Não existe pessoa alguma que não reclame da falta de tempo. O que parece é que somos prisioneiros de uma corrida desenfreada e imensa, sendo que caso alguém caia nessa maratona, dificilmente será visto e acabará pisoteado pela multidão. E essa sensação de que a corrida nunca está para o tempo que disponibilizamos para correr e que, por conseqüência, pode gerar o desamparo da queda em meio a tantos que de maneira alguma poderão nos ajudar, já que terão de continuar com a corrida, é que gera, pelo menos ao meu ver, essa profusão de doenças psíquicas no mundo atual – muito embora eu admita que não seja de maneira alguma especialista na área.Ontem mesmo, enquanto cruzava pela Marquês do Herval, olhei para o chão e vi uma cartela de Rivotril 0,5 mg com dois comprimidos ainda por tomar. Os demais, ao que me pareceu, foram engolidos vorazmente por alguém que desconheço. O motivo pelo qual esse desconhecido engoliu no mínimo oito comprimidos de Rivotril 0,5 mg de uma só vez, certamente jamais saberei. Entretanto, isso não me impede de cogitar algumas hipóteses.
Essas hipóteses, contudo, jamais estarão para a realidade desse desconhecido. Os seus passos podem até ser traçados pelos meus passos de uma maneira praticamente idêntica, mas tal maneira de forma alguma será a mesma, visto que cada um de nós detém uma singularidade alheia a quaisquer comparações. Nesse sentido, acabaria por decair na constatação inicialmente feita, a qual, mesmo que sejamos seres singulares, universaliza uma percepção corriqueira, uma vez que é essa sensação de que a corrida nunca está para o tempo que disponibilizamos para correr, que gera o temor do desamparo da queda em meio a tantos que de maneira alguma poderão nos ajudar se ela ocorrer, considerando-se que podem cair como nós caso pararem. E quanto ao Rivotril 0,5 mg, não passa de mais um analgésico, seja para os males da alma ou do corpo que inevitavelmente estarão contidos em um mesmo local – ou seja: nós mesmos.
E quem disse que alma e corpo formam duas unidades e não apenas uma? Quem disse que existe uma alma impregnada em nosso corpo que com a morte irá se descolar do próprio corpo, assim como alguns adolescentes são mais descolados que outros justamente porque são mais espontâneos e fazem mais bobagens que outros? Que me perdoem os teólogos seja de qual crença for, mas os indícios da ausência dessa dicotomia em nossa constituição fundamental são gritantes – e certas vezes chego a desconfiar que tudo isso, mesmo o que estou dizendo, não passa de pura metafísica furada e “as coisas são o próprio sentido oculto das coisas”, como falou Pessoa por meio do Caeeiro.
E por quais motivos são gritantes os indícios da ausência dessa dicotomia do corpo e da alma em nossa constituição fundamental? Porque nós somos alma e corpo ao mesmo tempo. Porque não existe mal psíquico que não tenha reflexo físico. Porque quando estamos frustrados, quando nos encontramos naquele limbo sentimental de quarto escuro e chuveiro pingando, simplesmente não produzimos, possibilitando então a construção de uma indústria motivacional que tenta, a partir de palavras nem sempre providas da devida ética, colocar nosso ânimo em dia e fazer com que nossos passos sejam para frente e não para trás e para baixo. Mas caso essa indústria motivacional não funcionar, relevando-se que as mais diversas religiões tem se valido dela por milênios com extremo sucesso, atualmente ainda podemos apelar para os psicofármacos, os quais, apesar de até amenizarem por algum tempo esses males do nosso tempo, jamais farão com que nos tornemos curados seja lá do mal que for, o qual pode estar tanto para a depressão quanto para as drogas e vice-versa.
Desta maneira, ao invés de buscarmos apoio em uma indústria motivacional que cresce de modo estrondoso ou mesmo em medicamentos que mais mal do que bem irão nos trazer, talvez seja hora de olharmos para aqueles que caem aos nossos pés nessa corrida coletiva e imensa dos tempos atuais. O desamparo que sentimos não provém somente da falta de tempo ou mesmo do temor com relação ao possível desamparo da queda, mas sim da falta de laços de pele entre as pessoas, laços esses que, longe de serem fugidios como os que movem os jovens pelas casas noturnas da vida, tenham o respeito e a ética como vínculos maiores, já que distantes destes dois traços persistiremos desconhecidos como esse sujeito que pela calçada da Marquês do Herval pensou que remédios iriam aliviar a sua dor de existir.

















