quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Os cartórios são o câncer do mundo.

Ela se chamava Morte.

Todos os dias catava papéis pelas ruas que são as veias da Farrapos.

Certo dia, funcionárias de uma loja de calçados que havia ali por perto, descobriram que a Morte estava de aniversário. Por conta disso fizeram uma vaquinha e decidiram dar um tênis de presente para a Morte. Afinal, Jesus morreu na cruz e nasceu na manjedoura de Belém.

Então tudo tem a ver com tudo, ainda mais quando é Natal.

Quando chefe do departamento das funcionárias viu o resultado daquela vaquinha um tanto inusitada, considerando-se que havia um controle do dinheiro gasto em conjunto com todos os funcionários, ficou com uma expressão completamente descabelada:

- Escuta... Morte? Como assim?

- Ah, seu José... É que a gente não sabe o nome dela e então chama ela de Morte. Todo mundo chama ela assim. Ela é a Morte.

- Assim sim... assim sim... – e saiu logo em seguida para o seu escritório repleto de monitores e câmeras que espiavam cada canto da loja, como se fosse um James Bond da Costa Rica.

Depois de um tempo, fiquei sabendo que chamavam a Morte de Morte porque ela era tão, mas tão franzina, que certamente já estava morta e por algum motivo alheio a quaisquer explicações lógicas, continuava viva. Mas o fato é que dia após dia, circulando pelas putas da Farrapos, pegando caixas de papelão das lojas de contrabando do Paraguai daquelas veiazinhas da Farrapos, a Morte seguia sua vida como se seu nome fosse um nome e nada mais.

O interessante da história é que quando a Morte ganhou o tênis, ficou tão emocionada que mostrou a todos os funcionários da loja de calçados a sua Certidão de Nascimento. O nome dela estava ilegível certamente por conta de alguma cachaça da noite passada. A data de nascimento, então, mais parecia um borrão de travessões do que qualquer coisa. Ainda assim, a Morte mostrava sua Certidão de Nascimento com um orgulho ferrenho.

Isso até a hora em que perguntaram seu nome, o que ocorreu depois do décimo terceiro chopp:

- Mas Dona Morte... Morte é seu apelido, não é? Qual é seu nome verdadeiro?

Ela hesitou, olhou para o tênis cor-de-rosa que tinha luzinhas nos amortecedores e respondeu sem qualquer preocupação:

- Esqueci.

Após esse ocorrido, o qual se deu perto do Natal, conforme acima falei, a Morte continuou catando papéis pelas ruas do centro de Porto Alegre. Dias de chuva ficava ela e seu carrinho em baixo de uma marquise de galeria, esperando que a garoa passasse. Em dias de sol, vestia seu boné de vereador não eleito e passava de loja em loja buscando os papéis que lhe faziam ser catadora de papéis.

Certo dia, a Morte desapareceu. Por algum tempo ninguém estranhou, já que é normal dos seres humanos não estranharem quem nunca foi alguém. Contudo, após algumas semanas, a notícia chegou até aos jornais:

A MORTE ESTÁ DESAPARECIDA.

Houveram anúncios na televisão. Houve tentativa de achar seus parentes. Um Programa do SBT até chegou a dizer que a mãe da Morte era a Dona Ventura, uma senhora que morara toda sua vida no Sertão da Paraíba e que não sabia do paradeiro da filha há mais de vinte anos.

- Mas qual a idade da sua filha então, Dona Ventura?

- Não lembro... Mas acho que uns vinte e dois... quarenta...

A apresentadora, diante da foto da Morte, teve de retrucar a resposta da Dona Ventura:

- Mas Dona Ventura... ela parece ter mais de sessenta anos de idade...

Dona Ventura respirou, olhou para aqueles holofotes de areia que não tinha sequer um respingo de verde, como se fossem meros pesos incorpóreos que sua mão jamais poderia tomar feito a água que saía da fossa da casa, e enfim respondeu:

- A Morte não envelheceu. A Morte só catava papéis nas ruas que são as veias da Farrapos e um dia ganhou um tênis cor-de-rosa que a matou.

- Como assim a Morte não envelheceu? E por quê esse nome? E por quê o tênis a matou?

Meio estressada com tantas perguntas óbvias, Dona Ventura respondeu com uma pergunta:

- A senhora já passou sede?

E a partir daquele dia, ninguém nunca mais apareceu catando papéis pelas ruas do centro de Porto Alegre. Mas de lá pra cá, passaram-se uns três anos. Hoje dizem que existe um sujeito diferente, negro, alto, forte e com cabelos de Bob Marley em busca de papéis. Me falou um dia, tomando vodka, que tinha uma banda de reggae. Como não gosto daquele vuco-vuco da guitarra dos jamaicanos, que aprendam a tocar que nem o João Gilberto que então falamos, ainda que isso seja um tremendo preconceito meu.

Mas volto ao relato.

Quando o mesmo pessoal da loja de calçados perguntou o seu nome (agora me refiro ao negro) ou mesmo ouviu falar do seu nome, não precisou de muitos arfares de pulmões para chegar a uma frase:

- Eu sou o Fumaça....

Por isso concluo: a Fumaça é a Morte nos cheiros.

E são os cheiros que nos fazem amar.

Sem cheiros, sem beijos, sem abraços, a humanidade acabaria.

Mas o estranho mesmo foi o dia que o Palhoça, o segurança da loja de calçados, sonhou com a Morte.

A Morte disse assim pra ele:

- Eu preciso dos meus papéis! Eu preciso dos meus papéis!

Depois que me contou isso, só pude tirar uma conclusão.

Os cartórios são o câncer do mundo.

7 comentários:

Biba disse...

Oi Eduardo, a Morte é tão familiar, assim franzina, assim humilde. Tenho visto muitas delas pela vida. Você tem um jeito de escrever muito marcante.
Beijo grande
Carpe Diem!!!

gloria disse...

eu entendo que as palavras adentrem como terra as tuas unhas, que o teclado seja a ferramenta dos arqueólogos de palavras preciosos. que nem nós. a necessidade de se nomear tudo, de desvendar, atribuir um sentido compactuado tira algo de vida de tantas coisas. a morte é um papel em branco. esse é o mistério que nos convoca. a palavra que despenca. que arranca dos cartórios que marcam a existência da vida, a possibilidade de cercear, instituir a vida. amei tua escritura, fora dos carimbos e papéis timbrados. bjs, belo!

Ana Valeska Maia disse...

Oi Eduardo, teu texto me deixou inquieta, fiquei pensando nessa mania da humanidade de registrar, quantificar. Mas tem muita coisa presente nas entrelinhas das tuas palavras, muitos sentidos para desfiar.
Sacia uma curiosidade minha: vc ensina o que...
bj.

Anônimo disse...

Caro Colega e querido amigo!
Em nossa profissão aprendemos, melhor do que ninguém, o quanto é a vida é feita de papéis...
e não me refiro apenas aos formulários, certidões, declarações, despachos e afins.
Refiro-me também aos papéis que assumimos, aos personagens que vestimos.
Às vezes ganhamos o palco, outras somos apenas mais um figurante, tal qual a Dona Morte, tentando, por entre vielas de uma grande metrópole, achar um jardim no meio de tanto papelão.
Adorei o blog, saudades de todos, grande beijo.

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Cara confadre etílica Ju Zatt. É um prazer tê-la nos meus humildes vidros enegrecidos. Fato é que distâncias sentimentais destroem mais que distâncias geográficas, como disse uma amiga esses dias. Mas fato também é que os nominados de hoje podem ser os sem-nome de amanhã, o que nos leva a essa eterna angústia de ter sempre de ser mais que o outro - e, se possível, matar o outro, como mostra o diretor Costa-Gravas no filme O Corte. Entretanto, aqui no meu canto de livros, de teclado e um computador, com algumas canetas ao redor, teço minha solidão feliz pelo mero fato de saber que existo. Afinal, continuo respirando, e apenas isso já merecia uma caixa de Polar. Este ano, não sei por quais motivos, será ótimo. Pode parecer bobo, mas é o que sinto. Espero que tenha gostado mesmo do esopaço e volte a frequentar meu humilde espaçp. Um beijo enorme pra ti, guria linda.

Ana Valeska Maia disse...

coincidência: também ensino história do direito...

Nei Duclós disse...

Mas que coisa impressionante esse texto sobre a catadora de papéis. Sobre Vida e Morte. Sobre permanência e indiferença. Demais.