terça-feira, 17 de março de 2009

Melhor que isso, apenas isso, Françoise.

Você me despiu com sua beleza. Não sei como suportei a vergonha. Uma namorada dos dezesseis anos me dizia que o amor era patético. Somente fui confirmar sua frase anos depois.

Você me despiu com sua beleza, porque estava deitada nua sob o telhado como na canção do Leonard Cohen. Mas sua beleza não me despiu somente porque era bela. Ao contrário disso, sua beleza me despiu porque carregava uma tristeza extrema de se saber finita diante da luz da lua.

Eu vi seus seios entre as sombras das suas mãos. Eu vi suas mãos que apoiavam sua cabeça como um travesseiro de ossos e carne. Eu vi suas coxas relaxadas e seus olhos que ora abriam ora fechavam, feito faróis que diziam o momento exato da lua brilhar mais ou brilhar menos.

Mas o que você não sabia, é que a lua não brilha. Você não sabia o óbvio que é o fato da lua brilhar apenas por conta do sol. E talvez por conta disso, essa dor me invadiu de repente ao lembrar do seu corpo sob o telhado, pois é possível que eu tenha inventado sua beleza e ela de maneira alguma existiu um dia.

Não que eu queira sonegar os fatos: isso realmente ocorreu, assino embaixo. Uma amiga do passado me confessou, aliás, que gostava de fumar no telhado. Disse que se sentia como uma gata. Todas as noites, abria a janela e sentava diante das estrelas, querendo que sua solidão se aprofundasse mais e mais em cada fumaça expelida.

Lembro que quando a visitei, escrevi um poema no seu quarto. Era um poema que falava de vidros quebrados e é só disso que lembro. Dei de presente pra ela esse poema e naquele dia ela pendurou ele com um alfinete azul em um mural por cima da escrivaninha. Hoje, porém, não sei se esse poema existe, mas da última vez que vi essa amiga, ela estava com cinco cores diferentes no cabelo.

E pensar nisso não me traz nada de bom. Lembrar de uma beleza que me despiu no telhado e de uma amiga que buscava a solidão no próprio telhado, apenas me remete ao lado do que sou que tento deixar de lado pra suportar esses padrões que os dias me soletram. Contudo, caso um dia eu deixar de lembrar dessas coisas, haverá no mínimo um desabamento, um desmoronamento do que sou e por conseqüência uma inibição de tudo quanto possa ser.

E o que dizer da inibição? A inibição é amarela. Mas não é amarela como a luz de um poste. A inibição é amarela como a cirrose é amarela e aparece quando há o desgaste. Por isso não quero essa inibição e prefiro a vergonha e a dor vestidas do azul da lua de um epitáfio que sequer chegarei a escrever. De que adiantaria se eu não veria se o trabalho ficou bem feito? Talvez por isso os poemas tenham que sair das gavetas.

Hoje, tentando remontar seu corpo sob o telhado, vestido de noite e pele, com os olhos presos em algum lugar entre a França que não conheço e a Portugal na qual não vivo, vejo que fui além da vergonha justamente porque tenho a capacidade de falar. Quanto ao medo, também fui além porque tenho a capacidade de existir. E se me disserem que existir e falar não são capacidades, voltem para seus espelhos, pois estão completamente enganados.

Descobri também que não era amor e muito menos paixão o que sua nudez me despertou, pois ainda não havia ouvido sua voz. Você apenas me deslumbrou e redundou nesse poema de prosa incerta. Se você ainda existe, não sei, mas desconfio que as fumaças da minha amiga continuam pagando juros para sua solidão.

E talvez eu também continue na ponta do alfinete, preso como um caco de vidro nos pés do dono. Com sorte, talvez eu continue preso aos seus pés, ainda que jamais conheça suas pernas.

Melhor que isso, nada. Melhor que isso, apenas isso, Françoise.

9 comentários:

adri antunes disse...

oi, Du, seu texto de hoje me lembrou Octávio Paz e tb Lorca! aquela coisa carnal, explicitada de um jeito forte que mexe com a pele, arrepia e dá vontade de saber mais. engraçado como estamos todos (hj li uns 3 blogues) e estamos todos falando de corpo, de lua, de se amar, ehe! deve ser algo de sintonia, ou desejos!
um bjuu enorme e boa terça!

Xubis D. disse...

Oi, Edu!
Honestamente, achei esse o melhor texto seu que já li.
É tão lindo e, coisa que é difícil de fazer, passa longe da vulgaridade...ele fica na linha tênue que separa erótico de desejo carnal (que são coisas bem diferentes).
Achei lindo mesmo...
E você tem muito de filósofo, né? Dá para ver no seu jeito de escrever e pelo contexto dos seus textos..tudo está ligado na suas histórias, por linhas que imperceptíveis para olhos não treinados...
Eu acho que arte é assim: é necessário refinar e aperfeiçoar a cada segundo...e você faz isso de forma sublime!

Beijos da Lu Paes!

ps.: obrigada pelo selo!
Eu já desconfiava que você não gostava deles, por isso não te indiquei o meme que recebi há alguns dias... ^^

gloria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
gloria disse...

esqueci de dizer, empolgada em tecer escrituras com você, esse seu texto é tâo belo que qualquer palavra é pouca!

gloria disse...

O que conseguimos ver? Esses fios de lembranças são embaralhados às tantas experiências táteis que atravessaram nossos sentidos. Eu já me deixei embalar pela voz quente de Françoise Hardy   Um dia frio que nem a lua espreitava os corpos. Um vinho tinto, lembro nitidamente da uva (carmènére), um brie, torradas e a vontade do extraordinário. Eu dizia: parlé doucement e ele sussurrava todas as coisas fazendo mímica. Desenhei um poema no dorso de suas costas e braços, como um “livro de cabeceira”. E, confesso, a atmosfera desse rendez-vous, o frio contrastando o fervor do desejo , seu corpo esguio, o vinho correndo quente deixou indelével a voz de Françoise: a distance à la mienne, On se perd bien trop souvent, Et chercher à te comprendre, C'est courir après le vent. Paris e seus carroceis, as caras desconfiadas nos metrôs, os cachorros substituindo gente, as pontes cortando o sena: quase tudo cenário e eu coadjuvante. Ficou passeando na lembrança a voz de Françoise, o gosto do vinho e as luzes da Torre. O homem que me trouxe o “o último tango em paris” me deixou apenas sombras do seu corpo e o desenho fixo de um cenário de prazer.
Quando leio:
Eu vi seus seios entre as sombras das suas mãos. Eu vi suas mãos que apoiavam sua cabeça como um travesseiro de ossos e carne. Eu vi suas coxas relaxadas e seus olhos que ora abriam ora fechavam, feito faróis que diziam o momento exato da lua brilhar mais ou brilhar menos. 
Nós inventamos um lugar de prazer, mesmo que os corpos brilhem mais ou menos, sejam minguantes ou crescentes, lua ou sol. Nós inventamos os corpos. C'est La question!

Solange Maia disse...

Eduardo,

Você escreve divinamente.... uma loucura !!!!

Parabéns !!!!

Beijo,

Solange

http://eucaliptosnajanela.blogspot.com

.SL. disse...

O encantamento repentino poder-se-ia levá-lo a uma paixão imediata, conquanto não houvesse, tempos depois, descoberto por si, o que seria esse sentimento. A solidão, revestida de melancolia ao apreciar tão profundamente o céu, as estrelas, é um estado de espírito no qual, ainda que com o cabelo de 5 cores, vive. Sentimentos este que o fizeram expor, em palavras, a vidraça quebrada como um súbito “de repente”. Ruim não é. Entretanto, não é de todo o bom (sobre)viver neste eterno isolamento interno. Reflexão é necessário, mas não é necessária a insólita permanência nesse estado. Bons dias pra vc moço.

Anônimo disse...

seu texto acabou de me lembrar, tão umbigo quanto você sou, de uma atitude minha da infância que fui retomar quando já era mais velha que você: aos cinco anos quebrei com meu pezinho de cinco anos uma espécie de ampola de vidro. saí do quarto onde estava só berrando e lavando o chão com meu sanguezinho mais puro :). aos vinte e cinco fiz questão de montar o cavalo que quase matou meu pai. caí e fiquei com hematomas na testa e nos braços durante um bom tempo e ainda tenho cicatrizes. que dizer? eu tinha de viver essas coisas. 'moço, me dá aí uma gostosa nua no telhado e um monte de alfinetes?'

p.s.: se quiser dar uma olhadinha nos meus testículos, passa lá.
p.s.: como a gente coloca gradação de sorrisos no que a gente diz?

Márlia disse...

A que fuma versus a que se desnuda.
A que tem cirrose de sofrimento versus a que tem a apatia dos precoces,
A que queria ser gato versus a que queria ser lua (que pensara ela brilhar)
Estrelas versus lua.
Falar e existir versus telhado.
Tudo conflitua.

Há algo de dor nestas cenas sob o céu. Não vejo salvação senão uma única. À frente, talvez se faça claro.

Este excesso de espaço parece solicitar uma dor de existir. Seja a do não amor, seja a da dor que sua ausência para os da crença faz.
Estas estrelas e esta lua informam que falar e existir ultrapassa o sentido comum, ou seria vc mesmo que informa isto?
Que seja com cigarro ou com seios enluarados e sem explicação para o amarelo da iminência e, também, sem respostas sobre o amor (suas ausências, suas culpas e seus medos) a cirrose de nosso tempo corroe aqueles que mínguam o ato de viver, que procuram explicações e respostas onde elas jamais se formatariam,
procuram mais que falas e existência e sutilezas.
A cirrose de nosso tempo atormenta a todos, nós não somos todo falas e existência.