quarta-feira, 4 de março de 2009

E a vigília é um vão pelo qual outros outros me espiam.

Sou escravo desse outro que em mim habita. Se quero acordar ele dorme. Se quero almoçar ele me enche a barriga de vento.

Mas o pior não é isso. O pior é quando ele começa a me rodear e a me sussurrar que tudo está errado. Me acorda às quatro e meia da manhã e me diz, como quem tudo quer e promete, que algo de muito ruim aconteceu. Faz com que meus olhos ardam mas não pede desculpas. Faz com que minha cabeça lateje como se tivesse sido esfregada na pedra de uma praia.

Mesmo assim, nunca tentei me livrar desse outro que em mim habita. Não sou de guardar rancores.

Certa vez até consegui agarrar seu pescoço quando me assistia no escuro do banheiro. Consegui ao menos notar que ele realmente existe e está aqui, fazendo com que as veias do meu cérebro se dilatem e com que o sangue circule por essas rodovias roxas.

Mas eu queria não um outro de mim que me fizesse isso, e sim uma outra pessoa que me fizesse isso. De nada adianta o prazer não compartilhado. Não há repercussão em um velório sem espectadores. Dançar em um palco solitário é como desfazer nós que não podem ser desfeitos por marinheiros que sequer existiram. Imaginar aplausos de um público com máscaras tem cheiro de necrotério. E a dor solitária não faz sentido algum quando uma criança chora e é noite e não há ninguém no prédio ao lado.

Na verdade eu queria que esse outro que em mim habita se fizesse real. Mas real assim como que materializado de repente, como ocorre naqueles filmes do Fritz Lang que nem cheguei a assistir. Queria olhar seu rosto, tocar seus olhos, perceber que suas pálpebras são tão brancas quanto as minhas, pra deixar de sentir esse medo bobo, esse temor estranho de que algo está errado e de que algo de ruim aconteceu às quatro e meia da manhã depois que dormi no sofá ouvindo o Thom Yorke.

Seria culpa da Inglaterra? Seria culpa dos dias cinzas que ainda não vi? Seria culpa daquilo tudo que deixei de dizer ou fazer ou mesmo de uma noite que fez com que meu corpo quedasse diante da minha vontade? Seria culpa dessa geometria que construo sozinho em um deserto chileno? Simplesmente não sei dizer. Fico com a mudez do Mario Peixoto.

Apenas me sinto levado por um aqueduto romano. Arrastado pelo labirinto das águas, não existe diversão aqui. Existe apenas a necessidade de que o trajeto continue e de que a água chegue em quem tem que chegar. Se eu cair em algum desvão das pedras, talvez esse outro que em mim habita também caia comigo e enfim revele seu nome através de um arranhão na perna.

Mas não: acho que nunca saberei seu nome. Seria demais pedir um canto para o silêncio. Seria ousadia construir uma pirâmide com a terra de outro planeta e usar remos ao invés de mãos.

Por certo continuarei sentindo sua presença quando quero ficar acordado mas ele me faz dormir. Por certo, quando meu estômago se agita e a lua é alta, sentirei que ele é mais real do que eu imagino e que de biológico não tem nada, ainda que jamais possa vê-lo ou ouvi-lo distante da sua própria vontade.

Sim: pois esse outro que em mim habita tem vontade própria e me conduz como marionete dos seus apelos. De certo por não ter corpo, me tirou pra cão de chute, desses nos quais limpam a mão de graxa pra depois esmolar afagos. E por certo seja essa a razão dos meus olhos ardidos, como se um colírio de metano tivesse caído no centro da minha íris e do meu sorriso ventríloquo.

Mas nunca mais reclamarei da sua existência. Sei que sua existência é necessária assim como sei que meus ombros doem. Sei que o dia amanhecerá e talvez novas impressões surjam. Conheço algumas pessoas que podem me ajudar e elas não tem nada de invisíveis. Mas será que elas também não carregam esses outros consigo? Talvez sejamos multidões de nós próprios e não saibamos. Talvez células estejam para Universos assim como copos estão para garrafas, mesmo que toda comparação esbarre na sina inevitável de jamais ter um sentido fora do seu próprio paradoxo.

E admito minha escravidão confessando um amor pela vizinha que desconheço e mal vi. Olho para os meus grilhões como se fossem a pérola que nunca encontrarei. Tenho os olhos manchados de um rímel de hormônios que me faz pressão a cada instante de têmpora, ainda que cabeça, pernas e braços sejam completamente alheios a minha vontade.

Sou escravo do outro que em mim habita sim. E minha escravidão tem o gosto do orgulho desesperado. Tem o prazer dos olhos do orgasmo. E tem a tristeza do que nunca serei.

Ao menos sei que meu coração é ao quadrado e minha angústia será sempre mais céu do que mar, perdida no litoral de uma América Latina que imagino e só assim existe.

E isso é o máximo que posso fazer.

Admito o duplo de mim e me sei reflexo sem precisar de espelho.
Daqueles que rondam a casa, só ouço o passo nas folhas. E a vigília é um vão pelo qual outros outros me espiam.

5 comentários:

gloria disse...

Ufa! é meio dia e meus olhos buscam um lugar em que possam experimentar intimidade. Fortaleza, cidade do sol e eu glória, cidade dos interstícios, dos becos, do recantos que possam abrigar o inesperado. Esse outro já disse tanto de mim e de lugares que não sei. Sensação de terem soltado a minha mão e eu flutuando em disparada. Onde vou parar? Onde? Esse outro que me habita já me falou que sou eu mesma o ladrão que espreita, o desorganizador das vidas estabelecidas, o contraventor, o inventor de um nome que nâo se soletra. As mulheres de Avalon sabiam se mover entre as brumas. Sabiam que não há caminho. Será eduardo que essa dobra que designamos como outro representa a nossa possbilidade de espiar fendas outras de uma mesma vida? Será que o que tememos é o mesmo que nos encanta e nos acorda em plena noite. Escuros não apenas das américas, latinas ou não, escuros dos que preferiram blindar seus corpos e vedar seus olhos em plena luz de fortalezas sem dias, mergulhadas em madrugadas sem fim. estou acordada atravessada por tantos outros que sequer dormem. esquecidos. essas linhas entrecruzam nossas vigílias, nossa dose de esperança de que da escuridão possa vicejar palavras vivas, flechas de eros conectando possibilidades de encontro. assim, não estaremos sozinhos e sim imersos nesse círculo do fogo das palavras. quando te leio, vou junto.bjs

pensar disse...

Oi Edu,
Sim, como alguns pensam que conhecem os outros?Na verdade somos grandes desconhecidos, talvez alguns sejam grandes se conhecendo( como eu procuro ser), e por isso parece que outros nos habitam, e por isso os sonhos nos parecem tao irreais.
Porque a tecnica de contar carneirinhos nao adianta mais?rsrsrrs
De onde surgem as ideias?
Enquanto uns falam da vida alheia... uma vida e pouco para nos conhecermos, nos deslumbrarmos e nos apaixonarmos( e o dia que nos apaixonarmos intensamente por nos mesmos estamos aptos para amar alguem).
Um grade beijo

Biba disse...

Du, você me conquistou de vez. O tema do duplo é para mim valioso. Foi tema de minha dissertação de mestrado. É busca que traço por toda uma vida. Porque esse outro eu se desdobra e às vezes me assombra. É ele que faz o que não consigo, é ele que me leva pela mão e me lança no abismo do querer. Nunca mais saio de lá, eu penso. Mas dentro do abismo existem outros e ele, o duplo, sempre se encarrega de me encarcerar quando quer. Atira-me pedras ou pétalas de rosas, aguça-me os sentidos ou me deixa tonta de poder não-ser. Eu quero falar mais sobre isso. Teu texto é perfeito ao trazer essa imagem.
Beijo carinhoso
Carpe Diem!!!

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Eduardo!

Você é um maníaco das letras. Pra você, não tem mais jeito. O outro que existe em você já te domina e diz: "Escreva, encante, emocione!". E você não tem pra onde fugir. E agora?

Outra coisa: minha dívida com você está impagável! Você enriquece meu blog com todos esses comentários densos e calorosos!


Valeu demais pela amizade e por mais essa visita! Te espero sempre!

Abração.

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

Anônimo disse...

"Mas será que elas também não carregam esses outros consigo? Talvez sejamos multidões de nós próprios e não saibamos." Talvez não saibamos, talvez não queiramos saber... Como suportar Caieiros e Ricardos Reis em nós mesmos? Como multiplicar vozes q ao nos sufocar podem, paradoxalmente, nos libertar? Confronto, contradição, epifania... Simone K.