segunda-feira, 9 de março de 2009

Era uma vez um reino que não tinha rei.

Era uma vez um reino que não tinha rei. Era um reino que não precisava ser reino com R maiúsculo, o que talvez explicasse muita coisa que por lá acontecia. Mas o mais estranho, é que era um reino onde as pessoas não tinham sombra. Sim: ninguém via seu lado escuro, seu lado penumbra, quando andava na rua, e uma luz forte, uma luz forte que não era a luz do sol, pois caso houvesse a luz o sol teria também de haver a luz da lua, vinha de todos os lados, até quando um ou outro desavisado tentava fechar os olhos, sendo que até isso, veja só, era proibido. Mas proibido por quem? Ninguém sabia: sabiam apenas que era proibido desde sempre, apesar de o sempre, como todos desde sempre sabem, não poder ser medido, e ser, além do mais, questão de ponto de vista, questão da vista de um ponto. E nesse reino que não era reino com R maiúsculo e onde ninguém tinha sombra, todos queriam muito muitas coisas que nem sabiam ao certo o que eram. Queriam isso, queriam aquilo, e andavam que nem doido pra lá e pra cá, de olhos estanhados, arregalados, quase vermelhos de tão engraçados, querendo mais e mais. E como não tinham sombra, derrubavam tudo que viam pela frente, fosse folha ou cipó, que pudesse barrar o caminho e consistir, mesmo que de longe, um obstáculo. E a gente de lá, meu caro, hã!, a gente de lá não gostava de obstáculos: queria tudo às claras, e tão, mas tão às claras, que de uma hora pra outra não havia mais nada sobre aquela terra. Nécadepitibiribas: nada, nem res de resmungo. E quando isso aconteceu, ficaram todos pra lá de atarantados. Não tinham mais o que derrubar, não tinham mais com o quê se ocupar, e de tão carregados que estavam, não tinham mais nem o que querer! Imagine só! Foi então que um moleque meio estranho, com cara de enguia, deu uma sugestão: vamos tentar dormir. De início, deram risada da cara dele. Ora!, desde quando se dorme no nosso reino! Pura baboseira! Mas quando ele mesmo se propôs a fechar os olhos e dormir, ferindo a lei universal e que existia desde sempre, como diziam, ficaram meio assim, meio assado, e aos poucos os ânimos exaltados, daqueles que querem feijão-feijão/arroz-arroz, foram se acalmando. Quando se deram por conta, eram dois dormindo, eram três dormindo. Depois quatro, dez, quatorze. E a coisa chegou a tal ponto, que todos decidiram dormir. E sabe o que aconteceu? Nasceu então a sombra. Nasceu como todos nascem: sem dentes e pelada. Mas isso já era alguma coisa. Quando o primeiro acordou e notou que tinha sombra, não sabia se era aquilo ou aquela a coisa preta que lhe seguia por toda parte. Ficou assustado, tremendo de medo, pensando que um deus ou alma penada, pois lá praqueles lados sempre falavam em alma penada, havia encucado consigo, e portanto resolvera lhe afligir pro resto da vida. Porém, quando os outros foram se acordando e percebendo que todos, absolutamente todos tinham sombra, a história mudou de rumo. Era impossível que espíritos e almas penadas fossem em tão grande número e resolvessem encher o saco de tanta gente. Certo que houveram os mais apavorados, que até sugeriram suicídio maciço, mas a covardia, que é o motor da ordem, logo fez às pazes com esses arautos, e em pouco tempo todos estavam a meditar, mão no queixo, pernas cruzadas, sobre o porquê daquele troço preto que passara a seguir seus corpos. Quando, um tempo depois, perceberam que só eles, as pessoas, homens e mulheres, tinham sombra, porque não havia mais o que ter sombra, já que tudo fora consumido, regurgitado, vomitado e execrado do plano digestivo, sentiram uma espécie de dor no fundo da garganta, porque desconfiaram que, caso contrário, outras coisas também teriam sombra. E foi nessas que começou a onda pessimista. Era gente chorando prum canto, era gente escrevendo livros suicidas noutro canto, era gente chorando e lendo livros suicidas e se suicidando noutro canto: enfim, uma porcaria total, um banzé daqueles. O incrível é que o estado de espírito afetou todo povaréu, não poupando merreca humana que fosse, fazendo das massas meros olhos inchados, nublados, cheios de olheiras e máculas de desaprovação para com a vida. Mas adiantava alguma coisa? Se o passado era passado e não podia mais ser passado a limpo, adiantava alguma coisa ficar nesse chove não molha pro resto dos tempos? É claro que não! E aí um sujeito barbudo, que tinha jeito de quem tocava violão, mas nunca vira violão mais gordo, sugeriu que esquecessem de tudo, que a vida era uma baboseira mesmo, e que, já que estavam na fossa, fossa e meia tanto faz!, o que suscitou uma estranha lógica: se tudo não-humano já fora consumido, restava consumir o que era humano. E aí, bem... aí é melhor trancar a moral num quarto escuro, esquecer a ética no aro dos óculos, anuviar todo e qualquer pensamento que cogite algo a não ser seu próprio umbigo e seguir adiante. Muito aconteceu, muito mesmo, e pra não entrar em detalhes sórdidos, porque até bengala de fêmur e sopa de estômago deram pra inventar, vou dizer que aquela gente foi se matando gradativamente. Nenhuma fêmea sequer tinha tempo de ter uma gestação completa, mesmo que isso pá e tá acontecesse, já que as surubas, surubas desavisadas e tão ou mais nojentas que qualquer nóia de imperadorzinho romano, eram diárias, diurnas e noturnas como em alguns jardins de infância. Contudo, a comilança conotativa e denotativa chegou a tal ponto, que o último que restou comeu seu braço esquerdo e acabou por morrer esvaindo em sangue. E talvez aí e somente aí, o reino que não tinha rei ganhou razão de ser: de toda aquela porcalhada de carne que ficou espalhada pela terra, começaram a surgir pequenos bichinhos meio nojentos, meio envergonhados, que no futuro, e no ontem de alguns minutos atrás, seriam atingidos por jatos de aerosol e morreriam pra que eu pudesse dizer malditas baratas! e concluir meu conto com esse sorriso no rosto.

10 comentários:

Joice Nunes disse...

juro por deus que adorei este texto!
pus teu blog no meu, pra todo mundo que me visita te visitar também.
beijos

gloria disse...

Eduardo, estranho fio de acaso conduzem nossas linhas. Estou lendo o "valor do amanhã" do Gianetti. E vi que a vida que cria de um ato de fusão sexual se esvai pela mesma razão. Nos processos de fisssão e cissiparidade havia a multiplicação de seres semelhantes, por padrões. Copular com o diferente, trocar "sementes" de natureza distinta produz vida e morte. A sombra da morte surge a partir do gozo exacerbado e imediato exaurido em vida. "Ele utiliza a cigarra e a formiga de Esopo. o também Eduardo, cunha a figura da cigarra límbica, que só se interessa pelos prazeres de curto prazo, e da formiga pré-frontal, planejadora e focada em abrir mão da boa vida agora para garantir seu futuro." Ele pode até ser encarado como livro de auto-ajuda para pessoas sofisticadas. Mas, tem lá seu valor. È esse hiato entre sombra e luz, o futuro que não existe e o presente míope queproduz o combustível do desejo, terreno de eros. Esse seu texto é alivinhado nesse limbo que nos persegue e inspira. E você é o filósofo dos ditos ordiários, escritos a flor da pele. Tuas palavras ficam marcadas que nem brasa. eu as tomo e faço minhas receitas. um banquete ainda mais farto que as "festas de babete" bjs

pensar disse...

Gostei!E não que seja o objetivo mas gosto do fim que te abriu o sorriso.
bjs

Biba disse...

Muito belo. Poucas palavras porque estou correndo!!!
Beijo e carinho
carpe Diem!!

Vera disse...

Rapaz,

Primeiro: obrigada pelo doce comentário. Delicioso.

E que conto fantástico!!! Adorei a parte em que você fala que eles não têm sombras, e por isso, detestam qualquer obstáculo.

A sombra serviu como metáfora para o lado ruim que todos temos [Jackill e Hyde].

Fiquei surpesa mesmo foi com o final: baratas? Show!!

Elas rendem maravilhosas epifanias ;-))

Beijo.

Xubis D. disse...

Oi, Eduardo!
Olha, obrigada pelos elogios á minha ideia (sem acento). Eu tenho certeza que já li mais de trinta livros em algum desses anos que passam sem nem dar tchau, mas eu precisava contar, e ver com toda certeza, que eu realmente leio trinta livros em um único ano. Tem sido muito divertido até agora e tem sido o meu blog de mais sucesso - pois eu tenho feito cada vez mais amigos e mantido os que me são queridos.
Esse texto ficou ótimo!É incrível o jeito que você tem para contar histórias...Como você descreve algo que, depois de muitos pensamentos e voltas, toma, com uma reviravolta ou nem tanto ou talvez mais, um fim surpreendente!
Amei!
Ah, eu obrigada por dizer coisas tão boas dos meus quinze anos. Mas, honestamente, eu não me preocupo com a minha idade - ás vezes me sinto uma viúva com 53 anos de idade (um conto recente, de minha autoria), ou uma menina de doze (no curso de teatro), às vezes tenho 20 ou 30 anos, às vezes até 60 ou 40...Depende do momento, das sensações etc. Enfim, de montes de coisas que não tem importância nem relevância! - se você quiser rimar.
hehe

Beijos da Lu Paes!

Anônimo disse...

bem, não sei quanto a você, mas eu ando lendo 'Alice'. por isso a fábula. no mais, falta de tempo é desculpa de homem e você é um. fazer o quê? eu queria ser homem. ser lésbica acho que ajudaria tbm, por um lado. enfim, bjo da eterna inconformada em ser apenas uma mulher (e mais inconformada ainda em saber que isso reverbera o escrito de um homem).
p.s.: até você ser um Tirésias e poder saber o que é ser mulher, não me escreva uma linha sequer sobre possíveis vantagens (no meu blog, é claro; no seu, obviamente, pode fazer o que quiser).

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Muito bom, muito bom!

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

Anônimo disse...

Bem inventivo. Gostei.

Anônimo disse...

Vamos ver se apareço agora.