quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Atalho dos Torpedos.

Os computadores e os celulares nos roubaram muito da pouca humanidade que tínhamos. Culpa de duas expressões hoje cotidianas: atalhos e torpedos. Se com os computadores ficamos viciados em atalhos, com os celulares ficamos viciados em torpedos. O estranho é que ambas as palavras remetem a uma noção de guerra. Se os atalhos estão para o fato de querermos chegar mais rápido ao inimigo, os torpedos estão para o fato de querermos arrasar o inimigo de uma distância segura. Não é à toa que muita gente acaba namoros via torpedos.

Mas além de nos remeter a uma noção de guerra, os atalhos e os torpedos dizem muito desse imediatismo da atualidade. Perceber isso é fácil quando certas mulheres, ao invés de freqüentar academias ou sofrer com dietas, preferem fazer lipoaspiração. E se quisermos aplicar a mesma lógica aos homens, basta ver o crescente uso de anabolizantes. Logo, tanto um quanto outro fato remete tanto a atalhos quanto a torpedos, porque se por um lado a lipoaspiração e os anabolizantes consistem em atalhos para a beleza, por outro lado consistem em torpedos para a saúde.

Contudo, o mais interessante é que também buscamos atalhos e torpedos nas relações sociais que visam quaisquer conquistas. Uma boa ilustração disso está para o adolescente que ao invés de ler uma obra indicada pelo professor de Literatura, busca o resumo dessa obra na internet. E outro quadro diretamente ligado a isso está para o grande número de “trainees” que existem nas grandes empresas, os quais, em sua maioria jovens no início da carreira, crêem que se em três anos não ocuparem altos cargos empresariais, serão fracassados pelo resto da vida.

A razão desses imediatismos talvez tenha a ver com a expressão latina “carpe diem”. “Carpe diem” quer dizer “viva o dia”, “viva o agora”, “viva o momento” – ou seja: se o ontem já se viu e o amanhã não se vê, importa apenas o hoje. Neste sentido, essa é lógica que move essas pessoas que buscam a beleza ou o sucesso de maneira tão imediatista e desconsideram o processo que precede toda conquista. Porém, muito além da busca pela beleza ou pelo sucesso, a lógica do “carpe diem” faz com que os jovens, por exemplo, falem frases tão imbecis quanto “curta a vida porque a vida é curta” – a qual ilustra muita coisa da qual nem é necessário falar.

Entretanto, o que se esquece ou não se sabe é que a expressão “carpe diem” nasceu em um Império Romano já decadente, entre os séculos III e IV d.C. Também se esquece que se você não liga para o amanhã, é porque você não liga para o ontem e apenas se ilude com o hoje. Resumindo: você não tem a sua própria história. Deixando de ter sua própria história, as portas para o imediatismo estão abertas, fazendo com que você não tenha consciência do processo no qual está inserido justamente por querer atalhos para seus objetivos ao passo que lança torpedos em qualquer obstáculo que signifique um freio para sua intenção de “viver o momento”.

Portanto, longe do fato de ter propiciado a ilusão da aproximação, computadores e celulares propiciaram sim o roubo da pouca humanidade que tínhamos. Claro que existem aspectos positivos, mas a realidade é que esses aspectos são travestidos pela lógica do “carpe diem” – a qual, e disso falarei em outro momento, está ligada com o “ficar” das casas noturnas e com os cartões de crédito que nos estrangulam mês a mês. Nesse ponto é que entra a humanidade – ou melhor: a pouca humanidade que tínhamos –, porque humanidade é ligar para um amigo e falar com seu pai ou seu filho antes dele atender, assim como é sentar para escrever uma carta para uma pessoa que mora longe, ao invés de enviar aquelas irritantes correntes de e-mail ou mesmo crer na farsa que é lembrar do aniversário de alguém por conta do Orkut.

Por isso é que muito antes de nos propiciar qualquer aproximação, celulares e computadores, jogando expressões como atalhos e torpedos no cotidiano, fizeram com que nos tornássemos mais e mais distantes. Ao invés de relacionamentos passamos a ter conexões que podem ser desligadas a qualquer momento. O perigo é que aquilo que torna mais fácil uma parte, torna todo o resto mais difícil, já que o melhor atalho para os torpedos é explodir sem sair do lugar.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Assoalhos.

um giro de naufrágio previsto habita minhas entranhas
e não há vírus ou vacina que faça o passo cessar
e que faça a mão largar o volante
e a estrada deixar de existir repentinamente
apagando o rastro de quem por ali andava
e por ali dormiu
e por ali tinha olhos masturbatórios
que ardiam na volúpia das chibatas
que sempre estiveram amarradas ao gozo
ao gozo trépido e indecente desses jogos de azar
e desses domingos inúteis que transitam pelas fachadas dos calendários
e dos relógios
e grudam o compromisso na face de quem vivia
de quem sabia mergulhar
e sabia respirar embaixo d'água
mas que agora esqueceu e preferiu sentar quieto
e esperar que o céu desabe
para que todo clichê frasal que desde sempre
entrecorta o pulso de quem julga saber de alguma coisa
tenha razão de ser algo além de um substantivo e um verbo
que percorre qual latido melancólico e prisioneiro
a órbita da madrugada
que meu sangue não presencia e que minha saliva não toca
pois estou só
só como nunca estive antes
com as mãos e os pés úmidos
sabendo que nada posso contra o que sei
e o que não admito
para continuar a viver
a querer buscar
a querer desenterrar o segredo
que me move e que pode estar
bem em cima de mim nesse exato instante que desperdiço
no intuito descabido da conotação que me toma
e que me faz ser aqui
aqui e só aqui
como uma náusea ferrenha
que se tem em uma ressaca de negações
contra hélices e asas e chaminés
que fulminam as paredes do peito
com suas voltas
e suas vidas
expelidas
e tossidas e cuspidas
no mármore de todo altar

domingo, 21 de junho de 2009

"Ai, ai, ai, carrapato não tem pai!"

Dizem que carrapato não tem pai.
A razão disso não sei.

Dizem que carrapato não tem pai
Talvez pra meter medo na gente.

Mas como não sou tão criança assim, nem pena do carrapato sinto –
E órfão ou não, pra mim tanto faz como tanto fez.

Fico imaginando, isso sim, o sujeito que mata ou caça carrapatos.

(Será que a figura é válida ou a indústria desde sempre a extinguiu?)

Fico imaginando esse sujeito como um fascista, um mentor de holocaustos
Que um dia irá cravar estaca no corpo do último carrapato vivo.
E por descuido, afoito e esfomeado de tão atarefado, irá matar o touro:
Último par de bolas pelas redondezas.

Irá sobrar pasto, penso.

Mas as tetas, as tetas sempre secam,
Me disse um tio quando eu tinha dez anos.

Ensaio Curto n° 1: Do Medo.

O medo é a raiz dos nossos atos.

Seja quando procuramos um emprego ou escolhemos um curso superior para dar um rumo para nossa vida, estamos, quer queiramos quer não, fazendo isso por medo.

Ainda que alguns digam que se trata de uma opção, de um dentre vários caminhos que poderiam ser escolhidos, é o temor que move cada uma das nossas atitudes, sendo que foi esse mesmo temor que fez com que nossos antepassados, em tempos longínquos, inventassem uma religião e mesmo uma organização social para conter os arroubos relacionados ao próprio comportamento humano.

Se cremos em alguma coisa sobrenatural, o fazemos tão-somente para explicar o mundo natural que nos rodeia.

Se aplicamos normas e mais normas por sobre condutas e mais condutas, igualmente o fazemos baseados na crença de que o modo como estamos agindo é o melhor possível, já que determinada estrutura da sociedade assim determinou.

Porém, raras vezes paramos para pensar nas engrenagens complexas que existem por detrás dessas atitudes – e mesmo quando reconhecemos que o medo é a força que move nossos atos, o temor novamente se instala, aqui transfigurado em medo da própria descoberta dos motivos do temor.

Fato é que poderia ser feita uma autópsia psicanalítica ou filosófica das estruturas mentais relacionadas às estruturas culturais que nos subsumem.

Contudo, mesmo essa autópsia estaria impregnada por uma mesma força que as faz submeter o próprio medo ao escúrtineo – e essa força novamente seria o medo.

Logo, como resolver esse impasse?

Se até mesmo os equipamentos que construímos com o correr dos séculos, sejam materiais ou mentais, estão alicerçados no temor, existe alguma saída para além dele?

Acredito que não.

Acredito que o medo é a demonstração dos nossos atributos mais primitivos, os quais encontram respaldo no sexo e na fome, pois se o sexo é a ânsia da reprodução, a fome é a ânsia de não ter alimentos para sustentar o corpo.

Ainda que hoje o sexo seja vendido mais como pacote de consumo de uma sociedade que vive do consumo, o ato sexual em si, tanto simbólica quanto realmente, resta imantado da própria necessidade de reproduzir mesmo que essa reprodução na grande parte das vezes não se dê.

E com relação à fome, a qual nos dias atuais é fonte de progresso para muitas empresas nefastas que mais nos incutem a gula do que a fome, ocorre o mesmo, já que a própria gula é um atributo temeroso que o sujeito sustenta pela intermitente insatisfação com a quantidade de alimento que ingere.

Assim, movidos pelo medo, tendo ele como reflexo dos nossos instintos mais primitivos que encontram aporte fático no sexo e na fome, somos seres que jamais irão encontrar uma explicação satisfatória para a própria razão do temor.

Pode a ciência perscrutar o espaço sideral, podem nossos neurocientistas dizer que tudo quanto sentimos não passa de um apanhado de substâncias que ao acaso dos acontecimentos nos povoa o cérebro, podem até mesmo inventar teoremas filosóficos e psicanalíticos que digam de cada mínimo movimento humano: nada adiantará.

No fim, todas as nossas criações, todas as nossas invenções, todas as coisas das quais nos orgulhamos por termos feito enquanto indivíduos e enquanto civilização, sempre estarão alicerçadas em um único sentimento, em uma única sensação, em uma única realidade: o medo, essa mão fria que pousa em meu ombro esquerdo nesse exato instante.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Trinômio.

do ângulo que escora
e orbita
meus propósitos
divido a lua em três partes
para que de um lado esteja
minha presença
do outro
minha vida
e no meio meu fim

a

visto a manta do vento:
cimento do efêmero na liga das pedras e da chuva

corto o tecido da noite com meus olhos de musgo
de cafeína
de dopamina alheia a qualquer fator exterior
e partidária das cascatas de ar
que descem pelos telhados
pelas janelas
fazendo com que do fóssil
brote o ruído
brote o quase-sussurro
da natureza
do choque de elementos díspares e harmoniosos
por sobre a cabeleira da cidade quieta
sonolenta
que eu tenho de baixo para cima
da esquerda para a direita
em meus sonhos
em meus ideais vazios
e na pobre utopia sobre a qual tudo o que sou se sustenta

sinto o frio nos meus dedos
sinto o frio na minha garganta
e fecho as comportas
que contém meu ócio
meu opróbrio
para dar vazão ao pouco que ainda me resta
e se gruda
às paredes calcificadas dos meus ossos

visto a manta da pele:
liga efêmera no cimento do corpo e do espírito

b

a face da minha pele
que não é minha pele
em face daquilo que considero
como primordial
ao meu circular concêntrico
e sem centro
esfacela diante da imagem e do silêncio
das gotas
das luzes que ponteiam a madrugada
e se espalham
por todos os caminhos que minha mente inventa
e imanta
com as palavras
das quais o porvir
irá sugar todo valor
e irá enterrar e desterrar
para que as estrelas
finalmente possam ouvir
e fitar
minha face

minha fase

c

trago o mundo no peito

subo as escadarias do meu coração
com a coragem de quem
morre
como indigente
para readquirir sua personalidade
animal
e humana

quando preciso
desço aos porões que me dão medo
para resgatar a garrafa verde
onde guardei todo desgosto
toda galeria das circunstâncias
que de mim se alimentam
para lembrar que não tenho controle sobre nada
e que por mais que minhas
danças
que minhas encenações
procurem não traçar um postulado pisoteado
sempre terei nos pés
a lama de outros séculos
mesclada ao sangue dos que
como eu
pensaram ter encontrado novas terras
na fumaça de algum mapa

vez ou outra
paro num patamar iluminado
para reformular a confiança nos meus membros
e rabiscar algumas linhas tortas
sujas
que possam servir de espátula
para um excesso de tinta que talvez ocorra

trago o mundo no peito
e agora encolho
seguro os joelhos contra o queixo
para que ele não fuja de mim
pelas frestas
de cada verso

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Estatura Mediana.

Estatura mediana. Apartamento abarrotado. Pêlos nas pernas e na face. Revistas e livros pelo chão. Músculos por exercitar e ossos bem postados. Janelas fechadas e uma claridade miúda que entra de vez em quando e que vêm dos faróis dos carros da rua. Olhos verde-musgo e pele algo branca algo incolor. Paredes vazadas pela umidade que as ramagens do mofo pincelam. Pés nem pequenos nem grandes e joanetes. Poucas portas que rangem e que não fecham sem um empurrão de ombros. Cabelos gastos pelo descuido que empacota a sala e a cozinha. Goteiras no teto do corredor e uma bacia de alumínio amassada com um toco de cigarro dentro. Quadros pequenos pendurados tortos ao redor de um espelho retangular do quarto com cama de casal. Colchão sem lençol e três travesseiros sem fronhas. Sobrancelha esquerda com dermatite que junho duplica. Copo de extrato de tomate com borra de vinho grudada no fundo em cima do bidê da luminária. Sorriso de cinismo contido quando alguém duvida da sua voz. Carpete com cheiro de velho e de usado e de coisa mal seca. Dedos amarelados e mãos trêmulas distantes da gengiva que arde com bicarbonato de sódio. Guarda-roupas com roupas que estão e não estão na moda. Camiseta preta de banda manchada de esperma há três meses na gaveta mais baixa. Bibelôs na mesa do escritório e na estante do escritório e no frigobar do escritório e nas pilhas de papel impresso que o parquê do escritório sustenta. Porta-retrato com foto de mulher vestindo uma camisa branca e com dentes brancos à mostra. Telefone perto de um globo terrestre de metal e de uma caderneta com capa de couro com manchas de gordura e dedos. Caneta antiga com tinta seca que fora do avô em um cinzeiro âmbar. Cadeira que é verde-musgo que nem seus olhos e que é estofada e confortável e boa de sentar. Panelas sujas a cinco metros de distância. Geladeira velha vazia e uma garrafa de vodka pela metade e um pote de margarina rançosa em cima da mesa azul-celeste que era da casa da mãe. Fogão com quatro bocas com crosta de óleo de fritura. Uma caixa de fósforos perto da torneira que goteja e goteja e goteja. Fluorescente com defeito que forma sombras da chaleira inox no tanque cimentado na área de serviço. Panos sujos pendurados com o friso de manchas de vômito no varal há três dias. Banheiro que não dá descarga e que seria da empregada e que está com a porta escancarada com uma privada onde está sentado. Azulejos de um bege que se aproxima do amarelo e um jornal da semana passada ao lado do papel higiênico e da lixeira vermelha com adesivo limão. Sala e corredor e quarto e escritório e cozinha e área de serviço e banheiro que não dá descarga e que não é o único mas que a pressa requisitou. Batem na porta e é só correspondência. Sua e tem dor de cabeça e talvez precise de uma aspirina e de um chá de macela. É noite ou quase-noite e só agora percebeu que há trinta e duas horas não dorme e que suas pálpebras pesam. Não tem pretensão de atender a porta. Quem bate insiste. Pega o papel higiênico e se limpa e enche um balde na torneira da pia e joga na privada. Levanta as calças e aperta o cinto e vai até a porta com os pés descalços e abre a porta e não há mais ninguém ali. Na soleira há um envelope cor-de-rosa que pega e rasga e desdobra e lê. São letras e sílabas e sinais e palavras e frases num bloco-parágrafo de estatura mediana. E sete meses atrás o apartamento está vazio e duas semanas antes desses sete meses ali mora alguém que raspa os pêlos das pernas e não tem pêlos na face. Esse alguém não esparrama revistas e livros pelo chão e seus músculos não estão por exercitar. Ossos bem postados têm esse alguém que não deixa as janelas fechadas para uma claridade miúda vinda dos faróis dos carros da rua entrar de vez em quando. Não tem pele algo branca algo incolor e nem olheiras roxas de exaustão. Não tem olhos verde-musgo e não se deixa levar pelas paredes vazadas de umidade em ramagens de mofo que o ar que circula não deixa criar. Pés pequenos e sem joanetes ao invés de um meio termo sem lá nem cá. Não importa se as portas rangem e precisam de um empurrão de ombros para fechar porque as portas não precisam fechar por completo. Sala e cozinha estão embrulhadas com cuidado e perfume e goteiras no teto do corredor não existem e nem bacia de alumínio amassada em qualquer peça do apartamento. Colchão sem lençol e três travesseiros sem fronha e quadros pequenos pendurados tortos ao redor de um espelho retangular do quarto com cama de casal nem pensar. Há um espelho oval e uma cama bem arrumada com um edredon rosa-claro. Sobrancelha esquerda delineada e junho como um mês de trabalho duplicado e não de dermatite duplicada. Copo de extrato de tomate só cheio dentro da geladeira e uma garrafa de vinho na gaveta mais baixa do guarda-roupas que tem roupas que estão e não estão na moda e que são de tons escuros. Voz quer como todo mundo mas o cinismo só vêm quando atacam seu orgulho. Dedos finos e mãos suaves e distantes dos lábios vermelhos e espessos. Carpete com cheiro de velho e de usado e de coisa mal seca não pode porque tem renite. Não gosta de camisetas pretas de banda e nem de naftalina mas gosto de esperma já sentiu por umas cinco ou seis vezes e nem sabe o porque da curiosidade. No lugar chamado de escritório existem paredes vazias com uma tela em branco em um cavalete perto da janela. A cinco metros de distância há um fogão com seis bocas e uma mesa verniz de madeira que foi comprada na loja da esquina. Uma taça lascada na borda direita deixa a torneira gotejar e gotejar e gotejar. Fluorescente com defeito não há mas as sombras de uma chaleira esmaltada estão no tanque cimentado da área de serviço. Peduradas no varal duas toalhas de banho brancas e felpudas e um pouco gastas com uma mocinha ingênua costurada em cetim. Banheiro que não daria descarga e que seria da empregada já não dá descarga e já é da empregada. Ninguém na privada olhando os azulejos de um bege que se aproxima do amarelo está perto de um jornal de anteontem mas da porta da frente se escuta um barulho de fechadura que abre. Sala e corredor e quarto e lugar chamado de escritório e cozinha e área de serviço e porta que destranca com a pressa que a fechadura não têm. Entra e tira o casaco e joga em cima do sofá a sacola de supermercado. Rolam laranjas de encontro ao linho que esconde a paisagem que a lâmpada da luminária revela. Ouve um trovão e sente dor no pescoço enosado. Pensa que deveria ligar para alguém. Vai até o telefone ao lado do balcão com tachos de cobre e nesse momento o telefone toca. Silêncio. Riso. Sim, diz, mas com A no final. E o tempo passa e sete meses e duas semanas depois lê uma carta e logo se vê no vidro temperado da janela. Estatura mediana.

Exercício n° 104.

A vida é feita de embrulhos. Mas o amor não pede às pazes. Por isso as margaridas sofrem pelas janelas e ninguém escuta suas pétalas. Se escutassem, talvez nossos passos seriam sempre outonais e todas as dores passassem como passa o vento às quatro horas da tarde. Não interessaria se haveria um sax dando voz às paixões. Interessaria apenas cada presente de pele que as cortinas do terceiro andar presenciaram. Sobre tudo cairia a paz: quieta, encerraria versos de lábios em cada fresta de beijo.
***
A voz do domingo é felina. Agarra o edredon com unhas de quero-mais. Não deixa o sol ser mais que suco. E o ar é um meio-dia de lençol não lavado pela lembrança. Falta-nos ir além da espera para que a saudade não seja somente um copo de luz. Sem isso continuaremos cegos: mariposas em torno da lâmpada, náufragos do coração, ecos do que não fomos. E permaneceremos lacrados na ânsia do vôo.
***
A liberdade só existe quando a imaginação é solta. Do contrário, as grades permanecem fechadas tanto para a pele quanto para a terra – e as notas são apenas fragrâncias que não seremos capazes de sentir. Se existe um ponto final a ser tomado, ele precisa ser também um início. Longe disso, as gotas que caem na preguiça das horas jamais trarão vida. E existirão apenas esses pássaros que de propósito quebraram as próprias asas por puro medo.

domingo, 14 de junho de 2009

Exercício n° 99.

Queria dizer teu nome do alto de um edifício.
Mas não encontrei nenhum com mais de quatro andares.

Fui para a praia mais próxima da minha cidade.
Mas era inverno e as gaivotas me cortaram a voz.

Agora, quando quero dizer teu nome,
cubro minha boca com aquele cobertor xadrez.

E mesmo que eu saiba que teu corpo não está aqui,
existe o calor da minha voz que em cada sílaba
cheira teu nome de mar.

sábado, 13 de junho de 2009

Para Émile Zola.

entre o que sobe

e o que desce

estoura a artéria da terra

lavando os nervos negros

de quem não é carne: é hulha

(apodrecemos nós, germinais de um tempo natimorto)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Inconsciente da Cidade.

“Agricultor aposentado reside há uma década no seu Corcel 68”. Foi essa a manchete da contracapa da Tribuna Regional do dia 09 de junho de 2009. Já em outro jornal da cidade, o Jornal das Missões do dia 04 de junho de 2009, vejo que “a justiça autoriza o DEMAN a efetuar a desapropriação e a limpeza de residência”, tendo em vista que o morador acumulava lixo em todas as dependências da sua casa com o intuito de reciclar o mesmo, o que não fazia. Além disso, há alguns anos, lembro de ter lido a notícia de que uma senhora que residia próximo ao Colégio Santo Ângelo morreu de frio em uma dessas noites de inverno, sendo que quando as autoridades por lá entraram, descobriram que ela vivia com mais de vinte cães em meio a restos de comida e lixo. E para completar o quadro, semana passada a Zona Norte da cidade perdeu um dos seus mais famosos moradores de rua: o Perereca, o qual, mesmo tendo sido recolhido a um albergue municipal por assistentes sociais, veio também a falecer por conta do frio.

Diante desses fatos, não saberia o que pensar. Mas como muito que digo tem alicerce em muito que li, posso partir de uma constatação da filósofa Marcia Tiburi ao dizer que os moradores de rua são o inconsciente da cidade. Neste sentido, o que representam essas pessoas para a compreensão da realidade social que existe em Santo Ângelo, considerando que muitos de nós, seja simplesmente por virar os olhos, seja simplesmente por ter repúdio diante desses fatos, nada quer perceber? Talvez algo esteja acontecendo bem diante do nosso nariz.

Sei também que quando existe algum evento em frente à Catedral Angelopolitana, alguns agentes municipais passam por lá para recolher os moradores de rua. Sei ainda que algumas autoridades municipais dizem que não existe morador de rua em Santo Ângelo que não tenha auxílio dos meios governamentais que têm a função de lhes prestar atendimento. Contudo, partindo do fato de que estou falando de lixo real, de lixo humano, da falta de atenção às pessoas que, certamente, têm problemas mentais e dos perambulantes urbanos que vagam sem saber mais nem porquê, quem sabe fosse o momento de compreender nossa realidade urbana a partir dessas pessoas, as quais são aquelas que não conseguiram se agregar em algumas gavetas do nosso sistema social e então se tornaram o que são.

Claro que alguns dirão que essas pessoas não querem auxílio, que a rua é o seu habitat natural, sendo que, portanto, esse modo de vida consiste em uma opção que essas pessoas fizeram. Porém, entre a opção e a imposição existe o fato de que deve haver uma oportunidade para que as pessoas possam ter uma opção, mas que não existe oportunidade alguma quando um modo de vida provém de uma imposição. Logo, ainda que digamos que muitos desses moradores de rua ou desses doentes mentais optam por viver assim, temos de admitir a realidade de que assim eles vivem por conta de uma estrutura social que não lhes abriga.

Consequentemente, dizer que vivem desta forma porque querem viver desta forma é uma mentira tremenda ou quem sabe uma falta de consideração tremenda. Ontem mesmo, enquanto voltava do IESA, instituição na qual leciono, um sujeito cruzou por mim, vindo vai saber de onde, pedindo informação de onde era a Rodoviária, já que um patife qualquer disse a ele que a Rodoviária ficava para os lados do Bairro Harmonia. Aí me pergunto: por que fazer isso com um sujeito que, dadas as suas poucas vestes diante da noite, não tinha a menor condição de discernimento pelas ruas da cidade? Isso simplesmente espelha a falta de consideração que a maioria de nós tem com essas realidades, pois acreditamos que isso é coisa que aqui não ocorre.

Mas se existe esse pensamento, como reagir diante do fato de que o crack, essa droga que vicia crianças de menos de dez anos de idade pelos subúrbios, está disseminada por toda cidade? E como reagir também diante do fato de que muitos dos nossos adolescentes da classe média estão enfurnados no vício apenas para amenizar a futilidade da sua existência?

Por isso creio que se a ética é o pressuposto do Estado Democrático de Direito, é a moral que dá base para a ética. Desta maneira, indignação de botequim é mera trela de quem quer mais beber que falar. E é por causa disso que enquanto não mudarmos nossos pensamentos em relação aos nossos semelhantes, jamais estaremos nem perto de uma sociedade minimamente justa, pois continuarão a morrer de frio e lixo por aí, seja dentro de um Corcel 68 ou pelas ruas de junho. Afinal, os moradores de rua são o inconsciente da cidade – e de quebra, um sintoma da nossa loucura santo-angelense.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

A Serpente da Lei.

Escrevi sábado sobre a Latino América aqui neste blog, com o texto intitulado O Silêncio das Janelas do Povodo. Escrevi sobre a noção de Eduardo Galeano de que a América Latina é a terra das veias abertas, a qual resta descrita historiográfica e criticamente no clássico As Veias Abertas da América Latina.

Além disso, tracei alguns pontos de convergência entre pressupostos éticos embasados em Enrique Dussel na obra Para uma Ética da Libertação Latino Americana e as propostas políticas descortinadas por Zygmunt Bauman em seu Em Busca da Política. Tentei também fazer algumas ligações entre o pensamento de tais autores com alusões poético-fílmicas, referendando a obra de Glauber Rocha, especialmente no extraordinário Terra em Transe, bem como a poesia de Gujo Teixeira na voz de Luiz Marenco.

Entretanto, mesmo tendo feito tudo isso, o que fiz de maneira completamente despojada de qualquer academicismo, sendo que ensaiei um ensaio, ainda que isso soe redundante, falei que não tinha a pretensão de que as pessoas fossem para a rua, que quebrassem isso ou aquilo ou que simplesmente dessem a cara a bater diante de tantas barbaridades que a simbiose governo/mercado faz por aí.

Neste sentido, defendi que uma mudança deveria partir do que Ortega y Gasset chamou de fundo insubornável do ser humano – ou seja: da solidão da consciência individual deveria partir a reflexão moral que redundasse em uma ação ética a partir da qual toda e qualquer relação do outro resta fundada. Logo, não faria sentido qualquer mudança de cunho verticalizante, mas tão-somente uma mudança que considerasse a parte para apenas em um segundo momento considerar o todo, sendo que o todo seria um complexo universal onde singularidades deveriam conviver a partir de um pressuposto ético que encontraria adjetivo na palavra afeto, aqui tida como afeição e respeito ao outro – e assim em um alicerce ético.

Portanto, o que fiz foi defender redes de relações ao revés de relações em rede, teorema este que é diametralmente oposto à sua inversão lógica, sendo que propondo redes de relações e não relações em rede, não anulo as próprias relações em função da rede. Se fosse o contrário, o universal da rede anularia o singular daqueles que perfazem as próprias relações da rede, fazendo com que a singularidade restasse sobrepujada pela totalidade, com que o todo soterrase a parte.

Contudo, o que não deixei claro foi que essa reflexão seminal foi apenas o movimento de um raciocínio que estou tentando desenvolver partindo da premissa de que o Estado Afetivo de Direito é a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito. Essa premissa, a qual encontra eco no texto Direito e Afetos de autoria de Eduardo Gonçalves Rocha (disponível em
http://luisalbertowarat.blogspot.com/2007/09/democracia-e-afetos-por-eduardo.html), faz parte da constatação de que o Direito, tanto enquanto ciência quanto como realização social, somente pode se dar a partir de um aporte ético, sendo que a ética é o pressuposto do Direito.

Porém, se a ética é o pressuposto do Direito, essa mesma ética apenas encontra base a partir da moral, a qual está justamente para o fundo insubornável acima referido. Consequentemente, se no texto anterior propus que uma mudança deveria começar partindo dos indivíduos, isto se deu em razão do fato de que o raciocínio que procuro desenvolver segue três etapas que se desenrolam em função de três palavras chave: moral, ética e Direito.

Assim, o fato da abordagem sobre a moral estar fincada em um apelo imagístico e emocional, está ligada justamente à necessidade de construir o afeto entre os indivíduos com base na consciência de que política e poesia constituem uma unidade e não uma ambivalência quando se trata de convencimento e realização.

Caso o contrário fosse, não ouviríamos dos políticos em campanha tantas promessas utopistas que sabem que não poderão realizar quando adstritos ao sistema governamental, este abastecido por lobbys parlamentares que provém de todas as esferas legislativas nacionais, tanto municipais, estaduais e federais, utilizando-se, portanto, de forte retórica a fim de tatuar nos ouvidos da sociedade suas ambições para o futuro da coletividade.

No entanto, como bem disse Amilton Bueno de Carvalho, quem está no poder padece da esquizofrênia do poder, o que certamente fez com que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso dissesse que toda a sua produção intelectual até então tida fosse desconsiderada em relação às ações que ele tomaria enquanto chefe do executivo nacional.

Por conseguinte, se a política está atrelada a poesia e portanto com a retórica utopista que esssa mesma poesia pode fazer erigir, temos de admitr que é impossível que não haja a simbiose proposta entre política/poesia, pois antônimo a isso o que veríamos é o silêncio desses que são, aqui para seguir um postulado da Constituição Federal, os representates do povo no governo.
Mas há muito se sabe que nem de longe quem está no governo é representante do povo, porque quem está no governo mais está lá por conta de um forte aparato midiático que os levou até lá e que convenceu o próprio inconsciente das pessoas a eleger esses tais representates.

Sendo assim, ainda que o primeiro movimento do meu raciocínio implique em uma postura moral que deve ser construída pelos indivíduos partindo de uma postura crítica, o segundo movimento está para uma postura ética desses mesmos indivíduos em relação àqueles com os quais se relacionam dia após dia. Fosse o contrário, apenas diríamos que a atitude de um sujeito representante da Via Campesina há alguns anos atrás, em um laboratório da Monsanto em Porto Alegre, não passou de mero ato terrorista, desconsiderando, apesar disso, que a Monsanto, com seu slogan de que em breve faltará alimento no planeta Terra, somente quer nos vender produtos geneticamente modificados que podem ter consequências nefastas no futuro.

Assim, após a consciência individual tomada com a moral, a qual se dá no silêncio do quarto de cada um, admitindo aquilo que não somos incapazes de dizer ou fazer em público, o que deve nortear a atitude das pessoas é uma consciência ética de respeito pelas gerações atuais e futuras, visto que, do contrário, o próprio Direito, enquanto expressão da normatividade imposta pelo Estado, continuará na mão de uns poucos que fazem o que bem entendem com as leis que, obrigatoriamente, temos de seguir.

A realidade é que no Brasil, ao invés do governo temer o povo, é o povo que teme o governo, o que decorre do fato de que muitos dos nosso “proletários” dependem do próprio sistema para sobreviver e andam na linha reta das conveniências que lhes impõem. Desta forma, se o “proletário” tem uma “prole” para sustentar, como ele irá sustentar essa “prole” se não andar conforme o sistema, já que dele depende para a sua própria sobrevivência?

A realidade é que se antes as chibatas eram de couro, hoje as chibatas se traduzem no próprio salário do qual dependemos para sobreviver. Sendo assim, se o povo apenas se aquietar por medo, considerando que um povo com medo é um povo muito fácil de ser manipulado, nada jamais mudará, sendo necessário, assim, a saída desse mesmo povo às ruas para reinvindicar seus direitos, já que um indivíduo somente se torna um sujeito quando é detentor dos seus direitos.

Do contrário, continuaremos a falar mal dos governantes em mesas de bar e absolutamente nada irá tomar um rumo correto nesse país, já que discussões sérias como essa não são objeto de mesas de bar, mas sim de mesas acadêmicas e governamentais. Portanto, a ação calada e quieta é necessária sim porque é uma ação moral, mas tão-somente a ação moral nada muda, vez que deve ser seguida por uma ação ética e posteriormente por uma ação política por via do Direito.

Afinal, a serpente da lei sempre pica os descalços – mas mais ainda os desavisados.

Das Canetas.

A caneta

quando canta

no papel

parece vaga

morre

Dos Copos.

Desandas em largo riso e sei o que nos separa:
Há um imenso abismo entre teus dentes brancos
E meus marfins afiados que já se vêem caveira
Ao mastigar a terra

Mas não ressucitemos esses poetas lassos
De vinhos que se enfileiram
Em mesas de outros olhos:
Cavemos nosso próprio eixo
Entre o aço
O silício
O concreto
E o silêncio –
Esse silêncio enorme
De quando bebes
O copo de um só gole

sábado, 6 de junho de 2009

O Silêncio das Janelas do Povoado.*

Não há o que prever da sanha das nossas armas.

Nosso sangue é o pedregulho que atiça cada projétil.

Tudo quanto fizermos, tudo quanto quisermos, será mera decigrama daquilo que de modo algum somos.

Então seria o caso de idolatrarmos a negação?

Então seria o caso de renegarmos tudo quanto foi dito ou escrito até hoje?

Não, é claro que não, pois se assim fosse nos bastaria esquecer – e esquecer é muito fácil.

Ao contrário disso e mesmo que as coisas sejam assim, é preciso que chafurdemos no lodo daquilo tudo que fomos e fizemos.

É preciso que a lembrança e mais ainda a expectativa do fim, seja nossa missão de fé e não de temor, como disse Glauber.

Apenas do reconhecimento da presença ausente da morte em cada pedaço de vida, é que poderemos ir adiante sem temer o que nos acontecerá, sem olhar para trás apenas com olhos misericordiosos, mas sim com olhos que saibam da pólvora que dá cheiro e cor às nossas veias.

Somos da Latino América, somos de uma país que é tropical e subtropical e que não pode ser de outra maneira.

Se há séculos trazemos conosco a capa de almoxarifado do mundo, se há séculos, como tanto falou Galeano, somos a região das veias abertas, isso tudo não deve ser simplesmente jogado ao enfado de não suportarmos a realidade.

Talvez devêssemos aprender com os portugueses ou com as milongas do frio que por fina ironia trazem um nome africano.

Talvez apenas oitavas e sétimas aumentadas é que nos digam o que somos para além de qualquer palavra ou frase.

Tudo quanto fizemos, tudo quanto queremos, de maneira alguma é redutível ao verbo, o qual consiste apenas em uma maneira escassa de compreender o real.

Por conta disso é que a poesia/sonho é a lâmina pela qual todos os dias caminhamos, sendo que se nos distanciarmos de tal aresta, o que nos invadirá será tão-somente o medo e o nada.

Logo, não há política sem delírio, não há ação sem negação da ação, não há palavra sem silêncio, porque é justamente do contraste que vivemos aqui nesta parte do mundo.

Se anteontem um casal de mendigos morreu de frio na rua próximo alguns metros de uma residência quente e confortável, o que isso quer dizer?

Se janto em um restaurante de vidros para a calçada e vejo um menino pobre como olhos feitos vazio, o que isso me dirá?

Irei realmente me apiedar dessas pessoas ou construirei essas frases que poucos irão ler, como se meu manifesto não passasse de um testamento sem qualquer legado?

Não: isso não basta.

Não que eu queira ressuscitar um senso marxista da história, não que eu queira que façamos passeatas, que quebremos prédios públicos, que matemos aqueles que de uma forma ou de outra nos dominam, porque isso também não basta.

Antes disso, quero que cada consciência, naquele ambiente insubornável da solidão, tome conta daquilo que lhe circunda tomando conta do afeto que deveria unir todas as pessoas a partir de um mínimo ético que possibilite qualquer diálogo.

Quero, enfim, que a ágora grega seja revivida nos tempos atuais, conforme propôs Bauman: que não somente aqueles que são os representantes do povo tenham voz, mas que o povo, este povo aqui deste lado do mundo, também tenha voz.

Mas como terá voz esse povo se esse mesmo povo não tem as condições mínimas para articular a própria voz quando morre de fome e frio pelas ruas do país?

Mas como terá voz esse povo se as escolas públicas são mais fábricas de marginais do que qualquer outra coisa, nutridas por famílias desmontadas à mercê do vício por serem lixo humano na maré do capital?

A mudança começa aqui e não há possibilidade de qualquer mutação no sentido vertical.

Muito diferente disso, toda e qualquer mudança deve partir do cotidiano, deve partir das relações entre as pessoas no agora, pois antônimos a isso apenas aceitaremos crenças absolutas e nos tornaremos óbvios intolerantes, isto para lembrar do Boff.

E ainda que não haja como prever a sanha das nossas armas e a métrica nada sutil que existe entre as balas e o sangue, nessa parte do globo o único pensar possível, no rumo que Dussel traçou, é um pensar que parte da ética enquanto condição e possibilidade do pensar.

Apartados disso, repetiremos um mantra que há séculos nos foi costurado na boca e nada construíremos a não ser réplicas em cima daquilo que há muito já foi tido como certo.

Que o novo é difícil, claro que é, mas é do anseio que se constrói a possibilidade e é da ação que se constrói a condição.

Sem esses pensares, as janelas do povoado permanecerão caladas, encaixotadas pela mão invisível daquilo que dizem ser o real.

E ainda assim sorridentes.
*O título deste texto remete para música de mesmo nome, cuja letra é do Gujo Teixeira, musicada e interpretada pelo Luiz Marenco. Aqueles que são do Sul do Brasil (possivelmente) conhecem a mesma. Entretanto, caso não conheçam ou ainda para aqueles que não são dessas plagas conheçam, segue o link de uma versão da canção que encontrei pela internet, a qual, embora não tenha ótima qualidade, dá conta do que quero dizer: http://www.youtube.com/watch?v=_Uny7RQwVF0.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Dos Consensos.

Qual é o valor dos sonhos para quem esquece de si nas horas de todos os dias?

Qual é o amor de alguém que apenas faz as coisas desvirtuado do próprio prazer de fazer essas mesmas coisas?

Haverá prazer sem amor ou o amor nem constitui um prazer e sim um sofrimento, uma perturbação infinita que o gozo do corpo apenas ameniza?

Talvez seja necessário simplesmente esquecer, limpar o espírito dessas fraquezas inúteis que os de fora nos impõem.

Mas até que ponto os de fora não são os de dentro e os de dentro não são os de fora?

Poderei realmente tocar o outro e o outro poderá realmente me tocar, ou minha relação com o outro e do outro comigo se dará simplesmente traçando um diálogo sobre a própria impossibilidade do diálogo?

É possível que sejamos seres solitários, tais como uma mão, tais como a insatisfação de uma mão, cristalizados em um porvir que sequer imaginamos e ao qual a todo momento caminhamos.

Contudo, é possível também que mesmo desconhecendo o outro e até a si próprios, que mesmo não tendo a menor experiência do outro e muitas vezes de si próprios, ainda tenhamos a esperança de transitar entre o sonho e a realidade contemplando lugares que sequer imaginaríamos.

Os signos do real não são a realidade dos signos, pois caso o fossem certamente já teríamos tocado as coisas, o que jamais aconteceu.

Porém, cinzentas manhãs guardam todo e qualquer pensamento luminoso, pois não são todos os sóis que amanhecem para o dia.

As nuvens que se avizinham, o vento que sopra, o barulho das pessoas, dos automóveis na rua, esse coro desvirtuado de sentido que dá o compasso das nossas palavras e até da nossa dança cotidiana, diz muito mais do que parece dizer.

Mas até que ponto haverá um ponto onde dormita o silêncio?

Qual será o subterrâneo desse asfalto, dessa calçada, desse prédio no qual finco meus pés em um concreto que me sustenta no segundo andar?

Estarei nutrindo mais que apenas terra com as energias que me rodeiam, com as paixões que me tomam, com as palavras que vazam dos meus dedos e fazem doer meus braços ainda dormentes de frio e junho?

Saber das coisas e das pessoas, saber do outro, jamais saberei.

E é só disso que sei.

Continuarei nesse destino incerto, porque, afinal das contas, tudo é culpa do destino.

E confessemos: é muito mais fácil responsabilizar o imponderável do que caminhar diante do seu próprio fim.

Talvez aqui e apenas aqui, haja um consenso e nenhum aprendiz.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

O Lago.

Se a própria presença do outro destitui a possibilidade de sinceridade, haverá vida possível? A calma que me atribuo não é uma sensação de paz. O que sinto é um tumulto travestido de mansidão, como se folhas simplesmente caíssem na superfície de um lago, o qual, ao mover lentamente seu corpo em espirais, provocasse essas palavras. Haveria o sol que entraria por dentre as copas das árvores, e haveria também um canto distante, talvez um barítono buscando o tom inexistente de seu próprio ser. Os lamentos, as pessoas, os carros, tudo isso estaria distante, muito, muito distante, e limpo de todos os sentidos para poder tocar todos os sentimentos, realmente meu coração iria pulsar e não simplesmente bater. Mas é possível que essa seja uma grande demonstração de egoísmo, pois com os olhos desejosos de sonho tenho as mãos imersas em realidade. É totalmente possível que nessa floresta que imagino, nesse lago, nessas árvores, nesse chão do qual não falei mas que tinge o lago de lodo e dá sustentação para as árvores que em conjunto formam a floresta, houvesse uma cerca, uma cerca imensa mas feita de madeira assim como as árvores, isto com a única diferença de que seria madeira morta, de que seria madeira seca. Do outro lado da cerca o mundo explodiria, o caos colidiria com o caos e daria luz à um novo rol de divindades, a uma nova mitologia inominável, pois provinda simplesmente da racionalidade, pois nascida simplesmente do desejo de ser o que se é sem saber que ser o que se é também é ser o que o outro é. Entretanto, locado em minha floresta, apenas desfrutando de um ar limpo que as folhas iriam filtrar, nada disso eu sentiria, nada disso iria realmente me afetar, pois o manto verde e o manto azul, o manto da terra que emerge em vida e o manto do céu que respiro, dariam a devida proteção e o devido deslumbramento que seriam necessários para o próprio prosseguimento da minha vida. Porém, eu pensaria no que haveria de existir para além da cerca, mesmo que da própria cerca eu não tivesse certeza. Eu imaginaria, e imaginando certamente veria no lago o reflexo do pensamento em meus olhos, o que faria com que toda noite fosse vermelha, jamais imersa na escuridão. No meu quarto de relva, deitado em um travesseiro de pedra que em outro tempo dava perfeita sustentação aos meus anseios, iria arder na ânsia do depois, iria arder na ânsia do além, e envolvido pela tranqüilidade de tudo eu iria buscar a inquietude de todos. Mas onde estavam todos se havia apenas eu naquele recanto, naquela floresta, na beira daquele lago? Em algum momento a coragem me tomaria ao ponto de eu correr pela mata, rasgando pele e roupa nos galhos e nas flores para me jogar contra a cerca e deixar a marca da minha ânsia em um barulho seco que assustaria os pássaros? Não. Certamente eu iria ponderar. Eu iria comer algum fruto vermelho como a noite, quem sabe uma maçã, e o que ficaria de mim seriam apenas os dentes e a saliva em marcas na carne branca: nada de cerca ou ossos. O que eu desejaria seria o calor, o calor do dorso, o calor do corpo, o calor das mãos, já que minhas mãos, buscando abrigo e adeus, não iriam bastar para dar conta dos meus sonhos. Assustado por qualquer pesadelo, certamente me jogaria na água, formando espirais maiores, muito maiores e engolidas pela luz da lua que acharia graça daquela revolta coalescente, daquela revolta imanente, que da terra e pela terra almejaria alcançar o céu às margens de um lago.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Deliqüescência.

Deliqüesce o luar:
transpira uivos e assaltos
em muitas escuridões
sobrepostas na tela
que da veneziana espreito.

Um vento desdobra as coisas,
um carro passa veloz,
um homem costura passos
no impasse do que bebeu.

Sinto uma saudade
estranha da solidão
de quando meus pensamentos
não tinham qualquer motivo.

A vida me parecia
um parque no qual brincar
era estar sozinho
em meio à falta de luz –
tudo como presença
contínua em rolo e filme
onde de fora eu via
o instante em que nasci.