segunda-feira, 16 de março de 2009

Pela estrada de poeira vermelha.

O avô disse que a estrada já foi limpa um dia.

O pai disse que era mentira do avô, que aquele matagal dos acostamentos sempre esteve ali desde que a estrada era estrada.

O avô resmungou e cuspiu um cuspe amarelo de fumo no chão. O pai olhou pro avô e os dois tinham os olhos vazios de quem se entende assim mesmo, pelo vácuo. Lá fora passou um carro que levantou poeira vermelha de falta de chuva. Ali dentro uma bocha bateu na borda da cancha e um estouro de madeira que grita ecoou no galpão.

O pai levantou e disse que já era hora de ir, que se não pegasse logo o rumo de casa chegaria cansado demais pro trabalho de segunda.

O avô resmungou, cuspiu um cuspe amarelo de fumo no chão e acenou pro bolicheiro.

Uma pura, disse.

O pai riu um riso preocupado e tentou argumentar que na idade do avô aquilo não era coisa que se faça, que o corpo, justamente por ser corpo, desgasta com o tempo, e que não adianta correr pra lá e pra cá atrás de médico se o fígado estourar de vez.

O avô bateu com a bengala no chão e disse que ele não tinha nada que ver com sua vida, que ele fazia o que bem entendia da vida, que se um homem não tem um pingo de liberdade pra desfrutar depois de velho, mais vale é virar comida de tatu de cemitério de uma vez.

O pai não insistiu e disse adeus, saindo pela porta lateral.

Veio o bolicheiro e pôs o copo em cima da mesa. O avô ficou observando o pai ir devagar, com aquele seu andar manco com vontade de olhar pra trás. Bebeu um gole, fez uma careta e esmurrou a mesa.

O que pensa esse borra-bosta, falou entredentes, saiu do meu saco e agora fica criando caso porque eu quero levar minha vida em paz.

O bolicheiro nem disse nada porque sabia que não adiantava. Pôs a toalha branca no ombro e voltou pra trás do balcão.

O pai chegou em casa, disse vamos pro filho que brincava com uma cadela malhada, disse tchau mãe pra avó que o abraçou, entrou no carro e saiu na estrada.

Havia muito mato no acostamento. Era mato que devia estar ali há mais de cinqüenta anos. Pensar que um dia aquele mato não esteve ali, era como desvirtuar a própria estrada, fazendo com que ela se chamasse outra coisa e não estrada.

O avô, no galpão, ouviu o barulho do carro do pai cruzar. Tomou outro gole, levantou, largou duas moedas pro bolicheiro e foi pra casa.

A avó o olhou com ar de reprovação e perguntou se ele andou bebendo de novo.

Não, disse o avô, não bebi nada.

Tu acha que eu não sei quando tu bebe nem que seja uma gota, falou a avó com as mãos na cintura que nem menina mandona, tu pode beber canha de conta-gotas que eu sei quando tu bebe.

Te aquieta velha, volta pra tua costura que tu ganha mais.

A avó nem quis falar nada porque sabia que era como pedir resposta pra Deus. O avô andou até a varanda e se atirou na cadeira de balanço com pelego de ovelha.

O carro do pai ia pela estrada e o filho perguntou porque ele estava quieto.

O pai não respondeu, limitou sua fala a um nada, nada demais, ligou o rádio e um violão chiado preencheu o silêncio com a réplica do seu solo.

Quente hoje, né pai, disse o filho, quase gritando por causa do volume da música.

É, quente mesmo, março, a gente sabe como é março pra esses lados.

Mas diz que lá pro norte chove pra caramba.

É, o negócio inverteu com o tempo, daqui uns dias o sul vira norte e o norte vira sul.

E seguiram quietos até chegar em casa.

Nisso, o avô permaneceu sentado na cadeira de balanço. Pitava o palheiro de quando em quando e lá da cozinha vinha o som da televisão que ria e cantava. O avô não gostava daquilo. Domingo já é uma merda por ser domingo. Mas domingo com programa de televisão que ri e canta é duas vezes merda, é merda em dobro. Bom era quando não tinha parabólica e só dava pra ouvir as vacas e as galinhas e um carro que passava de hora em hora pela estrada em frente. Uma que outra vez, aparecia um parente, seu irmão quase sempre, e assavam uma carne, e tomavam uma cerveja, e o domingo descia rápido. Mas isso fazia tempo que não era assim. O filho cresceu e se tornou pai e veio com a parabólica no aniversário de cinqüenta anos da avó. O avô ficou meio assim, meio cabreiro, e de início até gostou, mas com o tempo, o tempo que faz a gente desgostar de tudo, até da gente, tinha vontade de jogar um tijolo na televisão e usar a parabólica pra ser toldo de jardineira, mas não mais parabólica. A avó nem ia mais dormir cedo depois daquela joça. Ficava acordada até tarde olhando porcarias de sei lá o quê, e havia dias em que nem conseguia levantar de manhã pra tirar leite da vaca lá perto das laranjeiras dos fundos. E era ele, o avô, que tinha de fazer tudo, até o almoço, pois nesses dias a avó dormia e dormia e não prestava pra coisa nenhuma. Depois do avô dar uns gritos com ela, de tomar uns porres mais brabos no galpão da cancha, ela até que mudara um pouco, mas nem tanto. E naquele domingo, com o crochê em mãos, olhava quem nem boba, comendo pé-de-moleque, praquele bando de gente dançando num palco onde umas mulheres rodopiavam dentro de cálices gigantes.

Pito daqui, pito dali, o pai chegou em casa com o filho e a noite veio.

Vai dormir cedo hoje, guri, disse o pai pro filho, tu correu o dia inteiro e amanhã tem aula cedo.

Tá, tá, tá, tá, cadenciou o filho meio que contrariado, indo pro banho.

O pai foi até a cozinha, colocou uma lasanha congelada no microondas e foi pro telefone.

Não tem problema se ele posar aqui hoje, perguntou.

Não, fica tranqüilo, respondeu a mulher do outro lado, amanhã eu passo aí e pego ele.

Tá certo, tá certo, a gente se vê.

Se cuidem, disse a mulher, e pôs o telefone no gancho.

O filho demorava a sair do banho.

Acho que ele ainda não tá naquela fase, pensou o pai, deve de ser é chato demais que nem eu.

O microondas apitou e o pai arrumou a mesa pra ele e pro filho. Abriu um refrigerante e ouviu lá de fora o som da sirene de uma ambulância que cruzava rápida pela avenida. Noutros tempos, em outra cidade, nem iria lembrar que se tratava de uma ambulância. Naquele tempo, naquela cidade, notava isso e até se preocupava.

Fruto da mudança, refletiu, fruto da mudança. É o que dá a gente sair de lugar pequeno, ir pra lugar grande, e depois voltar pra lugar pequeno morando sozinho, ainda por cima.

O filho apareceu na porta da cozinha.

Demorou hein, disse o pai.

É que eu não conseguia ajeitar a água daquele chuveiro de bosta.

Aquele negócio tá meio estragado mesmo.

Sentaram e comeram em silêncio, o pai olhando pro filho por cima do prato e o filho concentrado no prato.

A uma hora e pouco de distância, pela estrada de poeira vermelha, o avô levantou da cadeira de balanço e cruzou pela sala onde a avó continuava estatelada na frente da televisão.

Mas tu não cansa o olho, mulher.

Problema é meu.

Que cegue então, foi pro quarto e deitou e dormiu.

A escuridão caiu sobre a estrada e o avô sonhou que um dia ela já foi limpa. O pai, em seu apartamento, lembrou das palavras do avô e sorriu, olhando pro filho que dormia ao seu lado.

Um comentário:

Márlia disse...

não sei se desejo invasão, sei que desejo postar e assim me fazer lida. sei que para fazer-me lida tenho que desnudar-me, mas estou procurando a medida.

tenho achado neste risco satisfação.

Obrigada pela visita.
voltarei em breve. qro falar do insufilme (tô caindo de sono)