora única. E se, quando um jornalista visitou seu rancho, descobriu mais livros de Física do que literatura em suas prateleiras, isso diz muito mais do que qualquer explicação que eu poderia tecer.

Então não me venham com explicações para o mundo. Que dirá para esses universos “de dentro”, os quais são mais umbigo do que qualquer outra coisa, o que infelizmente se prolifera pela internet de uma maneira viral. O problema é que as pessoas pensam que fazer literatura é falar de si. Não nego que sempre estamos falando de nós mesmos. Entretanto, fazer literatura é ir além de si para buscar o incerto que está além e que, por conseqüência, com tudo se relaciona. Se encontraremos esse incerto, não interessa, porque o artista nunca sabe o que vai encontrar. O que interessa é tentar, pois a tentativa é a raiz da arte.

É claro que nossas tentativas podem dar errado. Afinal das contas, nunca vi o futuro no fundo das canecas de chopp e acho que as apalpadelas do alemão servem mais pra sua masturbação noturna do que qualquer outra coisa. Quanto ao Lacan, ele teve a coragem de falar disso que ninguém sabe o que é mas tenta explicar – ou seja: o inconsciente. E são pessoas assim que admiro e estudo.

E neste clarão de domingo à tarde, penso que o dia criptografa a luz. O que nos chega é um código. As artes são as possíveis leituras desse código. As ciências são a corrupção dessa mesma luz, a qual, no final das contas, é mais olho que luz, como se a pupila fosse o prelúdio do sol morto: supernova de jatos, matérias de pendência e tudo nos onze cantos da baba de nós. Isso é tristeza. Guitarras são gritos. Violões, desesperos. Se há um céu, este céu não está no céu. O paraíso é o depois da saudade. O esquecimento é a culpa do amor. E o amor é o que destila os dias.

E enquanto nada disso se resolve, continuo pensando em parar de beber.

E aliás, acabou de chiar minha cuia.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

E sem ética, nenhum mundo é possível.

Todos trazem tatuagens que só a voz pode decifrar. Alguns trazem em si a marca de vendedores. Outros tantos trazem em si a marca de profissionais liberais. Outros de professores e alunos. E aqueles que andam buscando algum sentido no fundo dos copos, simplesmente de bêbados.

O termo que mais ouço nesses tempos de conflitos internacionais e nacionais, é o termo “tolerância”. Ou seja: tenho de aceitar quem o outro é e saber conviver com quem o outro é. Porém, a tolerância não está para o respeito porque tolerar é suportar. E se uma esposa tolera o marido que todas as noites lhe impõe hematomas mas mesmo assim continua a conviver com ele, alguma coisa está errada no uso do termo “tolerância”.

Talvez devêssemos, ao invés de tatuar aqueles que nos rodeiam, compreender a razão do porque tatuamos aqueles que nos rodeiam com tais tatuagens. O motivo disso é simples: as tatuagens que vemos estão mais nos nossos olhos do que no corpo dos tatuados. Se o sujeito é tatuado como vendedor, isso não quer dizer que sua vida é ser vendedor. Se o sujeito é tatuado como profissional liberal, professor, aluno ou bêbado, isso igualmente não quer dizer que qualquer uma dessas tatuagens não traga em si desenhos que não correspondem com a realidade desse sujeito. Uma vida de utilidades tatuadas deixa de ser vida e passa a ser coisa.

O problema de viver em sociedade, portanto, não será resolvido apenas com a tolerância do outro. A tolerância até pode varrer a sujeira pra baixo do tapete, mas quando vemos torturas por trás de torturas sendo encobertas pelas matas desses riachos da periferia, temos de admitir que algo não está saindo como planejado.

Antes da tatuagem que impomos aos outros, talvez fosse melhor descobrir qual é a tatuagem que os outros impõe para nós. Será que realmente somos bons vizinhos e pagadores? Será que realmente somos bons maridos e amigos fiéis aos princípios que o Ensino Médio, com toda sua convulsão de hormônios, traz na luz das festas? A realidade, neste sentido, talvez esbarre na inveja que sentimos ao tatuar os outros com tal e tal tatuagem, pois se não posso andar com um carro do ano e por conta disso caminho, a minha reação natural seria ter um certo rancor do sujeito que anda com um carro do ano.

Mas aí pergunto: ao quê me levaria esse rancor? E ao que nos levará impor tatuagens aos outros quando não olhamos para as próprias tatuagens que os outros nos impõem? É possível que tudo seja questão de umbigo. É possível que ainda acreditemos que é o Sol que gira ao redor da Terra. E é dentre todas essas possibilidades que se constrói o absurdo cotidiano, o qual, ao invés de ver o outro e respeitar o outro enquanto outro, prefere tolerar o outro por meio de uma tatuagem que de real só carrega seu próprio rancor.

Em cidades de médio porte como Santo Ângelo, notar essa realidade é mais do que fácil. Existem jantares beneficentes ali, existem senhoras que se reúnem acolá, mas ninguém sabe da menina que morre de fome em um berço sem colchão em algum bairro ao qual nomeamos com esperanças de Cristal e Harmonia. É muito fácil decifrar a tatuagem dos outros quando a voz não é o que se reflete no espelho. É muito fácil pisar em cima de quem não sabe falar quando por conta de alguns romances de meia-tigela, você pode se tornar um intelectual respeitável pelo menos no bar da esquina.

Mas o fato é que um dia a pele começa a desgastar. O fato é que um dia a tatuagem começa a sumir e as rugas virão até mesmo nos olhos. E quando chegar esse dia, algumas coisas virão à tona. Se suportaremos, será questão de hombridade. Se continuaremos rotulando as pessoas como se fossem meros produtos de supermercado, é melhor admitirmos o caos e retornarmos ao rancor absoluto das tribos primitivas: fome por jóias, jóias por sexo, sexo por dinheiro e tudo por nada. De seres vivos passaremos a seres utilitários: marionetes que se comunicam com chiados de calculadora.

Por isso é que tolerar não é ser ético e tatuar não é ser sociável. Conviver não é apenas aceitar, pois o rancor é o assassino da ética. E sem ética, nenhum mundo é possível.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

No mais, permaneço com meus vidros enegrecidos.

Se o Ser daquilo que somos se movimenta, não faço a menor idéia. Sei apenas que o Heidegger disse que a linguagem é a morada do ser e o que o Gadamer disse que o ser só pode ser na linguagem. Partindo dessas concepções, poderíamos pressupor que um desses senhores da gramática, sisudos como um atendente de boteco de quinta categoria, desses que vendem ovos vermelhos por detrás de caninhas com nomes pra lá de estranhos, como Diabo de Dentro, Porta de Fora e afins, seria o Guardião das Portas do Ser. Mas o fato é que nem o Heidegger nem o Gadamer estavam certos ao falar o que falaram. Se falaram, falaram dentro daquilo que podiam nomear, dentro daquilo que podiam saber da mesa na qual escreviam, sendo que além do fato da mesa se chamar mesa, “no mais é tudo, quase nada e coisa e tal”, como bem profetizaram os caras do Graforréia Xilarmônica. E partindo dessas curtas linhas, é que a Ana Valeska, moça que desbrava uma Floresta Negra tropical na qual nenhum pensador germânico sequer teve coragem de penetrar, devassa suas frases com o ímpeto de quem sabe que se o coração se move na sístole/diástole diária, o sentimento se move no batimento da pele contra a pele, do choro contra o choro e da vida contra a vida. E ainda que talvez o Ser não esteja em movimento, nós somos modos de Ser. E se somos modos de Ser, portanto somos expressões do Ser que por conseqüência se movimenta pelo simples fato de Ser. E a Ana confirma isso porque tenho certeza que ela existe. Vale conferir e descobrir quem somos ao descobrir essa moça, cuja cabana na rede, certamente rodeada por um jardim de gerânios vermelhos, está no http://oseremmovimento.blogspot.com/. No mais, permaneço com meus vidros enegrecidos.

“Light my fire, baby! Light my fire!”

Essa coisa de internet cada dia me assusta mais.

Quando comecei a lidar com isso, lembro que a conexão era via telefone e você pagava por minutos. Ou seja: se eu conectasse a rede trinta minutos por mês, pagava quinze reais; se eu conectasse a rede sessenta minutos por mês, pagava sessenta reais.

Mas o pior não era isso. Em dias de chuva, as linhas de telefone encharcavam e você ficava isolado do mundo. E pra feder mais a situação, enquanto você estava conectado ninguém podia ligar pra você já que o telefone ficava ocupado com aquele chiado provindo do Quinto Círculo do Inferno de Dante. Daí era pai e mãe berrando pra tudo quanto é lado. Por isso que acho que apesar dos cartões de crédito estourados, os vinte e poucos anos tem suas vantagens. Se a coisa ficar muito feia, minha dica é atravessar o Uruguai à nado, casar com uma correntina e virar chamameceiro.

Entretanto, antes desses fatos e gauderiagens pinkfloydianas, lembro dos meus primeiros contatos com os computadores. Lembro que havia um programa chamado Logo no qual o protagonista era uma tartaruguinha desenhista. Você digitava uns comandos que esqueci completamente e ela ia criando linhas numa tela cor-de-rosa. Algo completamente surreal, quanto mais para uma tartaruga.

Mas naquela época eu achava aquilo bem lindo. E quando inventaram o MS-DOS então! Quase surtei de felicidade! Cheguei até a pensar que minha vida seria trabalhar com computadores. Sorte que recobrei a consciência em tempo e tampouco comecei a jogar RPG e escutar essas bandas metal chatas pra caramba.

Mas continuando o assunto, meu fascínio informático foi maior ainda quando vi o primeiro mouse da minha vida e pensei:

- Puta que pariu! Agora sim vou jogar o Top Gear que nem homem!

Mas que nada! Jogo de corrida com mouse não tem fundamento. Se tivesse, o dito nem mouse se chamaria. Mouse só serve pro Word do Tio Gates e olhe lá.

Além disso, no colégio onde eu estudava, o professor dos computadores deixava a gente jogar Doom a tarde toda. Então eram uns trinta adolescentes desocupados tentando destruir monstros imaginários que sangravam babas em pixels decadentes.

Contudo, uma reminiscência mais longínqua me surge: o primeiro computador no qual mexi parecia uma caixa de abelhas. As letras eram verdes e o teclado era enorme. A única diversão que havia nele era um joguinho desses ao estilo Star Wars, no qual você tem que destruir as navezinhas que aparecem por cima da tela, coisa que hoje o celular mais fuleiro do mundo traz de brinde em seu aparato de catador de latinhas.

Mas a razão de eu estar cada vez mais assustado com essa coisa de internet, é o fato de você poder comprar pela internet. Tenho um casal de amigos que trabalha com informática. Fazem sites, vendem peças, tem uma lan house e por aí vai. Diz que esses dias a Fernanda, esposa do Mauro, conversava com uma cliente via MSN nos seguintes termos:

- Os seus monitores chegarão amanhã, senhora.

- Sim, mas quantos são mesmo?

- São treze monitores, lembra?

- Ah sim, treze LSDs!

Então a Fernanda, que nunca foi boba nem nada e é mais desconfiada que bugio da Jóia, teve um estalo de quem é procurado pela Interpol, isso que nem descendência islâmica ela tem:

- Bueno! Se nós compramos produtos diretamente da China e essa mulher fala que está esperando treze LSDs, imagina se a Federal está monitorando nossa conversa?! Imagina se daqui uns dias inventam a Operação Monitor Psicodélico e nos colocam em cana por causa disso?! E pior: imagina se formos pra Guantánamo?!

Com toda certeza ela estava e está coberta de razão, apesar de ter sido um pensamento meio megalomaníaco, convenhamos. Mas isso deve ser culpa do horóscopo.

Porém, como a sorte quase sempre olha pros lados que mais erram, a Federal não estava monitorando a conversa e a transação se deu sem maiores enleios, já que os monitores eram LCDs mesmo. Apesar disso, as compras que o Mauro e a Fernanda fazem da China andam cada vez mais atribuladas.

Esses dias os chineses mandaram de brinde uma tartaruga-dragão que tem uma árvore nas costas e uma mini-tartaruguinha em cima dela. Tudo isso com cor de vinho tinto passado do ponto. Quase avinagrado, pra ser franco. E pra ser mais franco ainda, achei aquela estatuazinha meio sadomasoquista. Mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que a alfândega, com fuças de pastor alemão, viu que aquele estranho objeto não era produto declarado na nota.

Conseqüência? Seiscentos contos de multa. E o que dizer diante disso? Dizer que os chineses devem deixar de ser prestativos ou educados ou que nossa burocracia tem que deixar de ser neurótica? O fato é que a resposta simplesmente inexiste, porque tanto a educação quanto a burocracia são espécies da mesma neurose.

Se sou educado, sou educado porque espero que sejam educados comigo.

Se sou burocrático, sou burocrático porque sei que os outros também me tratarão de maneira burocrática.

E qual o cerne disso tudo?

A desconfiança mútua. E mesmo assim ainda tem gente que acredita que pode existir amor via internet, que um casal pode ficar um ano sem se ver, só falando pela internet e ainda assim ser um casal apaixonado. Que acho possível, até acho, mas os pares de guampas que acompanham tal ensejo chegam a me dar náuseas. E chego até a pensar nos calos nas mãos do companheiro que, se não põe guampas na moça, tem de se virar com os cinco guerreiros.

Por esses e outros fatores, é que tudo quanto por cá escrevo, se tem um pé na realidade, tem um pé ainda maior na irrealidade.

Se as palavras dão o nome ao mundo e se só podemos conhecer o mundo a partir das palavras, o que é o mundo afinal?

Como poderemos conhecer o mundo se só sabemos dar nomes às coisas mas jamais saberemos como as coisas são ou o que as coisas são de fato?

Por isso é que não existe autobiografia. Se o Roberto Carlos fizesse uma autobiografia, ia dizer que fumou maconha uma vez na vida e transou com cinco mulheres em pleno Haiti, já que ele é O The King – e só O The King é o maior amante e comedor do mundo. Mas se fossem investigar isso a fundo, a história seria bem diferente. Sorte dele que a Federal não foi atrás assim como não foi atrás da Fernanda e seus monitores de LSDs, já que na época áurea do Robertão o que mais haviam eram Syd’s Barret’s espalhados por aí.

Mas acho que estes questionamentos só me surgem porque sou da Idade da Pedra. Sou um neandertal confesso. Sou machista, ciumento, histérico, nervoso e acho que a cerveja é o pão em formato líquido. Sou um completo neurastênico, coisa do que me orgulho, já que tenho como companheiros tanto o Henry Miller quanto o Fernando Pessoa. E pra completar minha rudeza, lidei com Logo, com MS-DOS, joguei Doom nos computadores do colégio e tive durante anos conexão discada.

Nessa época da conexão discada, aliás, até conheci uma moça de Porto Alegre que acabei namorando um tempo. Porém, tudo que começa no virtual e quer sair para o real acaba se dando mal. Em tempos de photohop, nem a imagem de uma imagem na verdade é uma imagem. E não me peçam pra explicar isso porque não sei explicar isso. Mas para ilustrar minha tese, vide essas declarações de “eu te amo” que irão circular o carnaval inteiro e acabar na cama de um motel barato – isso se o próprio banheiro da concentração do bloco não tiver espaço para tanto.

O fato é que o sexo está em todos os lugares. E nós só chamamos ele de sexo porque este é o nome dele: sexo. Mas o que ele é jamais saberemos, assim como jamais saberemos o que é uma mesa além da própria palavra mesa.

Transar é uma coisa. Gozar é outra coisa. O gozo é solitário. A transa é em conjunto. O gozo é de olhos fechados. E os olhos só se abrem quando enfim se desfez a perturbação da convulsão do corpo.

Se há amor, é uma coisa. Se há tesão, é outra coisa. Mas no fim tudo acaba na virtualidade das palavras, ainda que sintamos corpo no corpo, boca na boca, coxa na coxa, peito no peito e uma vontade imensa de dar mais uma caso não haja muita vodka no sangue.

Conclusão? Defendo de maneira ferrenha a Operação Monitor Psicodélico.

Ao menos assim veriam que o Jim Morrinson tinha razão.

“Light my fire, baby! Light my fire!”

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Sou apenas um Jimi Hendrix que perdeu a guitarra.

Estão fazendo uma barragem pelos cantos de Cerro Largo. Mais especificamente por Roque Gonzalez. Chama-se Usina do Passo São João.

Veio uma empresa do desconhecido e disse aos moradores que aquilo seria um bem para a cidade. Disse também que alguns até seriam empregados da empresa e que as indenizações, além de darem margem à compra de propriedades muito maiores e melhores que aquelas propriedades dos moradores, na maior parte pequenos agricultores, renderiam a eles uma vida mais do que digna.

Acontece que nessa região haviam mais de trezentas famílias. Acontece também que algumas famílias nasceram nessa região, cresceram, casaram e tiveram filhos nessa região para depois de tudo isso também envelhecerem nessa região.

Talvez por conta disso um casal de idosos tenha se suicidado no galpão detrás de casa quando os homens da empresa disseram a eles que tinham vinte e quatro horas para abandonar a propriedade. Talvez por conta disso, degradados e marginais de todas as partes do estado estão indo para esta cidade para arranjar emprego junto a tal empresa.

Como um castelo kafkiniano, essa empresa espalha sujeitos bonachões de boteco em boteco. Diz pra esses sujeitos pagarem uma caninha ali, uma cervejinha aqui e aos poucos ganhar a confiança dos moradores.

Mas o mais estranho disso é que as coisas parecem ter funcionado.

O pai de um amigo meu, certa vez me procurou indignado querendo processar a empresa. O argumento era de que a indenização era irrisória perto do valor da sua propriedade. Afinal, se bens fossem apenas físicos, o que seria da música sem Cds, fitas-K7, vinis e afins?

Um canteiro de roseiras plantado pela bisavó que veio da Alemanha, não pode ser vendido como se vende um Picasso.

Picasso era genial, mas a vida supera qualquer genialidade porque simplesmente é.

No final das contas, os moradores acabaram abandonando suas propriedades. Terras que por décadas pertenceram a famílias tradicionais daquela região, hoje são apenas terra no sentido grosso da palavra, já que os maquinários da empresa a tudo devassaram. O cenário é d’A Guerra dos Mundos do Spielberg.

Quanto a isso de catar vidas, aliás, disseram os homens da empresa que até mesmo haviam biólogos para salvar os animais nativos daquela área.

Mas aí eu pergunto: quem salvará sentimentos nativos daquela área?

Memórias não curam neuroses e tudo simplesmente será afogado. Isso que nem há Las Vegas nos pampas.

As lembranças são mais que momentos que passaram. As lembranças são aquilo que nos dão a certeza de que ontem estávamos vivos. E quando lembranças de canteiros de roseiras, de poços e azulejos simplesmente são destruídas por uma retroescavadeira, algo de errado há, ainda que a memória persista como um chá de Proust.
Mas algo de errado há para quem?

Para mim, que quase fui pras brigas judiciais com essa empresa e cheguei a juntar moradores para montar uma ação conjunta devido ao fato dessa empresa não estar seguindo à risca o planejamento ambiental feito para a barragem?

Para os moradores, que ou se suicidam ou se contentam com alguns trocados que certamente, deslumbrados pelos números, irão gastar em poucos meses e nada mais, tornando-se então mais alguns desgarrados do Barbará pelas ruas desse Rio Grande?

Talvez meus julgamentos sejam excessivamente morais. Talvez essa coisa de querer ajudar os outros e abrir as cartas do jogo da minha vida aos outros ainda vai me destruir.

Mas se me destruir, pelo menos caio aos pedaços sabendo que não guardo nenhuma carta na manga. O que, se não demonstra honestidade, ao menos demonstra que tentei, o que é o mais próximo da realização que um ser humano pode alcançar.

Triste é pensar que aquelas terras tão bonitas, com um rio quase cristalino correndo, com suas ondulações e árvores centenárias, hoje é um apocalipse que as retroescavadeiras deram um jeito de erguer com seus altares de aço. Triste é lembrar dos idosos que se enforcaram no galpão por detrás de casa. Triste é saber que se primeiro foi a terra, nua como nossa pele que nem nasce ao nascer, a vítima dessa empresa, a segunda vítima dessa mesma empresa serão trilhões de litros d’água tomando conta de tudo.

E por qual motivo?

Para trazer progresso à região. Para trazer empregos à região. Para beneficiar os moradores da região. Para que eles tomem uma caninha e uma cervejinha de graça com algum bonachão conversador da empresa à meia-luz de um bolicho de campanha com um Miles Davis na gaita.

O que não se diz é que a luz das estrelas que morrem demora milhões de anos-luz para chegar até aqui. O que não se diz é que o valor do canteiro de roseiras ou da horta de legumes detrás da casa, jamais poderá ser mensurado em notas ou coisas que o valham. O que não se diz é que vivemos mais de três mil anos sem energia elétrica e hoje até pra comprar um pão nas lojas de conveniência, se não tiver energia, não tem pão.

A ironia de tudo isso é saber que o pai do meu amigo, antes indignado com a empresa e a desapropriação das suas terras, quase líder de uma revolta comunitária, de um barril de TNT que estava prestes a explodir, hoje está feliz, gordo e liso com a indenização que recebeu. Construiu uma casinha e um galpão no centro da cidade, sendo que aluga ambas para os funcionários da dita empresa. Como tinha outra casa na cidade, também alugou a mesma para esses sujeitos que vieram construir a barragem. E ainda por cima, se antes defendia que as árvores nativas não deveriam ser cortadas para preservar a flora e por conseqüência a fauna da região, hoje ajuda a afiar as lâminas que irão cortar aquelas mesmas árvores que um dia defendeu, sendo que para isso recebe um salário mais do que bom mês após mês. Resumindo, sua tranqüilidade é baiana.

Sei que os biólogos conseguiram salvar umas quatro capivaras e mais alguns animais da região. Sei que os moradores estão ganhando dinheiro como nunca com a construção da barragem. Afinal, empresas surreais, quanto mais essas que produzem energia, sempre tem dinheiro de sobra.

Ma qual conclusão tirar disso tudo?

Creio que uma frase, ainda que chula, resuma o assunto, mesmo que eu odeie os chumaços dos lampiões.

E de maneira alguma quero condenar o pai do meu amigo ou os moradores que, antes revoltados, hoje são cordeiros bem mandados pela empresa das retroescavadeiras. Entrar na Justiça, afinal, é estupro.

Só sei que vivemos em tempos que a indignação é tão fugidia quanto os livros de auto-ajuda. E no fim ninguém ajuda ninguém se não for pra emprestar a última bala do revólver.

Quem vende sorvetes não sonha. Quem lê quadrinhos não sente línguas.

As barricadas de 68 não destravaram a ritalina dos cartões-ponto. Além dos mais, Engels sustentava Marx. Portanto, mais vale lamber o saco do patrão e sorrir para a esposa que faz merengue na cozinha. Mais que isso seria extorsão. A Justiça é algo feio pra quem sempre foi cavalo-de-viseira. É estupro codificado penalmente, inclusive.

Por mim, que Deus os comprem e Roque Gonzalez tenha sandálias de fogo. Que a sorte caia como cai a sorte dos bilhetes da loteria nas latas de lixo das lotéricas.

Sou apenas um Jimi Hendrix que perdeu a guitarra.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Os cartórios são o câncer do mundo.

Ela se chamava Morte.

Todos os dias catava papéis pelas ruas que são as veias da Farrapos.

Certo dia, funcionárias de uma loja de calçados que havia ali por perto, descobriram que a Morte estava de aniversário. Por conta disso fizeram uma vaquinha e decidiram dar um tênis de presente para a Morte. Afinal, Jesus morreu na cruz e nasceu na manjedoura de Belém.

Então tudo tem a ver com tudo, ainda mais quando é Natal.

Quando chefe do departamento das funcionárias viu o resultado daquela vaquinha um tanto inusitada, considerando-se que havia um controle do dinheiro gasto em conjunto com todos os funcionários, ficou com uma expressão completamente descabelada:

- Escuta... Morte? Como assim?

- Ah, seu José... É que a gente não sabe o nome dela e então chama ela de Morte. Todo mundo chama ela assim. Ela é a Morte.

- Assim sim... assim sim... – e saiu logo em seguida para o seu escritório repleto de monitores e câmeras que espiavam cada canto da loja, como se fosse um James Bond da Costa Rica.

Depois de um tempo, fiquei sabendo que chamavam a Morte de Morte porque ela era tão, mas tão franzina, que certamente já estava morta e por algum motivo alheio a quaisquer explicações lógicas, continuava viva. Mas o fato é que dia após dia, circulando pelas putas da Farrapos, pegando caixas de papelão das lojas de contrabando do Paraguai daquelas veiazinhas da Farrapos, a Morte seguia sua vida como se seu nome fosse um nome e nada mais.

O interessante da história é que quando a Morte ganhou o tênis, ficou tão emocionada que mostrou a todos os funcionários da loja de calçados a sua Certidão de Nascimento. O nome dela estava ilegível certamente por conta de alguma cachaça da noite passada. A data de nascimento, então, mais parecia um borrão de travessões do que qualquer coisa. Ainda assim, a Morte mostrava sua Certidão de Nascimento com um orgulho ferrenho.

Isso até a hora em que perguntaram seu nome, o que ocorreu depois do décimo terceiro chopp:

- Mas Dona Morte... Morte é seu apelido, não é? Qual é seu nome verdadeiro?

Ela hesitou, olhou para o tênis cor-de-rosa que tinha luzinhas nos amortecedores e respondeu sem qualquer preocupação:

- Esqueci.

Após esse ocorrido, o qual se deu perto do Natal, conforme acima falei, a Morte continuou catando papéis pelas ruas do centro de Porto Alegre. Dias de chuva ficava ela e seu carrinho em baixo de uma marquise de galeria, esperando que a garoa passasse. Em dias de sol, vestia seu boné de vereador não eleito e passava de loja em loja buscando os papéis que lhe faziam ser catadora de papéis.

Certo dia, a Morte desapareceu. Por algum tempo ninguém estranhou, já que é normal dos seres humanos não estranharem quem nunca foi alguém. Contudo, após algumas semanas, a notícia chegou até aos jornais:

A MORTE ESTÁ DESAPARECIDA.

Houveram anúncios na televisão. Houve tentativa de achar seus parentes. Um Programa do SBT até chegou a dizer que a mãe da Morte era a Dona Ventura, uma senhora que morara toda sua vida no Sertão da Paraíba e que não sabia do paradeiro da filha há mais de vinte anos.

- Mas qual a idade da sua filha então, Dona Ventura?

- Não lembro... Mas acho que uns vinte e dois... quarenta...

A apresentadora, diante da foto da Morte, teve de retrucar a resposta da Dona Ventura:

- Mas Dona Ventura... ela parece ter mais de sessenta anos de idade...

Dona Ventura respirou, olhou para aqueles holofotes de areia que não tinha sequer um respingo de verde, como se fossem meros pesos incorpóreos que sua mão jamais poderia tomar feito a água que saía da fossa da casa, e enfim respondeu:

- A Morte não envelheceu. A Morte só catava papéis nas ruas que são as veias da Farrapos e um dia ganhou um tênis cor-de-rosa que a matou.

- Como assim a Morte não envelheceu? E por quê esse nome? E por quê o tênis a matou?

Meio estressada com tantas perguntas óbvias, Dona Ventura respondeu com uma pergunta:

- A senhora já passou sede?

E a partir daquele dia, ninguém nunca mais apareceu catando papéis pelas ruas do centro de Porto Alegre. Mas de lá pra cá, passaram-se uns três anos. Hoje dizem que existe um sujeito diferente, negro, alto, forte e com cabelos de Bob Marley em busca de papéis. Me falou um dia, tomando vodka, que tinha uma banda de reggae. Como não gosto daquele vuco-vuco da guitarra dos jamaicanos, que aprendam a tocar que nem o João Gilberto que então falamos, ainda que isso seja um tremendo preconceito meu.

Mas volto ao relato.

Quando o mesmo pessoal da loja de calçados perguntou o seu nome (agora me refiro ao negro) ou mesmo ouviu falar do seu nome, não precisou de muitos arfares de pulmões para chegar a uma frase:

- Eu sou o Fumaça....

Por isso concluo: a Fumaça é a Morte nos cheiros.

E são os cheiros que nos fazem amar.

Sem cheiros, sem beijos, sem abraços, a humanidade acabaria.

Mas o estranho mesmo foi o dia que o Palhoça, o segurança da loja de calçados, sonhou com a Morte.

A Morte disse assim pra ele:

- Eu preciso dos meus papéis! Eu preciso dos meus papéis!

Depois que me contou isso, só pude tirar uma conclusão.

Os cartórios são o câncer do mundo.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Mas as rosas são eternas e por isso mesmo não falam.

O amor é proporcional à dor. Só amamos porque sentimos dor e só sentimos dor porque amamos.

Estavam indo pra a praia passar um belo final de semana. Um desvio da estrada e todos morreram. Casais se casam e pensam que a vida será mil maravilhas. Um não suporta a escova de dentes do outro e tudo acaba.

Talvez por isso existam dias em que eu prefira tomar uma cerveja e um cigarro em um cinzeiro de pedra do que um vinho chileno e azeitonas na mesa de centro da sala. Talvez seja por isso que minha escrita anda tão carregada do que eu sou ao ponto de que tudo o que eu sou está completamente expresso nessas linhas.

E o pior disso tudo, é que talvez isso seja um erro. Mas o melhor disso tudo, é que talvez seja um fingimento.

Que não passo pelos melhores momentos da minha vida, isso é fato. Caso contrário, nem brasileiro seria.

Quanto mais acerto, mais erro. Os meus erros são proporcionais aos meus acertos. E o problema é que costumo acertar demais.

Não me iludo que malas prontas podem ser desfeitas. Nem mesmo me iludo que palavras ditas podem ser desditas por qualquer desvão da física quântica. Mas aceitar que o peito traz coisas que o desejo não consegue conceber, sinceramente me destrói.

E me destrói a tal ponto, que tento juntar os pedaços do que sou no patamar da escadaria da minha racionalidade.

Se sou de porcelana, junto com uma pá cuidadosa e com uma vassoura de papel.

Mas como geralmente sou de vidro, tenho de apelar para tudo aquilo que é sensivelmente grosso e que longe disso não funciona.

A casa que comporta essa escadaria com certeza não é grande. E muito menos tem porta dos fundos. Mas a realidade é que as pessoas que estão nessa casa é que fazem com que tanto meus erros quanto meus acertos tenham algum fundamento.

Caso contrário, nenhum beijo valeria. Caso contrário, nenhum abraço seria nada e ninguém mais nasceria sob a face da terra.

E caso contrário, nenhuma despedida se daria. Por isso hoje escrevo.

A vida é tão triste quanto uma lâmpada queimada em plena madrugada. Você quer ler um livro e nem velas tem em casa. Portanto tem de se contentar com a luz incômoda do computador, a qual mais perturba que ajuda qualquer leitura. E é nesse entremeio de viveres e sentires que acabamos acertando e errando, às vezes querendo cerveja e cinzeiros de pedra e às vezes querendo vinhos chilenos e azeitonas na mesa de centro da sala.

Dentre uma opção e outra, o difícil é manter o autocontrole. No mais das vezes, choramos feito fetos que recém foram espalmados pelos médicos. Nosso corpo se convulsiona histérico, nosso estômago parece criar vida própria e nossa vida parece se diluir em completas lágrimas provindas diretamente da bile, isto porque machucam as maçãs do rosto.

Depois de algum tempo, você até se pergunta se isso tudo valeu a pena ou se valeu a pena o tempo com o qual você passou com aquela pessoa. Pensando e pensando, você nota que valeu, mas assim como a vida, tudo tem um fim. E por mais que o amor seja eterno enquanto dure, como disse o Vinícius, é duro ser eterno em um amor que não dura muito e é mais enquanto que qualquer outra coisa. O presente é o passado esquecido.

Quanto mais humano e racional, menos imune a quaisquer litros de whisky nós somos. E quanto mais whisky houver, menos humanidade haverá. Portanto quais os animais que devemos criar?

É o que perpassa meu coração e minha mente nessa madrugada. Se essa história é verdadeira, caberá a quem me lê. Se ela é falsa, caberá àquele sujeito que passa o dia dentro do elevador perguntando pra qual andar queremos ir.

- Décimo novo – digo ao camarada cinqüentão que veste um quepe da marinha mercante dos sujeitos que apertam os números de elevador.

- Mas Doutor... Aqui não temos décimo nono... – responde ele meio acanhado.

- Não interessa. Primeiro aperta no dez. Pára lá. Depois aperta no nono e pára lá. Com a junção desses dois andares, criamos um andar décimo nono.

- E depois, Doutor?

- Depois me deixa lá embaixo que tenho que procurar as minhas lebres perdidas.

O sujeito me olha com cara de quem viu um cão louco, mas acaba seguindo minhas estipulações. Atá lembra do tempo que morava no interior de Minas Gerais e caçava lebres com espingardas de pressão. Mas não pergunta das minhas lebres em plena cidade. Ninguém pode duvidar de advogados e professores que não usam óculos, vestem terno e ainda por cima carregam uma pasta de couro, como é o meu caso. Ainda que isso soe arrogante, a arrogância é a mãe do desespero. E desesperados todos estamos. Por isso o andar décimo nono, o sujeito com quepe da marinha mercante dos sujeitos que apertam números de elevador e minhas lebres perdidas pelo asfato das esquinas.

Após cumprir com tais diligências, pego minhas coisas e vou embora.

Chego em casa, esquento um leite, assisto um programa qualquer e tento dormir. Como o sono não vem, sinto falta daquela que por um ano esteve do meu lado noite após noite.

Que o amor não acabou, com certeza não acabou. Mas que algo acabou e que as palavras disseram muito mais do que deveriam, isso aconteceu e reconheço.

Por isso reitero que queria criar, assim como o Emplastro Brás Cubras, o Emplastro Eduardo Frizzo, aquele que cura dores de amor, dores de cabeça, dores de solidão e acima de tudo dores de angústia.

E faça a mágica das mágicas: esquecer quem precisa ser esquecido.

Meu desespero talvez seria abrir as janelas e sentir o cheiro não de borboletas azuis, mas sim de flores azuis.

Flores azuis tem cor de cosmo e cosmo tem cor de morte, desespero e infinito. E se o cosmo tem cor de morte, desespero e infinito, eu morreria sem mosqueteiro nem nada. Morreria sem ter estudado em Coimba ou sequer conhecido a Argentina. Morreria como um indigente interiorano que tem algumas histórias pra contar, mas cuja imaginação supera qualquer realidade.

O amor é proporcional à dor sim. Só amamos porque sentimos dor e só sentimos dor porque amamos. E o pior disso tudo é que amamos viver.

Mas algo morreu essa noite e ainda existe água pelas pétalas.

Nenhuma máquina esquecerá disso. Nenhum neurônio matará essa safena.

Mas as rosas são eternas e por isso mesmo não falam.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Basta encontrar o livro certo, aquele que somente seus olhos poderão ler.

A biblioteca da vida é feita dos amores que perdemos.

Existem livros que alugamos e existem livros que compramos.

Os que alugamos, geralmente têm uma capa surrada e as páginas amareladas.

Os que compramos, por vezes vêm embalados em plástico, sendo que do conteúdo apenas podemos intuir a sinopse.

Entretanto, tem dias que preferimos alugar um livro do que comprar um livro. Afinal, isso é muito mais fácil. Se você aluga um livro, pode muito bem ler até a metade, gostar do desenrolar da trama, mas não ter um pingo de paciência com o final. Não tendo um pingo de paciência com o final, basta você devolver o livro que tudo fica perfeitamente resolvido e outros livros podem surgir. É quase que uma quesão de marca de cerveja.

Aliás, os adolescentes e os jovens de vinte e poucos anos são peritos nisso. Alugam livros e livros como se as obras fossem proporcionais às bocas que beijam nas baladas da vida. Isso quando o próprio sexo não se torna uma balada tão fluída, mas tão fluída, que perde todo e qualquer sentido. Se o jovem ou a jovem é virgem, então, nem se fala, uma vez que ela ou ele utilizarão o maior drama da obra, ou seja, a razão de ser da obra, com os fins mais utilitários possíveis. E quais são esses fins? A utilidade da perda do cabaço.

Já se você comprar um livro, terá de chegar em casa, desempacotar o dito para só então ver qual é o seu conteúdo. Se ele tiver páginas amareladas, dessas de edição portuguesa, é meio caminho andado. Contudo, caso não tiver, é possível que o primeiro parágrafo decepcione e você largue o livro comprado em um canto qualquer da estante, como se fosse um vaso de flores artificiais que nunca darão vida aos seus olhos, atraindo sequer abelhas para as suas pétalas de loja de um e noventa e nove.

Nesse caso, é o que acontece com a maior parte dos casais que estão juntos há várias décadas. O relacionamento se torna mais conveniência que relacionamento. As pessoas permanecem juntas por conta da casa e dos filhos que tiveram. Pensam que construíram algo juntos, quando em realidade apenas deram algumas cimentadas nos tijolos dos seus próprios túmulos. A imaginação é substituída pela técnica. E a técnica é ler o jornal no café da manhã sem dizer mais que bom dia. Tudo se torna questão de técnica, entendam bem, até mesmo o sexo, sendo que a única coisa que construímos na vida, nem que seja à base de sangue, de lágrimas e de cicatrizes que nem sempre o coração suporta sem um whisky, somos nós próprios, o que nada tem a ver com tijolos e cafés da manhã.

Antes disso tudo, porém, você pode consultar o Google. Afinal, o Google sabe tudo e o que não está no Google simplesmente não existe. O Google é a Biblioteca de Alexandria que a Cleópatra queria ter mas não conseguiu esperar. Se você consultar o Google e ele disser assim assado do livro e então você gostar, talvez seja um motivo para comprar o dito ou pelo menos alugar antes de comprar, já que nunca se sabe se o PROCON dessas literaturas será plenamente eficaz. Ainda mais quando o PROCON dessas literaturas tem cara de anjinho barroco, desses de pinto pra fora que jamais teve uma ereção, o que sinceramente muito me intriga – tirando fora o fato de que foram pintados por esses artistas medievais, os quais eram um bando de pervertidos sacanas, mais borrachos que qualquer fígado meu, seja do passado ou do futuro.

Mas ocorre que por vezes o Google não dá conta da busca e então você tem que apelar aos conhecidos.

Se a virtualidade da rede não lhe dá resposta, é a trivialidade dos contatos que faz com que você tire suas próprias conclusões.

Pergunta pra um ali:

- Conhece a Marisa?

- Hum... Acho que conheço...

- E que tal ela é?

- Parece ser uma pessoa legal. Tomamos um chopinho na festinha do escritório Trabalha nas lojas Marisa, inclusive.

- Que coincidência!


E aí você sai desapontado.

Distante de uma mulher, agora sua investigação se direciona a um homem.

Ou melhor: uma mulher se direciona a um homem.

- Conhece o Dois Irmãos?

- Quem? O mercado?

- Não, o camarada aquele que é gerente de banco.

- Sei quem é sim! Aliás, é meu gerente de conta. Um sujeito muito competente!

- Mas que tal ele é?

- Ele é bem educado. Até facilitou um empréstimo pra mim, isso que eu estava no SPC. E outra: tem um irmão gêmeo que é a cara dele! Não é incrível?!

E dentre uma e outra descrição, você não chegará a lugar algum.

Qual será então a atitude a tomar?

Desistir tanto de comprar livros quanto de alugar livros?

Creio que aí nós podemos tecer várias variáveis.

Por exemplo: quando uma mulher ou um homem lê um livro pela primeira vez, fica deslumbrado com tudo quanto lê. Acha que a capa e o enredo são plenamente geniais. Porém, com o passar das semanas, passa a ver que aquela capa e aquele enredo podem ser encontrados em vários outros livros. E além do mais, o livro tem tantas cenas de sexo e louça pra ser lavada depois da comida por ser feita e casa pra ser limpada, que tudo isso junto enche muito o saco. A oferta é demais e a procura é frenética. Portanto, melhor mesmo é devolver o livro. Por esses fatores, deixa daquela leitura e parte pra outra.

Quando o livro já é comprado, a coisa é mais ou menos diferente. Comprar um livro novo e encampado é o mesmo que morar junto com uma pessoa com a qual você não é casado mas você ama. O diferencial é que será aos poucos que você irá abrir o pacote no qual o livro está envolto. E quando acabar de abrir, é bem possível que tanto a história quanto a capa e qualquer possibilidade de enredo tenham ido pelos ares. A vida, apesar dos publicitários tanto quererem isso, não está na capa do iogurte, mas sim naquela marca quase imperceptível que os refrigeradores de mercado não nos deixam decifrar e que diz da validade do dito.

Exatamente por isso tudo, a biblioteca da vida é feita dos amores que perdemos. Às vezes venderemos esses livros novos e empacotados para sebos que irão revender para outros sebos e donos. Esses sebos e donos, em realidade, serão mais donos virtuais que reais. Se ninguém é dono de ninguém, que dirá de um livro, esse explosivo quieto pronto a se tornar TNT e que ri e nos agrada a cada cabelo prendido no travesseiro.

O sonho da minha vida é encontrar um livro tão raro que nenhuma outra pessoa consiga ler a não ser eu mesmo. Um livro que não seja Borgeano ao ponto de escorrer areia e nem tenha essa coisa de Teatro de Oficina, de ficar lançando pedaços de fígado de boi na platéia. Distante disso, quero um livro no qual eu possa entrever histórias no meio de histórias e enredos no meio de enredos, de modo que cada amanhecer, que cada coisa que eu sinto ou algum dia sentirei, renove-se na leitura de cada página, de cada linha que, caindo de sono, acabo inventando, criando uma praia que é coberta de neve e fica no centro de uma Floresta Negra imaginária, na qual o Heidegger me dará mil lições metafísicas.

A biblioteca da vida é feita dos amores que perdemos sim.

Mas são os amores que perdemos que fazem a biblioteca da vida. E isso é extremamente necessário. Caso contrário, nenhum encontro se daria.

No mais, as coisas são simples.

Basta encontrar o livro certo, aquele que somente seus olhos poderão ler. E pronto.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

E é isso que sinto com O Cheiro do Ralo.

A ralo é o catalizador dos cheiros. Mas é um daqueles catalizadores de Voyage 84 à álcool. Ou seja: fede pra caramba e nos dias frios demora pra pegar no tranco.

Foi isso que senti ao assistir O Cheiro do Ralo, dirigido por Heitor Dhalia e baseado na obra homônima de Lourenço Mutarelli.

Não que eu queira comparar o filme ao saudoso carro dos tempos Sarney. Longe disso, quero apenas dizer que tudo que entra, deve sair por algum lugar. E tudo que sai, por força da ação/reação do Newton, deve entrar por outro. Porém, se o primeiro fotograma do filme está para uma bunda em movimento, bunda esta que carrega uma bermudinha de paraíso, e o segundo fotograma do filme está para um boteco no qual o protagonista, o Lourenço, vai comer um xis-qualquer-coisa todos os dias para tarar na bunda da garçonete, que é a mesma da bermudinha de paraíso, a premissa dos meus argumentos não deve estar errada.

E desconfio que ela está muito menos errada, quando descubro que o Lourenço é dono de um comércio no qual compra coisas usadas de qualquer um que aparece, para revender coisas usadas a quaisquer outros que apareçam. O problema, ou a ascenóide dramática, como disseram certa vez uns jurados de um festival de teatro que detonaram com a minha peça porque ela não tinha a tal de ascenóide dramática, coisa que o Stanislavsky inventou, surge quando o ralo do banheiro do comércio do Lourenço começa a transpirar um odor horrível.

Ou melhor e pra ficar mais claro: um horrível cheiro de merda.

Ou um cheiro de merda horrível e todas as variações de costume.

A partir daí, inicia todo transtorno do personagem, o qual, sempre associando o ralo à bunda e a bunda à garçonete da bermudinha de paraíso, entra em um transtorno tão grande que quase é linchado por populares que desconfiam que uma das suas clientes havia sido violentada sexualmente – quando na verdade só queria vender os prazeres do seu corpo por uns trocados. A sorte do Lourenço é que a muvuca toda esvoaça ao som de uns tiros do seu segurança, um sujeito gay de bom gosto, visto que compra baralhos de mulheres nuas pra jogar um pôquer que só imaginar imagino – e ainda por cima com medo de imaginar.

É lógico que essa premissa toda incorre em mil outras premissas em suas entrelinhas. Mas o que me chama atenção no cinema, não é ficar discorrendo sociologicamente sobre quaisquer filmes ou mesmo encontrar ponteios metafísicos em uma obra. O que me chama atenção é o trato da imagem e o trato da luz que sob a imagem incorre. Se a fotografia é a arte de desenhar com a luz, o cinema é a própria luz em movimento, sendo que sem o cinematógrafo, o qual também só é pela luz, nenhum filme se daria. Portanto, é a partir desta abordagem, ainda que acima tenha feito um breve dissertar sobre o filme, que tento alcançar esta obra que acabo de assistir.

Em primeiro lugar, o cenário vintage, construindo um passado do qual lembramos mas ao qual não conseguimos tocar com a memória, muito me chamou atenção. Até mesmo pelas pin-ups que aparecem no filme: a primeira uma garçonete, aquela da bermudinha de paraíso, e a segunda uma aparente drogada louca por uns trocamos e uma seringa, o que se evidencia pelo fato de que o último objeto que ela tenta vender para o Lourenço, é um prato desses que os viciados do mundo separam monte a monte os montes do seu caixão.

Em segundo lugar, a câmera no mais das vezes parada, mais focada na escuridão que na luz ou no lusco-fusco de escuridão e luz que envolve o próprio Lourenço, muito me chamou atenção. Se não fosse assim, ele não declararia por tantas vezes que não gosta de ninguém, que não gosta da sua mãe e nem da mulher que abandonou quando os convites para o casamento já estavam na gráfica. Seria neurótico o Lourenço? Essa câmera revela mais do Selton Melo, no caso o Lourenço, do que ele imagina. A voz baixa e quase rouca do personagem, turco ao enésimo grau ao ponto de ter dinheiro nas caixas de charutos que já fumou por cima da sua mesa de contador decadente, dá o tom dessa imagem vintage e lusco-fosca, denunciadora de um mundo que talvez esteja pra ruir e por isso mesmo beire o irreal e o absurdo.

Em terceiro e último lugar, é de se dizer que os cenários se resumem ao local onde o Lourenço trabalha, ao bar da garçonete com bermudinha de paraíso e à casa do Lourenço. No mais, apenas Lourenço andando pela rua ao som de uns dissonantes rocks atuais, os quais parecem buscar o pop mas destruir o próprio pop a cada batida de guitarra. Talvez isso também diga do fato de que único cenário nitidamente iluminado do filme é o banheiro, aquele mesmo do qual provém o cheiro do ralo, o qual, como o olho incômodo que o Lourenço comprou das mãos de um cliente que anteriormente havia lhe oferecido uma arma, insiste em se manter ciente de tudo, como se o olfato, o único dos sentidos plenamente indescritível, fosse o que mais valesse em toda essa obra – e justamente por isso perturbasse tanto.

Essas minhas considerações, bem sei, e devem saber todos que me lêem, não passam de algumas impressões sobre o filme, o qual com certeza traz coisas bem mais profundas em suas entrelinhas e bordas. O próprio fato do Lourenço dizer a certa altura que com o olho que comprara de um cliente e com a prótese japonesa que comprara de outro (prótese de uma perna, friso), conseguiria construir seu pai, o qual supostamente morreu na Segunda Guerra Mundial, já renderia uma tese. Tese dessas que diz que a mentira é uma imagem e a imagem é uma mentira, como me falou certa vez uma professora psicanalista: “o cinema é totalmente inconsciente, Eduardo”. Mas como falei acima, prefiro não me ater a esses detalhes, mas sim às impressões que esses detalhes todos me proporcionaram.

O mais interessante de tudo, é que da primeira vez na qual a bunda da garçonete aparece sem a bermudinha de paraíso, aparece com uma calça toda branca, sendo que o único lugar totalmente iluminado do filme é o banheiro do comércio do Lourenço, lugar do qual o ralo transpira um horrível cheiro de merda ou um cheiro de merda horrível. Se o autor e o diretor estavam querendo falar que empilhamos quinquilharias em nossas vidas sem sentir o cheiro que sai das nossas próprias bundas, das quais escorrega parte do lixo de tudo aquilo que comemos, não sei. Mas chego a acreditar que tanto a lanchonete da garçonete com bermudinha de paraíso quanto o banheiro do comércio do Lourenço, sejam o mesmo lugar e por isso mesmo tenham apenas algumas ruas decadentes, ao som de rocks que querem ser pop mas não o são, ligando um ao outro.

Se o Lourenço compra e vende quinquilharias materiais e a garçonete esgana o estômago de todos com um xis-qualquer-coisa e um arco de costas para dar os ares da sua bunda, alguma coisa existe nessa confusão toda, que de tão confusa chega beirar o irreal justamente por mostrar uma realidade que desmorona.
Talvez por isso hajam disparos que querem se aproximar do ralo no final, sendo que tais disparos tem a ver com olhos postiços e bundas de pin-ups decadentes, as quais, pelo menos nos últimos minutos, são banhadas por umas lágrimas que os óculos não deixam escorrer, e portanto são artificiais.

Talvez o próprio ralo seja o olho e a prótese que o Lourenço comprou tentando construir seu pai que morreu na Segunda Guerra Mundial, o que é pura mentira.

Talvez nosso cheiro bom, de perfumes e sabonetes, seja o banho que não poderemos tomar quando enfim morrermos.

E o olho, então, seja o infinito fedor daquilo que nossa civilização construiu com o decorrer dos anos, empilhando coisas como se fossem corpos e corpos como se fossem coisas.

Aliás, lembro que meu avô tinha um Voyage 84. Fedia pra caramba. Sorte que ele vendeu. Só que não sei pra quem, apesar de lembrar que o pesar da venda foi como se despir frente a uma multidão: a vergonha é mais que vergonha e passa a ser a única realidade viável.

Surge então uma via-crucis ao som de David Bowie, na qual o ralo é o olho e o olho é o ralo, visto que a merda, basta a gente olhar ao redor, está por todos os lados. E chego a desconfiar que a bunda é o único paraíso, ainda mais se não for só bermudinha.

E é isso que sinto com O Cheiro do Ralo.