domingo, 30 de novembro de 2008

"saiba tudo sobre a nova moda das lingeries", leio em um anúncio qualquer, o que de imediato me provoca riso.

andre netto.
"saiba tudo sobre a nova moda das lingeries", leio em um anúncio qualquer, o que de imediato me provoca riso. por quê? ora, se a lingerie é uma moda, é uma moda pra ser mostrada pra quem? a resposta é clara: aos parceiros e parceiras das mulheres (ou homens, vá saber), que usam as lingeries. entretanto, desde quando um homem, por mais múltiplo que seja em seus relacionamentos, irá olhar para a parceira de lingerie e dizer: "hum! você está na moda! é a última tendência em milão!" isso seria tão ridículo que a mulher certamente iria brochar instantaneamente. então me pergunto: por que conhecer a nova moda ou a última tendência em lingeries? sinceramente não entendo. até acredito que o estudo da evolução das lingeries possa provocar algum conhecimento da evolução da moral com o decorrer do tempo. afinal, de cintos de castidade passamos para a castidade alguma. entretanto, fico imaginando o que se passava na cabeça dos marqueteiros que formularam o dito anúncio. vejo eles em uma sala ampla, espelhada de vidros, discutindo a questão do anúncio em uma longa mesa de cedro (aliás, o cedro ainda está na moda?). "acho que temos que colocar o adjetivo 'nova' antes do designativo 'moda' para o substantivo 'lingerie', diz um moleque de cabelo lambido com a camisa fechada até o pescoço. "você quer dizer que devemos dizer que a calcinha é nova e o sutiã é novo pra que leiam o anúncio e corram pra loja?", pergunta um senhor na ponta de mesa, este a cara bonachona de um cidadão de bem e um bigode anos setenta. "é exatamente isso", responde um sujeito que sentava na frente do moleque de cabelo lambido. "tudo bem", prossegue o senhor da ponta, "mas por que dizer que a moda é nova se é moda de calcinha e ninguém além dos maridos e namorados dessas mulheres é que verão essa calcinha?" o sujeito da frente do moleque dá de ombros e olha para o moleque com olhos de inquisidor. este, por sua vez, respira fundo e articula sua fala de maneira pausada e explicativa, como se estivesse alfabetizando seus interlocutores. "bom, acontece o seguinte. se posicionarmos o 'substantivo' lingerie sem o adjetivo 'nova' relacionado ao designativo 'moda', nossa venda, ou melhor, nosso percentual de chance de chamar atenção das leitoras do anúncio será reduzida. e por quê? vejamos o seguinte. as mulheres geralmente não tem lá muitos escrúpulos ao comprar lingeries. temos de convir que essas vendedoras de sacolas, aquelas que vão de escritório em escritório, de apartamento em apartamento vendendo lingeries, as quais são as principais fomentadoras da nossa marca, provam essa tese. as vendedoras quase sempre vendem seus produtos a múltiplas clientes ao mesmo tempo, sejam elas colegas de escritório ou vizinhas de apartamento. nesse sentido, as mulheres discutem sobre as lingeries e abrem as peças, sejam pequenas ou grandes, uma na frente da outra, isto quando não experimentam e por vezes perguntam a opinião das outras sobre a peça. claro que não tenho como provar isso, mas alguns relatos me levam a esta evidência. desta maneira, por certo que as mulheres, detalhistas que são, precisam notar as diferenças das lingeries do ano passado para as lingeries deste ano. caso elas não notem essas diferenças, as quais foram implantadas deliberadamente por nós na empresa, como já discutimos algum tempo atrás, o objeto, ou seja, a lingerie, não estará concatenado com o sujeito, ou seja, a mulher, a qual, por ter uma percepção detalhista, precisa de detalhes no objeto que aticem essa sua percepção e assim a levem a uma identificação com o produto. desta forma, o adjetivo 'nova' não está relacionado a quem irá ver a lingerie na mulher ou não. ao contrário, está relacionado a mulher que irá ver a lingerie de um ano e comparar com a lingerie do outro ano, isto a partir de um detalhe que pode estar, como fizemos neste ano, no tipo de renda usada. entretanto, é de se atentar para outro ponto. e qual ponto? vejamos. o adjetivo 'nova' relacionado ao designativo 'moda' que aponta para o substantivo 'lingerie', estão alocados em relação ao verbo 'saber' na primeira pessoa do plural relacionado ao evocativo 'você', isto por conta do 'saiba'. e por quê? ora, se usássemos o imperativo 'conheça', este teria a matiz de 'ordem', e como na sociedade atual a sugestão vale mais que a ordem, de modo que a mesma pode travestir uma ordem quando posicionada em determinado contexto, preferimos usar o 'saiba' ao invés do 'conheça' para que a mulher possa 'saber' e não 'conhecer' algo que lhe é apresentado." após esta explanação, o moleque de cabelo lambido tomou um gole d'água enquanto o senhor da ponta e o sujeito da frente do moleque se olharam com olhos de admiração. porém, o senhor da ponta, sujeito lá dos seus cinqüenta e poucos anos, couro acostumado com peles vá saber de quantas mulheres, fez um questionamento. "olha, eu concordo com você. mas pra mim 'saiba' e 'conheça' são palavras muito próximas e ambas são, como você disse, imperativas. lembro que imperativo é ordem. portanto, tanto 'saiba' quanto 'conheça' são ordens e ambas implicam em ordens. e aí te pergunto: isso não derruba tua teoria?" o moleque pensou, olhou pra cima, desabotoou um botão da camisa, respirou fundo e enfim falou. "olha, eu já sabia disso. mas a partir de um teste constatei que mesmo falha conceitualmente, minha teoria se sustenta no plano empírico." "fale mais sobre isso", rebateu o senhor se interessando pelo assunto e lembrando, lá do fundo da calota craniana, que empírico tinha a ver com real e real tinha a ver com pele e pele tinha a ver com coxas e tudo o mais. "bem", disse o moleque um tanto acanhado, "já que o senhor quer saber vou falar. acontece o seguinte. você tem duas frases pra direcionar a uma mulher. a primeira é assim: conheça o fato de que tenho uma tendência enorme a desejar você. constatei que essa frase não provocava absolutamente nada nas mulheres, isto por conta de noventa e oito testes em um grupo de cem mulheres. pensando nisso, decidi abdicar da logicidade da frase e partir para a incongruência da afirmação. desta maneira, em um contexto de cem mulheres, consegui o que queria em noventa testes." o moleque concluiu meio que de supetão, tentando esconder que tinha mais o que falar ou talvez sem querer dizer o mais que tinha pra falar. o senhor da ponta, já percebendo o que vinha adiante, riu pro sujeito da frente do moleque e perguntou: "mas o que você queria e qual era a frase?" o moleque percebeu que os dois jogavam com o seu caráter introvertido, com sua propensão científica. mas como se tratavam de chefes, decidiu colocar os pingos nos is e prosseguir com sua análise com o máximo de cientificidade possível. "quanto a primeira pergunta, minha intenção era engendrar motivos ao coito em ambientes de badalação noturna que existem nessa cidade. quanto a segunda pergunta, minha frase era a seguinte: saiba que eu tô com um puta tesão por ti, seguida do nome da mulher. nas minhas constatações, percebi que a vulgaridade dessa frase, ainda que dissociada da logicidade e do cunho gramatical prementes, funciona muito melhor, visto que atenta para a demanda das freqüentadoras destes ambientes de badalação noturna desta cidade." "mas tu comeu alguém assim?", perguntou o senhor da ponta, já feliz com a sacanagem pra qual rumava a conversa toda. "olha", começou o moleque, "na verdade consegui promover as condições necessárias para o coito em noventa testes, sendo que o coito em si só se concretizou em três, e isto pelo efeito de outra frase, variação da primeira, a qual empreguei juntamente com um olhar diferenciado e com certas tendências gestuais já no final da pesquisa, isto porque precisava de dados empíricos confiáveis para dar fundamentação ao que me propunha entender." o moleque parou e notou que teria que continuar, ainda que não quisesse. e continuou: "a frase é a seguinte: tô louco pra te comer sua safada, sem vírgula entre uma e outra locução." o senhor olhou para o moleque de cabelo lambido e deu uma risada gostosa. "mas que coisa mais idiota essa tua pesquisa! eu desde sempre soube que mulher gosta é de putaria! e ainda dizem que homem que é tarado! o caramba que homem é tarado! mulher sim que é bicho tarado!" e nisso todos acabaram caindo no riso, até mesmo o moleque de cabelo lambido que inicialmente estava receoso com a sua fala. e fim. entretanto, essa historieta prova alguma coisa? essa teoria que o moleque de cabelo lambido da história engendrou nos diz algo? certamente que não. aliás, talvez até diga, mas só na primeira parte da mesma, pois na segunda, quando ele tentou logicizar sua constatação empírica para a elaboração do anúncio, caiu em contradição, isto porque 'saiba' e 'conheça' são correlatos. e empregados nos sentidos em que o moleque empregou, 'saiba' e 'conheça' jamais surtiriam o efeito desejado, já que desejo algum começa pelo conhecimento, convenhamos. e quem sabe somente aí podemos entender o porquê do tal anúncio que falei inicialmente, sendo que se desejo algum começa pelo conhecimento, anúncio algum começa por uma lógica formal que se abstenha daquilo que a subjetividade carrega de mais profundo, que é justamente o impulso sexual. para conhecer este impulso é necessário sim ter posse de algumas noções empíricas relacionadas por meio da lógica. mas após essas noções, é preciso mergulhar em uma outra lógica, que é justamente a lógica do inconsciente. esta lógica, por sua vez, é completamente dissociada da lógica formal. sendo assim, não reconheceria para fins de consecução do impulso sexual palavras como 'saiba' ou 'conheça', isto via de regra, frise-se. outrossim, reconheceria apenas palavras de cunho direto, de cunho físico, que apontassem diretamente para os objetivos ao qual rumavam, o que aconteceu justamente com a experiência do nosso moleque de cabelo lambido. e dizer isso implica em algum preconceito para com as mulheres? de maneira alguma! ao contrário, somente estou traçando digressões em torno de um anúncio qualquer. tais digressões, antes de suscitarem qualquer preconceito, apenas apontam o fato de que homens e mulheres nunca irão se entender. ou melhor: que nós, homens, nunca iremos entender plenamente as mulheres, por mais que exista o chico buarque que é uma exceção à regra. mas desse desconhecimento, desse não ver porquê no anúncio do qual falei, é que surge justamente a atração e a vontade de conhecer as ditas lingeries, sejam novas ou antigas, que as mulheres irão vestir. afinal, mais vale uma renda nova do que uma renda viciada por dez anos de casamento, pois nem que seja da marca do tope que arrancamos iremos lembrar. assim, "saiba tudo sobre a nova moda das lingeries" é um anúncio perfeito, pois imperfeita foi minha lógica ao tentar racionalizar o tesão. afinal, o tesão é a chave do tesão.

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