domingo, 29 de março de 2009

Pela Marquês do Herval.

Não existe pessoa alguma que não reclame da falta de tempo. O que parece é que somos prisioneiros de uma corrida desenfreada e imensa, sendo que caso alguém caia nessa maratona, dificilmente será visto e acabará pisoteado pela multidão. E essa sensação de que a corrida nunca está para o tempo que disponibilizamos para correr e que, por conseqüência, pode gerar o desamparo da queda em meio a tantos que de maneira alguma poderão nos ajudar, já que terão de continuar com a corrida, é que gera, pelo menos ao meu ver, essa profusão de doenças psíquicas no mundo atual – muito embora eu admita que não seja de maneira alguma especialista na área.

Ontem mesmo, enquanto cruzava pela Marquês do Herval, olhei para o chão e vi uma cartela de Rivotril 0,5 mg com dois comprimidos ainda por tomar. Os demais, ao que me pareceu, foram engolidos vorazmente por alguém que desconheço. O motivo pelo qual esse desconhecido engoliu no mínimo oito comprimidos de Rivotril 0,5 mg de uma só vez, certamente jamais saberei. Entretanto, isso não me impede de cogitar algumas hipóteses.

Essas hipóteses, contudo, jamais estarão para a realidade desse desconhecido. Os seus passos podem até ser traçados pelos meus passos de uma maneira praticamente idêntica, mas tal maneira de forma alguma será a mesma, visto que cada um de nós detém uma singularidade alheia a quaisquer comparações. Nesse sentido, acabaria por decair na constatação inicialmente feita, a qual, mesmo que sejamos seres singulares, universaliza uma percepção corriqueira, uma vez que é essa sensação de que a corrida nunca está para o tempo que disponibilizamos para correr, que gera o temor do desamparo da queda em meio a tantos que de maneira alguma poderão nos ajudar se ela ocorrer, considerando-se que podem cair como nós caso pararem. E quanto ao Rivotril 0,5 mg, não passa de mais um analgésico, seja para os males da alma ou do corpo que inevitavelmente estarão contidos em um mesmo local – ou seja: nós mesmos.

E quem disse que alma e corpo formam duas unidades e não apenas uma? Quem disse que existe uma alma impregnada em nosso corpo que com a morte irá se descolar do próprio corpo, assim como alguns adolescentes são mais descolados que outros justamente porque são mais espontâneos e fazem mais bobagens que outros? Que me perdoem os teólogos seja de qual crença for, mas os indícios da ausência dessa dicotomia em nossa constituição fundamental são gritantes – e certas vezes chego a desconfiar que tudo isso, mesmo o que estou dizendo, não passa de pura metafísica furada e “as coisas são o próprio sentido oculto das coisas”, como falou Pessoa por meio do Caeeiro.

E por quais motivos são gritantes os indícios da ausência dessa dicotomia do corpo e da alma em nossa constituição fundamental? Porque nós somos alma e corpo ao mesmo tempo. Porque não existe mal psíquico que não tenha reflexo físico. Porque quando estamos frustrados, quando nos encontramos naquele limbo sentimental de quarto escuro e chuveiro pingando, simplesmente não produzimos, possibilitando então a construção de uma indústria motivacional que tenta, a partir de palavras nem sempre providas da devida ética, colocar nosso ânimo em dia e fazer com que nossos passos sejam para frente e não para trás e para baixo. Mas caso essa indústria motivacional não funcionar, relevando-se que as mais diversas religiões tem se valido dela por milênios com extremo sucesso, atualmente ainda podemos apelar para os psicofármacos, os quais, apesar de até amenizarem por algum tempo esses males do nosso tempo, jamais farão com que nos tornemos curados seja lá do mal que for, o qual pode estar tanto para a depressão quanto para as drogas e vice-versa.

Desta maneira, ao invés de buscarmos apoio em uma indústria motivacional que cresce de modo estrondoso ou mesmo em medicamentos que mais mal do que bem irão nos trazer, talvez seja hora de olharmos para aqueles que caem aos nossos pés nessa corrida coletiva e imensa dos tempos atuais. O desamparo que sentimos não provém somente da falta de tempo ou mesmo do temor com relação ao possível desamparo da queda, mas sim da falta de laços de pele entre as pessoas, laços esses que, longe de serem fugidios como os que movem os jovens pelas casas noturnas da vida, tenham o respeito e a ética como vínculos maiores, já que distantes destes dois traços persistiremos desconhecidos como esse sujeito que pela calçada da Marquês do Herval pensou que remédios iriam aliviar a sua dor de existir.

6 comentários:

Américo disse...

Caro Eduardo. Concordo plenamente com o que escreveste. É incrível que, mesmo sem nunca termos conversado pessoalmente, seja enorme a coincidência no acordo de nossas idéias. Caeiro, por um tempo, foi meu “filósofo” preferido, junto com Nietzsche e Wittgenstein. Eles todos se empenharam em desconstruir os pilares da metafísica, de que há um sentido oculto para as palavras, levando à separação entre mente/corpo, essência/aparência, etc. etc. O sentido/significado está no contexto de uso. Em vez de beber da fonte ilusória da auto-ajuda, ou se deixar enfeitiçar pelo prozac, “é hora de olharmos para aqueles que caem aos nossos pés nessa corrida coletiva e imensa dos tempos atuais (...). O desamparo vem da falta de laços entre as pessoas”. Para mim isto é sábio porque está repleto de sensibilidade. Aliás, é o que está faltando hoje em dia: nem tanto de mais informação, mas sim de potencializar (“dessublimar”) nossa sensibilidade! PS.: em Ijuí há um jornal virtual que tem um espaço para “artigos de opinião”. Os diretores são meus amigos. Não queres publicar este texto também por lá? Se sim, faço a intermediação. O endereço é www.ijuhy.com. Podes mandar o texto para o seguinte e-mail: jose.fiorin@hotmail.com.br. Abraço!

Anônimo disse...

Eu sabia que logo você colocaria aqui um texto assim, como esse tema, pois que falamos dele em quase todos os nossos encontros. Dos textos teus que já li, esse me pareceu o mais redondo. Enxuto, franco e espontâneo. Aceita o convite do Américo aí e publica, sem mudar uma linha. Abração.

Leandro

Biba disse...

Saudades de você.

Abraço
Carpe Diem!!

pensar disse...

Edu,

Adorei.Isso me bate a porta todos os dias e venho olhando, percebendo e permitindo ver cada vez mais.E te pergunto dentro e fora existe?Se sim onde?Para mim nao ha definicao.
Estou por descristalizar pensamentos, permitir ouvir o silencio, ver beleza no simples, viver no agora momentos sagrados pelo simples fato de ser.
A felicidade nao esta em nada alem de vc.
Falta em meio a multidao o acordar para a vida.

Um abraco com carinho

Mari

Anônimo disse...

rs...
ainda bem que existe tempo, alma, corpo e rivotril..
rsrsr

beijo!

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Caro Américo. Tenho muito interesse sim em publicar esse texto nesse jornal que referiste. Como entro em contato com você? Procurei seu e-mail por aqui mas não achei. Aguardo resposta para conversarmos mais. Um abraço, Eduardo.