quarta-feira, 26 de novembro de 2008

arte não é entretenimento.

francis bacon.
arte não é entretenimento. mas talvez me chamem de purista ao dizer isso. afinal, a arte quem sabe seja uma forma de entretenimento. porém, é necessário dizer que arte não é entretenimento para que seja repensado (ou pelo menos pensado) o papel da arte na sociedade. aqui entra outra questão: por que a arte tem que ter um papel na sociedade? a arte não pode existir independente de sua atuação no ambiente social? cabem algumas linhas para perseguir uma resposta, ainda que, mesmo encontrada, ela tenha que ser puxada pelos cabelos para dizer alguma coisa. em primeiro lugar, creio que o papel da arte na sociedade é o mesmo papel ocupado por um texto qualquer em um contexto social. se um texto precisa de um contexto para enunciar sua fala, a arte também precisa de um papel, de um lugar na sociedade, para dizer o que tem para dizer, e isto pelo motivo de que a arte induz a um conhecimento. este conhecimento, por sua vez, ainda que esteja adstrito ao viés puramente individual daquele que frui a obra, sempre implica em uma relação com o outro, em um co-nhecimento, sendo que é neste espaço de relação que a própria obra passa a ter sentido, uma vez que furtada de olhares e interpretações a nenhum sentido se presta, já que desprovida de intersubjetividade. sendo assim, ainda que algumas obras tragam para si o niilismo da ausência de papel social, isto cai por terra pelo simples fato das obras terem sido produzidas por pessoas. se as obras foram produzidas por pessoas, essas pessoas invariavelmente vivem em sociedade, considerando-se que ao menos pelo enlace da obra possuem uma relação com a sociedade e uma fala direcionada a sociedade. entretanto, entre ter uma fala direcionada a sociedade e ter o que dizer a sociedade, existe uma grande diferença. e nisso reside o segundo ponto que gostaria de abordar, uma vez que noto na maior parte das produções artísticas atuais que tenho a oportunidade de conhecer, a figura do criador substituindo a figuração da criação, de modo que isto anula a própria obra. se o criador elabora a criação para que ela seja uma figuração da sua figura, uma representação da sua presença, seja no formato que for, o que ocorre é que, pelo menos pela representação artística, o criador abdica da sua figura em prol da figuração da sua criação. porém, quando o criador necessita de um rol de frases ou conceitos para explicar sua criação, ligando os próprios conceitos ao que criou, o que se tem é uma substituição da figuração da criação pela figura do criador, visto que o ímpeto racional do criador ao incutir conceitos na criação irá fazer com que o sentido desta esteja subsumido a palavras que transcendem esta criação. e por qual fundamento estas palavras trascendem a criação? pelo fato de que ligam a fruição daquele que toma contato com a obra a um conceito que deu foz a própria obra, a uma explicação que subsume a interpretação ao seu filtro, intercedendo com palavras em uma sensação que deveria ser pré-lingüística, já que a verbalização desta sensação deveria se dar em cada um que toma contato com a obra. se o artista subsume sua obra a um conceito, expondo este conceito àqueles que tomam contato com a obra, o que ocorre no máximo é uma experiência intelectual e não estética. e se o artista provoca uma experiência intelectual e não estética, não estará, ao mesmo tempo, provocando uma experiência ética, uma vez que não dialogará de igual para igual com aquele que toma contato com a obra. partindo da suposição de que existe uma relação de poder imanente a própria presença da obra que dá ao artista uma supremacia em relação aquele que toma contato com a obra, se essa supremacia for aceita e a ela for somado um conceito elaborado pelo artista que liga a interpretação da obra ao seu enunciado, a fala da obra, que deveria ser estética, migrará do plano das sensações para o plano da racionalidade, fazendo com que o criador, com seu aparato cartesiano, sobrepuje a obra, a qual, por mais que nascida muitas vezes de uma intuição intelectual, fruto de uma trama de conceitos que pode mesmo migrar para uma ilogicidade que, trabalhada pelo artista, redunda na obra, pode provocar uma experiência estética. e se a obra pode provocar uma experiência estética, ela pode provocar uma experiência ética, pois faz com que aquele que fala através da obra dê espaço para a própria obra falar. havendo espaço para a obra falar, há espaço para o diálogo da obra com aquele que toma contato com a obra, diálogo este que não necessita da coesão de um conceito, da precisão de uma interpretação, já que está para o plano das sensações ao revés do plano das razões. porém, reconhecendo que o próprio reconhecimento de uma obra implica a indicação de uma supremacia do artista para com aquele que toma contato com a obra e somando isso ao conceito que sobrepuja a experiência estética e dá vazão a uma experiência intelectual, o valor da obra de arte enquanto facilitadora ou provocadora de experiências estéticas é anulado, uma vez que um terceiro elemento, caracterizado pelo conceito, se interpõe entre a obra e aquele que toma contato com a obra, fazendo com que este contato não se dê no plano da liberdade, no plano da própria possibilidade de interpretação, mas sim no plano de uma hermenêutica estrita, a qual faz fronteira unicamente com eventual discordância daquele que toma contato com a obra em relação ao conceito e por via obliqua em relação a própria obra. havendo este terceiro elemento, há a figura do criador se colocando em frente à figuração da criação, caracterizando, portanto, um fator que transcende a criação. essa transcedência, porém, apenas acontece quando a obra é colocada aos olhos dos outros, visto que o criador se posiciona como terceiro elemento apenas quando aos olhos dos outros de modo a interceptar a experiência estética com sua repressão racional. isso acontece porque na obra, considerada em seu sentido unitário, desvinculado da intersubjetividade que lhe é inerente quando posta aos olhares dos outros, o próprio artista, o próprio criador reside, visto que ele é a figura que promove a figuração, é a presença que provoca a representação. desta maneira, se o artista se interpõe entre a obra e os outros no sentido de fazer com que sua figura sobrepuje sua figuração, além de travar a própria possibilidade da experiência estética, está ocasionando o retorno da obra ao seu sentido unitário, apenas dando enunciação à própria fragmentação social na qual este mesmo artista vive. por conseqüência, uma arte conceitual terá um papel social limitado à representação dos tempos em que esta própria arte se dá. e se esta arte tem um papel social limitado à representação dos tempos em que esta própria arte se dá, o que ocorre é a impossibilidade da experiência estética e por conseguinte ética, levando-se em conta que uma das características dos nossos tempos é o esvaziamento da esfera ética da sociedade. este esvaziamento ocorre em razão da instrumentalização dos sujeitos planificada pelo sistema econômico, o qual, com suas múltiplas esferas de penetração social, faz com que pessoas se tornem objetos no sentido de serem meios para consecução de um fim maior expresso pelo mercado ou pelo capital. este fim maior, por sua vez, faz o papel de centro metafísico ordenador da sociedade, já que tanto o termo capital quanto o termo mercado se prestam a tantas significações quanto se presta a designação de deus, mudando apenas o foco ao qual cada termo se direciona. esta mudança de foco denota o sintoma do hedonismo, uma vez que se não há a possibilidade de uma felicidade fora dos limites empíricos, a tendência é que esta felicidade seja transformada em prazer. se a felicidade é transformada em prazer, a felicidade é transformada em fugacidade. se a felicidade é transformada em prazer e por conseqüência transformada em fugacidade, o que ocorre é que a própria felicidade se transforma em uma acumulação de experiências de prazer. mas reconhecendo o fato de que uma das características do prazer é a fugacidade, é a temporalidade, o espaço que antes era ocupado pelo paraíso divino agora é preenchido pelo tempo terreno. e se há esse preenchimento que tem por característica a finitude do tempo, a fugacidade do prazer, esta acumulação de experiências de prazer jamais irá dar conta de uma vivência de felicidade fora dos estritos limites do seu tempo. logo, se a felicidade é estrita ao tempo no qual eu sinto prazer, considerando que o espaço do paraíso divino é ocupado pelo tempo terreno, o que acontece é a retomada ou a decorrência de um individualismo que está presente na sociedade desde meados do século XVII, mas que surgiu no campo social, especialmente no âmbito econômico, com o liberalismo propalado pelo século XIX. esta retomada ou decorrência, em um contexto hedonista que não vislumbra a felicidade fora dos limites do tempo, fazendo com que este sobrepuje o espaço, irá incorrer em um caráter individualista exacerbado, uma vez que se não acredito na felicidade fora dos limites do prazer, o que farei é afirmar minha individualidade em busca desse prazer seja ao custo que for. afirmando minha individualidade em busca desse prazer, instrumentalizarei minhas relações de modo a buscar mais experiências de prazer para alcançar a felicidade, o que redunda na própria objetificação dos sujeitos, a qual é bem exemplificada pela fetichização dos corpos característica dos tempos atuais. ora, se uma obra busca tão-somente a representação desse contexto, por mais que esta obra possa promover a sensação de estranhamento, o que essa obra fará será compactuar com esse contexto. compactuando com esse contexto por conta do protagonismo do criador em razão da obra e não o contrário, haverá novamente a afirmação do individualismo e a instrumentalização daqueles que tomam contato com a obra, uma vez que estes, privados do contato com a criação por conta da interposição da figura do criador entre a criação e aquele que observa a obra, terão um papel subsidiário no próprio movimento da obra no âmbito social. este papel subsidiário existirá porque os comentários sobre a obra ou mesmo as conseqüências da obra, no mais das vezes apenas servirão para fomentar o mercado artístico, o qual atualmente atinge a cifra de bilhões de dólares ao ano pelo menos no campo da artes visuais. este mercado artístico marcado pela supremacia do ego em detrimento das relações com o outro, será apenas um reflexo da própria realidade no qual está inserido, uma vez que a substituição do significante da obra pelo significado do conceito, este representando a figura do criador, em nada irá modificar esta realidade, fazendo com que retornemos a questão da razão da arte ter ou não ter um papel na sociedade. antes disso, convém dizer que a substituição da criação pelo criador não se dá apenas no âmbito da arte conceitual, a qual foi aqui abordada. esta substituição, ao contrário, pode ser encontrada até mesmo pela proliferação de uma literatura e de um cinema, por exemplo, que promove ao nível de verdade uma mera representação da verdade. se há essa ausência de demonstração de que a verdade é uma representação, e se há a prepotência de que uma representação seja uma verdade, novamente há a supremacia do criador em função da criação, o que redunda novamente na fragmentariedade, no individualismo e no hedonismo característicos da sociedade atual. desta maneira, acredito que o modo de superar essa crise está para a aceitação da não-razão da própria crise. existe a necessidade da aceitação da não-razão da própria crise porque o mundo sempre esteve em crise, e o que ocorre é tão-somente uma inadequação das narrativas atuais aos protagonistas globais que se apresentam neste contexto. logo, o que devem mudar não são os protagonistas, mas sim as narrativas, já que um tempo caracterizado pelos fatores do fragmento que quer se afirmar enquanto indivíduo em busca da felicidade a partir da acumulação de experiências de prazer, não pode ser abarcado por uma narrativa distanciada deste tempo, provinda de uma suposição iluminista de que a razão supostamente poderia nos guiar. e se é verdade que o tempo ocupou o lugar do espaço, fazendo com que os papéis sejam em função do tempo e não em função do lugar, a não-razão da crise somente se acentua, pois o que deve ser buscado, ao contrário do que atualmente se afirma, não são novas posições dentro de uma estrutura já dada, mas uma nova condição de narrativa desta própria estrutura que nos é dada e que, por estarmos inseridos nela, ajudamos a sustentar. e uma nova condição de narrativa desta própria estrutura que nos é dada, certamente não passa por uma representação dessa própria estrutura, quanto mais se pautada pelo viés individualista característico do senso egoístico da maioria das obras atuais. essa nova condição, paradoxalmente, ao passo em que afirma esse tempo por meio da representação desse tempo, deve transcender esse tempo em direção a um futuro incerto, e por isso não traduzível em palavras. se deve ser buscada essa direção, recupera-se a necessidade da experiência estética enquanto pressuposto da própria vivência ética, visto que se há a preponderância da experiência intelectual, a realocação das próprias percepções daquele que observa a obra não se dará, uma vez que já parte de uma base explicativa. desta forma, partindo de uma base explicativa para se afirmar enquanto obra, o outro é anulado e a fala do artista é unilateral assim como é unilateral a fala do mercado e do capital, por mais que nós não saibamos de onde ela vem. e talvez a fala do artista que faz com que sua figura sobrepuje sua figuração seja também uma das falas desse mesmo mercado e desse mesmo capital, uma vez que a mesma quase sempre se apresenta de forma polifônica, de modo que chegou a fazer com que alguns, no início da última década do século XX, chegassem a afirmar que a história havia chegado ao fim. se é isso que ocorre, a obra, ao contrário, deve partir do não-dizível em direção ao não-dizível, sendo que é nesta esfera que está o plano da sinceridade. e como o plano da sinceridade é imanente ao plano da verdade, o qual, por sua vez, deveria ser imanente ao plano intersubjetivo, isto é, da relação entre os indivíduos, este é o caminho a ser buscado pela arte atual para superar a própria crise ilusória que acredita viver, uma vez que tal rumo implicará em uma nova narrativa. assim, arte não é entretenimento no mesmo sentido em que trabalho não é diversão. arte é algo sério, mas de uma seriedade lúdica, a qual somente se sustenta por meio de jogos do não-dito, por meio de matemas do não contabilizável, sendo que são desses jogos e matemas que nossa própria realidade é feita. essa pré-lingüísticidade da arte é que traduz a experiência estética que ela deve oferecer, a qual redundará na experiência ética entre aqueles que se propõe a tomar contato com a obra. isso ocorre pelo simples fato de que aprendemos a viver antes de aprendermos a pensar, conforme bem pontuou camus, considerando-se que é neste estágio que as relações éticas se coadunam, já que pautadas em uma membrana não baseada somente no empirismo ou no subjetivismo, mas sim na intersecção de ambos com a planificação social na qual se vive. porém, é de se dizer que toda esta reflexão está para um dever-ser que provém do próprio ser do tempo atual da arte. contudo, creio que é apenas a partir desse dever-ser que será possível contornarmos nosso umbigo, o qual um dia ainda há de nos engolir caso não reconheçamos que ele é a marca da nossa finitude e por conseqüência do fato de que tivemos de estar ligados a outra pessoa para nascermos. ainda que a finitude, em sentido estrito, não pressuponha a comunidade, é de se afirmar que somente são finitos os seres ou as coisas que são em grupo. e se reconhecermos que todas as coisas e todos os seres são finitos caso não queiramos cair em uma fundamentação metafísica ou teológica, logo reconheceremos que todas as coisas e seres são em grupo e portanto apenas existem em grupo. por conseqüência, se somos humanos e somos em grupo, é necessário que olhemos para o outro e reconheçamos o outro não como objeto, mas como alguém, o que somente pode partir de um senso ético da própria realidade. ainda que o ímpeto egoístico nos envolva pelo próprio sistema no qual estamos integrados, para a superação desse ímpeto é necessária a retomada da relação com os outros não pautada apenas na explicação ou no prazer, mas pelo respeito ao outro. o respeito ao outro, desta forma, somente se dará com a reconhecimento de uma vida que precede o pensar e de uma relação com os outros que precede o próprio viver, já que mesmo a linguagem que pelos outros nos é passada e cria o nosso mundo existe antes de nascermos e continuará existindo após morrermos. e em idêntica via se encontra a necessidade da afirmação da criação sobre o criador, pois se o criador se afirma mediante a criação, retornaremos talvez a um cenário medievo, ao qual, entretanto, já estamos rumando pela própria falta de referenciais. o problema maior, no fim, acaba por ser este: se não temos deus e não temos razão, o que nos restará? a resposta imediatista irá dizer que restará o prazer. porém, se reconhecermos que o mecanismo do prazer nos tempos atuais no mais das vezes é impulsionado por um mecanismo de fuga justamente pela ausência de referenciais, a própria compreensão desse mecanismo e por conseqüência dessa ausência de referenciais irá nos levar a um significado diferenciado. esse significado diferenciado, partindo não do que o outro poderá me oferecer mas do reconhecimento de que só sou em função do outro e vice-versa, é que poderá construir uma outra realidade, na mesma medida em que montaigne dizia que pensar é aprender a morrer. contudo, se pensarmos essa problemática, o movimento seguinte deve ser uma superação do pensamento em direção a sua raiz, a qual se encontra na vida, pois é dela que todas as experiências éticas e estéticas, e por conseqüência todas as possibilidades de arte, invariavelmente surgem, independentes de explicações ou prazeres.

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