quarta-feira, 11 de março de 2009

Amava o mundo mas o mundo não o amava.

Amava o mundo mas o mundo não o amava. Pelo menos era o que parecia. Iam as manhãs frias, vinham as manhãs frias, violetas morriam em cima da mesa que não dava brecha pro sol por culpa da janela sumida, e as coisas continuavam na mesma. Melhor seria, pensava, que seu antepassados, aquele bando de gringo doido, tivessem morrido em algum naufrágio. E os naufrágios foram tantos! Mas eles conseguiram sobreviver: bichos que saem de uma floresta em chamas, reproduzem, reproduzem, e duas ou três gerações depois ali estava aquela consciência, ali estava ele e o mundo. E o que é o mundo? O mundo é o pomar e suas laranjeiras, com galinhas desocupadas que ciscam aqui e ali, ou é aquele amontoado de palavras pálidas que chamam de lições? Podia ser uma coisa assim como perfeitamente podia ser outra, mas, com o correr dar horas que formam dias, dos dias que formam meses e dos meses que formam anos para formar nosso desgosto, o que mais o incucava era haver vida, haver um par de pulmões e um coração que bombeia o diesel das artérias pra toda e qualquer veiazinha periférica. E esse sentimento, sentimento que era mais dúvida do que sentimento, desde que ninguém duvide de que a dúvida é um sentimento, ia crescendo aos socos dentro daquele corpo mirrado. Gostava de acordar cedo pra ver a geada de inverno cobrindo os campos: aquela fumaça que parecia fumaça de cachimbo por cima do açude cheio de carpas, as aves que madrugavam e soltavam bocejos ao cantar, a neblina que ilimitava os morros e fazia fronteira com lugar nenhum: o estranho tranco daquela realidade que pegava no tranco. Não era letrado, pouco ou nada sabia de prosas ou prosódias, mas quando sentava ao lado do fogão à lenha, caneca fumegando café, filosofava consigo horas a fio. A falta de interlocutores por vezes o perturbava, o que era remediado com uma ida ao banheiro e uma olhada no espelho de bordas marrons, pra logo depois voltar pra banqueta de couro cru e prosseguir com suas especulações solitárias. Decidira, sem saber porque, ali mesmo na banqueta, numa dessas ocasiões de solenidade vã em que decisões sem possibilidade de decisão são tomadas, que deveria dar um nome pra tudo o que considerava. Mas o que é considerar?, pensou de imediato. Considerar é dar brilho, considerar é CON-SI-DE-RAR, e é, enfim, brilhar, ora! Mas, como pode se notar claramente, isso não era suficiente, e o fato dessa consideração sobre o considerar ser cabal pra sua empreitada, o fez matar o ato antes dele se tornar relato, indo dormir, meio ressabiado, quando um quero-quero queria algo no gramado da escola ali perto e a última estrela respingava o céu da quarta-feira recém nascida. Porém, as obsessões, por mais tolas que sejam, e quanto mais tolas são, alfinetam o pé e empedram o pescoço quando menos se espera: a temperança em saber o que é considerar e não-considerar não o largou. E ele queria, lógico!, dar um nome, e um nome novo, percebera na insônia, pra tudo o que considerava. Tentou não pensar em coisa alguma, deixando a mente ao sabor dos nervos, pra ver se algo surgia. E nada surgiu. Por sugestão de um amigo, comeu uns cogumelos arroxeados que achou perto da mangueira, e apenas conseguiu uma dor de barriga daquelas, seguida de uma diarréia repleta de remorço reflexivo que se estendeu por mais de uma semana. Dando por conta de que era necessária, quem sabe, uma dedicação integral da sua parte naquela cruzada, largou de mão quase todos os afazeres e se pôs a freqüentar a biblioteca da cidade, distante quatro quilômetros, por tardes e mais tardes. Revirou livros de todas as espécies. Pesquisou aforismas do grego ao russo. E quando pensou que havia chegado a um ponto, a um consenso, uma decepção nova entrou por debaixo da porta e se instalou ao prazer da calamidade, fazendo tudo ir, novamente e novamente e novamente, ralo adentro. Os conhecidos foram desconhecendo sua face. Não era mais o mesmo. Recitava versos decorarados na espuma de cada chopp, e quando ria, ria aquele riso amalucado de quem sabe que a ponte vai cair mas crê na fundura do rio. O relógio rastejava, os calendários se seguiam, e sua casa, antes simples mas limpa, ia virando um semi-chiqueiro, com garrafas por cima da mesa, com poeira se embrenhando pelos cantos, com frigideira enferrujada transbordando ranço: com o ter e o não-ter de quem vive pra algo que está além. Mas o que é estar além? E o que é o além? O além é o nome que a consideração sobre o considerar não pode alcançar ou é outra coisa? O que é essa outra coisa? E por que ser se o ser sempre foi e será mesmo que nunca seja? Tudo isso pernoitava em sua alma com cara de visita que faz da trouxa guarda-roupa. Não era pra menos: amava o mundo mas o mundo não o amava. E numa noite sem lua, escura feito porão onde trovejam ratos de toca em toca, infartou, perdendo a consideração e o considerar, o nome e o nomear, e chegando, afinal, a uma resposta.

5 comentários:

Biba disse...

Nooooooooosa, gostei muito Du. Esse homem e suas a(i)lusões, era como estar em um vespeiro de intranquilidades. Morrer deve ser mesmo a resposta que tanto buscamos...
Beijo grande,
Carpe Diem!!!

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Olha, grande Edu!

Esse tipo de amor não correspondido só pode dar nisso. Aliás, qualquer amor assim pode ser perigo e motivo de dor no coração.

Gostei muito também do texto anterior.Como sempre, muito inspirado, um maníaco das letras e da arte! (rsrsrsrs).

Abração.

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Na verdade eu não falei de amor naquela poesia. Talvez tenha falado da falta de sentido do próprio mundo, mas jamais de amor. Quem sabe as algas fossem os cabelos ao invés dos corais. Mas como sempre privilegiamos o empírico ao revés do teórico, optei por usar corais. Apesar disso, válida é sua apresentação. Meu farol é minha vida: meus acenos minhas tentativas: o suposição do fundo como verdade é apenas suposição, já que a única verdade é o pulo. O que fica é a angústia heideggeriana e o desamparo lacaniano. E só. Mas apesar disso, obrigado - um obrigado perspectivista, porque adoro isso. Um abraço pra ti, portanto, Pedro. E pra ti, Biba, nem tenho o que dizer, já que sempre digo muito pra ti. Só a profussão de OOOOOO no seu NOSSA me disse tudo. Um beijo pra ti, querida. E seguimos o baile, mesmo que o gaiteiro tenha o fole furado à tiro. Fui-me ao Cronenberg. Até, pessoas.

gloria disse...

Eduardo, nossos escritos falam de morte, ou de explosões diversas de vida. Vidas que se esquivam para dentro, vidas que se esvaiam feito ondas.O que considerar? Uma palavra que deixa de brilhar por falta do olhar amoroso de um outro, que lustre o desejo? Um brilho de fogo fazendo brotar uma vida que prescinde das palavras, de uma forma bruta, feito destino? To aqui alinhavando o que acabo de escrever lá no "vento", com o que leio no espaço de, aparente, pouca luz. meio trôpega de um sono que me deixa acordada. "As obsessões alfinetam o pé" e fincam palavras caladas, nomes sem consideraçào. A tua noite está sem lua, a minha é tào cheia que me faz ativar tantas outras senhas. elas insistem em fazer brilhar palavras ainda tímidas. é preciso considerar isso? um amor que ama o mundo e não sabe enxergar o que trafega de volta? boa noite. Eu te leio, todos os dias. bj