quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

SEXTA-FEIRA DE CINZAS.

Existe uma boca que teu tato não trespassa. Ecoa passado no que toca e sente. Brilha na fenda que o peito não traz. Não há cor ou cheiro, forma de ar ou pedra. Agora cerejas mortas na língua. Queres voltar? É tarde. Queres mudar? As cidades são iguais. Mas teus dentes caem um após o outro e tu não sentes nada afora a doçura da morfina. Albinos desfilam agulhas. Uma coelha na casa ao lado. Talvez dê crias, talvez não. Nesse lençol, embalsamado de azul, a lembrança terá voz de vinho branco seco e madrugadas pela rua. Não és capaz de ir além. Queres me chamar? Acenas com o olho. Queres abraços, conselhos, cigarros? Contenta-te com o fato de que estás nu e que um casulo do depois adorna teus tornozelos. Lembras quando caíste atrás do Colégio? Era Carnaval e tu vestias laranja. Lembras quando me conheceste e sentiste coisas que te fazem ser até hoje? Era ali que tu estavas. Mas hoje és incapaz de ultrapassar a idéia. Tua sensibilidade não orvalha poemas nos poros de quaisquer folhas. Teu canto é a métrica incerta daquilo que sabes: opacidade que a palavra tramou enquanto podias falar. As cortinas, pulmões do vento claros de morte, arranjam assombros para noites remediadas. Não há deslumbre nisso. Há vida naquilo que tu foste, não naquilo que tu és. Arranjar cadáveres para cobrir dívidas? Sonegar beijos para fazer acertos? Essa era tua meta. Mas agora, nesse pêlo raspado da virilha, nesse tubo que entra pela garganta, o que mais existe? Ninguém decidirá teu amanhã. Até lá, cerejas mortas ao sol de abril destilarão o que tu poderias ser. Arrependimento não basta: desapego que aceita o mundo. Desculpas são nada: porões infestados de utilidades. Para ti resta o Carnaval, as madrugadas de vinho branco seco, o calor do corpo no sofá e alguns sentires que sobreviverão às traças. De nada valeu teu coração se ele não traduziu toques. Mas tu viveste e foste feliz. Viajaste, conheceste pessoas, aprendeste alguns idiomas e foste aplaudido por platéias de morbidez. Agora não faz diferença. Tens pelo corpo veias roxas, carne ressequida, músculo de sangue que invade teus órgãos. O que te faz humano são lembranças: aquela de quando ganhaste certo livro, de quando encordoaste o entardecer e pensaste que poderias escrever uma obra-prima partindo da perfeita estrutura sobre a essência do amor. Disso jamais te livrarás, ainda que o cano que te desce pela garganta não tenha nada mais com que encher tuas vísceras. Percebeste? Tiveste no máximo dois amigos e uma paixão. Se ela teve nome de amor ou algo que o valha, tu jamais saberás. Mas naquelas tardes, quando minhas mãos escorriam pelas tuas costas adolescentes e tu finalmente te sentias vivo, algo mudou em ti e em mim: a idéia passou a ser corpo. Não há tempo para recuperação. O que há é a expectativa de que a coelha dê crias na casa ao lado. Dentro disso, aquilo que tu não fizeste, aquilo do que tu tinhas medo, aquilo que tu negaste pelos outros que te pareciam reais e vestiam máscaras venezianas. Quando cortarem teu cabelo, colocarem algodão nas tuas narinas, retirarem órgão após órgão sonegando o músculo do teu sangue, preenchendo ossos com palha e seringas, tua lembrança se fará eterna mesmo que tua obra jamais tenha se dado distante daquilo que chamaste de amor. Assim teu brilho aquietará, a terra fará sua parte e o tato do mundo será a paixão que tu jogaste fora por conta das medidas e da impossibilidade de ultrapassar a idéia. Dessa tua arcada sem carne, nascerão cerejas do futuro que jamais imaginaste, polvilhadas por madrugadas e sonhos. Ereção de tudo que tu virás a ser a partir de cada falha, de cada gosto do teu toque, o eco se fará presente para além dos sons que te chegam da rua, povoando teu ventre de vinhos e carnavais. A ossatura do amor, grávida de prazeres, será o nascer do teu corpo, arejando a forma da paixão amanhecida em mais de um abril talhado pela minha e pela tua boca.
Crédito da imagem: O Beijo de Judas de Giotto di Bondone (1266-1337), pintor e arquiteto italiano.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

LATITUDE SERENADA.

Desnecessárias linhas para qualquer contrapeso. Coisas exaurem. Como fumaça. Em mim? Em ti? Nós? Apenas a sensação de tudo ter sido. Presságio de frutos tardios, dourados ressequidos à infinita espera da (a)colhida, embora um senso vitorioso trespasse fracassos oportunos. Inútil a vigília das portas. “Insígnia da lua”, falariam. Ainda que a mestria não esteja para o desvão das frases, o vento continuará soprando. E talvez chova. Seria terra molhada, renovada pela violência da vida. Algumas plantas felizes, como dizia meu pai quando eu era criança. Mas faz tempo que deixei de ser criança e as plantas deixaram de sorrir: meu pragmatismo pára ao primeiro toque. Admitir mais seria dar corda à existência. E de corda, chega a imagem. De qualquer modo, atravessarei ruas. Algumas crianças também. Talvez um guarda guie nossa travessia. Quem sabe, alargando ânimos, haveria uma faixa de segurança. Pé ante pé, cruzaríamos o umbral daquele símbolo cravado no asfalto, arraigamento branco cinzento: cadavérico. Nascendo, a pele, primitiva e consciente, roça a tessitura do fim. Treme e pulsa pressentindo o fim. Tudo continuará, seja do jeito que for. Supostamente do mesmo jeito. Além de supor, nada podemos. Ao atravessar ruas, seja com crianças ou sozinho, não modificarei nada. Os átomos serão os mesmos. Passos podem mudar de terra, de sujeira na sola do sapato, mas ainda serão passos cortando segundos como um ponteiro que assalta minha esfera de ação. Um símbolo não segura nada. No máximo, intenção de comunicar. No mais das vezes, apenas jorro. Jorro e fim. Fecundar a fala é diferente. Tudo provém disso. Há um retrato na minha mesa. Mostra duas pessoas. Continuará a soprar o vento. Chove, ameniza o calor. Minhas expectativas são essas. O dever pode chamar porque hoje estou surdo e me bastam palavras. Persisto. Sempre há o fator surpresa, apesar das faixas de segurança. Sempre haverá alguém para esquecer a fechadura destrancada. Voltar à faixa é mais seguro. Menos patogênico, pois classificável. Fiquemos com a certeza do signo. Fiquemos com a certeza do símbolo. Choverá e as plantas sorrirão suas pétalas como quando eu era criança. Exatamente como meu pai dizia. Nesse momento, atravessarei ruas com algumas crianças. Tudo conspira. Mas não é necessário que viva. Mesmo que o pensamento diga o contrário, conspirar não está para pensar. E se um pneumotórax desabar em choro, haverá tratamento. De resto, o futuro. Ah! o futuro! Um caminhão que não pára na faixa. O pragmatismo. Veja a carne. Veja as veias azuis entre essa cor perolada que medeia teus seios. Não as tocarei e sei que se encontram por debaixo do teu calor marinho e ondulante. E quando tua respiração não der mais conta delas, continuarão ali até que a terra, mestra de ti e de mim, diga que o tempo acabou. Que a vida se foi. E que espalhar húmus é tua sina. Setenta badaladas ao final. E eu atravessando ruas, pensando em travesseiros. Até que o caminhão faça sua parte.
Crédito da imagem: Tripulantes da ISS fotografaram a atmosfera terrestre enquanto a nave Atlantis iniciava viagem de retorno à Terra. Foto: Nasa/Divulgação.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

RÉQUIEM PARA UMA NOITE ESCURA.

Repousa em ti revolta incandescente. Em ti crescem veias passadas. Faces passeiam teu corpo em procissão de dor e prazer. Frases ressoam poros em paredes de ontens indetermináveis. Estampa dos pêlos teus, dourados por um sol impressentido. É disso que falo. Há doçura na morbidez do presente, mágoa no riso que medeia caninos. O marrom da terra, da pedra, persiste entre a saliva que molha a boca descendo pelas entranhas. Lá fora vento, talvez silêncio de cada oportunidade. Passa uma lembrança de sol desprovido de luz, de lua desprovida de noite. Andas entre pessoas, reconhece a própria face na janela de uma casa e perguntas: “quem és?” A resposta é a veneziana fechada e um violino do lado de cá. A única permanência é essa: fetiche que tua voz pensa erotizar, crer além da crença, amolda cada falha que entreabre tua angústia. Quem sabe esquecer anos e calendários fosse recomeço. Não é apenas tato deslizando futuro, desviando caminho. Sondar com mãos suaves, estancar a respiração insone de todo negrume pressentido e silenciado. Não basta o desejo furtado da palavra. Não basta a fala que brota da antipatia de sentir. Uma encruzilhada de sorrisos traçada diante do medo. Sem novo mapa, união entre metria e carbono de olhos, a veneziana continuará fechando-se tarde após tarde, ocultando a partitura, razão do violino. Essa luz que ilumina tuas mãos é uma pista. Esse ar úmido que enche teus pulmões traz consigo o caminho. Tuas asas serão alimento para a rocha tingida pelo vermelho dos teus propósitos. Quando estiveres na altura da nuvem mais negra, um pássaro cruzará ao lado e dirá do erro de percurso. Será tão exato quanto o projeto das tuas asas. Distante da grama cairás. Ao lado, o gris do vôo manchará cada pedaço dos teus ossos, soletrando o único ofício que cabia à madrugada. Levantarás e sairás de casa. Cruzarás janelas sem se dar conta dos desfiladeiros. Insciente, novamente perguntarás: “quem és?” A resposta, antes música, freará perto de alguém que cruza na esquina para tatear um grito oco no asfalto quente. Um cemitério surgirá. Num ponto mais alto, feito de ânsia lúgrube, lápide após lápide, coluna após coluna. Por cima um véu de poeira cobre tudo e ficará maior quando teu queixo estilhaçar os vidros da infância. O veludo não será tua segurança e teu pai terá de te carregar nos braços, com o recalque dos olhos fazendo fronteira entre qualquer expectativa futura e presente. Mas crescerás, ganharás mais cicatrizes e passarás várias noites em claro. Dentro de alguns cadernos e no imã de alguns lugares, pedaços de carne furtadas de escuridão esperando reconhecimento. Essa carne brilha dentro de ti. Do sonho rebentará grandezas feitas de lã, rochas e rios. Do sonho tu sentirás a textura do mundo entrelaçando o teu. Essa pele, consciente de intenção, provará da magia de ser ontem, hoje e amanhã no único lugar destinado. Descerás escadas de sonho, verás um espelho cruzar às pressas sem dar conta do surdo apelo que vinha da tua garganta púrpura. Perguntarás: “quem és?” Mas a velocidade será ágil e doce, sepultando luz no coração dos sóis. Tua estrela nascerá, pulsando dentro e fora de ti a florescência da claridade em pétala e chama.
Crédito da imagem: Egon Schiele (1890-1918), pintor austríaco.