domingo, 23 de novembro de 2008

o poema é a raça de um tempo que não pode se dizer lógico.

goya.
o poema é a raça de um tempo que não pode se dizer lógico. por isso tanta centelha e tanto fogo de palha. mas quem haverá de ouvir proposição tão batida? o certo é que virarão as costas e continuarão escamando num eterno trocar de pele. no mais, só rastejarão e engolirão torrões em cada mangue ou cancha. é preciso jogar. por isso que insisto. porém, ao mesmo tempo que é preciso jogar, é preciso saber jogar. jogo sem regras inexiste. a vida tem regras: a linguagem tem regras. por mais que por vezes não saibamos quais são essas regras, existem marcos e marcas que regem tudo o que somos e por conseqüência fazemos. mas somos ao fazer ou fazemos ao ser? na realidade não interessa. o que vale é o que fica. e o que fica é o que é feito. se sentimos o vento de um modo ou as coisas que passam pela nossa frente de outro modo, isso é uma coisa. coisa bem diferente, entretanto, é o que iremos fazer com isso. podemos tão-somente sentir e nos isolarmos nesse invólucro sem nome que chamamos de pele, de olhos, de boca. podemos deixar que as coisas passem, que os carros passem, que as pessoas passem. porém, se existe um arrebatamento que nos leva para outro lado, seja o lado de cordas, seja o lado dos corpos, seja o lado das letras, esse sentir passa a ter conteúdo diferente porque passa a ter conteúdo criativo. dessa criatividade é que nasce aquilo que se entende por criação, a qual jamais irá se separar do criador. a criação, ao contrário, é uma extensão do criador que existe, porém, sem a presença do criador. contudo, se a criação existe sem a presença do criador, o criador está na criação na mesma proporção em que o sangue circula por nossas veias e aciona o coração. (e por qual motivo o coração pára? fica para a próxima: consultarei um vade mécum do corpo humano, prometo, apesar de não confiar na minha promessa.) o criador está na criação porque ela tem o seu suor, porque ela tem o seu querer, porque ela tem o seu amor. se isso vale alguma coisa, dependerá do resultado, dependerá do que foi sentido quando outros, estes completamente desconhecidos do criador (ou não), travaram contato com a criação. mas haverá criação ou possibilidade de criar? creio que sim. ainda que toda obra seja a realocação de alguns componentes básicos que estão presentes em toda criação, toda obra é única, isto porque o modo como estes componentes são alocados na mesma é que define sua identidade. dizer que inexiste possibilidade de criação porque desde sempre o mundo nós é dado de determinada forma, em determinado formato, é acreditar na obra com um senso de dois séculos atrás. é, enfim, acreditar na pureza. em sentido completamente oposto, porém, está a criação, porque a criação é a reorganização do que foi visto, sentido e vivido pelo criador, de modo que este criador pode ter várias influências, pode ter várias sensações para ver, sentir e criar, sendo que todas essas influências que confabulam sensações é que irão determinar a obra. a qualidade da obra, contudo, está para o modo como esse criador trabalha esse jorro, esse ímpeto, esse raio ou relâmpago que provoca a intenção da obra. dizer que existe uma arte gestual é bobagem, pois por mais que a arte seja gestual, a preparação é pré-existente ao próprio gesto, pois para movermos um braço temos que ter a intenção de mover o braço ou pelo menos um motivo externo para fazê-lo. desta maneira, nada acontece porque o gesto se fez obra e se fez tela ou texto. desta maneira, não há que se falar também que uma tela ou texto é a expressão de um gesto. ora, uma tela, um texto, uma película de cinema são recortes do impenetrável. e o que é impenetrável é o movimento. o movimento é impenetrável porque jamais poderemos tocá-lo, porque jamais poderemos sabê-lo fora dos limites da representação. o que vemos do movimento são apenas parcelas de movimento, são apenas fotografias recortadas de uma extensão que nossa percepção não pode alcançar. e nossa percepção não pode alcançar esta extensão porque ela é tão-somente energia. sim: o movimento é energia na medida em que anula o espaço para preenchê-lo com tempo. por isso que nossos sentidos jamais poderão tocá-lo de uma maneira que possibilite a sua compreensão. porém, a mínima noção que podemos ter desse movimento se coaduna na própria possibilidade de criar. se criamos, estamos intuindo o imponderável, estamos perscrutando o que ainda não foi descoberto, ainda que essa minha visão seja deveras afetada pelo bergson. se criamos, estamos entrando no movimento que nos atravessa para que dele algo se incuta em nosso senso e provoque a própria criação. por mais que essa criação seja apenas um fotograma da energia, uma parcela aprisionada do movimento, ela será a única forma de percebê-lo, ela será a única forma de saber da sua existência, pois é essa criação que partirá do silêncio, que partirá da própria possibilidade de dizer que provém desse movimento. e esse movimento é silencioso porque tem uma melodia que não é audível para nós, seres que somente percebem parcelas e jamais percebem o todo visto que o todo é movimento. contudo, podemos ao menos intuir o todo, podemos ao menos desconfiar que tudo é movimento e energia e abrange toda e qualquer parcela do que criamos ou percebemos de uma maneira que abarca todas as coisas existentes ou inexistentes, pois a mera possibilidade de ser já implica existência. e é essa intuição trabalhada pelo artesanato do criador, pela marcenaria do artista, pela implosão e explosão constante de sentimentos tornados conceitos, de sensações tornadas palavras, que redundará na própria criação. desta forma, talvez sempre tenhamos vivido em um tempo que não pode se dizer lógico, pois afinal sempre se fez poesia. (é essa constante atração/repulsão do que digo que me atrai. por isso escrevo dessa forma aqui. é algo físico: o texto é físico.) talvez a tentativa de legar logicidade àquilo que nossos antepassados viveram, seja tão-somente uma visão distorcida do que em realidade acontecia. se essa energia e esse movimento que nos atravessa e nos une em uma corrente eterna é imperscrutável, a realidade é que nunca houve uma teoria que pudesse abarcá-la, pois por mais que a logicizemos, o que acontecerá, o que se verá, será novamente um mero fotograma, uma mera amostra de uma realidade muito maior. desta maneira, dizer que as revoluções do passado não mais podem se realizar hoje em virtude da ilogicidade do nosso tempo que somente segue a lógica supra-sensível e/ou metafísica do capial, é apenas dizer que compreendemos o ontem pelo olhos do hoje porque sabemos os reflexos que esse ontem faz ou fez nesse hoje. o amanhã do nosso hoje não podemos saber porque vivemos nosso hoje. se vivemos nosso hoje, tudo quanto se dizer acerca do amanhã será futurologia sem lógica alguma, porque a própria lógica é fruto do tempo no qual se dá. até mesmo no campo fisiológico é assim, pois se hoje existe um exame que detecta a doença x, talvez amanhã exista um exame que simplesmente diga que a doença x na verdade é a doença y, o que faz com que tudo quanto se sabia caia por terra. e se cai por terra, também sai da terra, também sai do solo. e considerando que nosso solo é a finitude e a própria possibilidade de dizer essa finitude provém do movimento, da energia, é disto que nasce a própria possibilidade. por conseqüência, não há motivo para frustração no fim. a beleza do fim depende do credo. no fundo, o fim é o quanto acreditamos ou não no que fazemos. se acreditamos, mesmo que com aquela fé cega que a tantos mata, o resultado será um. se não acreditamos, o resultado será outro. a relação entre o fim e a crença é a freqüência do movimento, da energia que nos atravessa. e a conseqüência desta relação serão os resultados dos nossos atos. ainda que os signos do real sejam sempre os mesmos e os elementos com os quais trabalha o real possam ser condensados em uma tabela periódica, existe algo que ultrapassa o real que nos é palpável e nos une a todos: coisas, animais, vegetais, minerais. logo, todos tem uma espécie de consciência porque todos são atravessados por essa energia. a freqüência que essa energia toma ao nos atravessar é que dirá daquilo que somos. quem sabe isso esteja para o fato de algo ou alguém ter nos criado. mas prefiro acreditar que essa energia sempre existiu, pois o mistério do criador é melhor do que a certeza da criação. a criação é amostra. o criador é aquele que mostra. se a criação é amostra e o criador mostra esta amostra, melhor desfrutar de um ser que nos dá sensações ao revés de sentidos do que de um sentido que talvez nos privasse de todas as sensações. no fundo, é uma questão de escolha. apontamos nossos controles para o coração do nosso sol, para parafrasear o waters, e o resultado é o que somos. e mais: o que fazemos, por mais que atos por vezes mascarem vidas. por isso que sei que existe muito fogo de palha: porque poucos respeitam a criação. a maioria coloca o criador acima da criação, quando em realidade a equação demanda o contrário. por mais que a criação seja fruto do criador, o que vale é a criação e não o criador. o que vale é a representação da sua voz nos ouvidos do outro e não em como você ouve ou deixa de ouvir sua voz própria voz. o que valem são os olhos do outro por sobre seu texto. o que vale é o que você diz e faz, não o que você é. e mais além, o que vale é o que você diz com o que faz e faz com o que diz, pois são dessas relações que talvez provenha uma obra. essa obra, como já falava o leminski, não tem que ser prima: pode ser irmã, tia. e quanto maior for a ordem de parentesco, melhor, pois uma obraesposa (assim sem hífen mesmo, sem barra mesmo) seria o cúmulo da insistência de representar o amor em algo criado: o antinatural no que nos é natural porque somos cultura e letras e signos. porém, o objetivo principal da obra é ser apenas obra, sem hífen ou família, isto porque a família da obra é o próprio universo. logo, que comam torrões de terra esses que colocam o criador acima da obra. é necessário que seja assim. se todos os sonetos fossem publicados, o mundo seria insuportável como um rapper. e sei que sou preconceituoso sim ao falar isso, mas se o preconceito é um pré-conceito, que assim seja, porque ao menos um dia posso mudar de idéia assim como quem troca de pele. por isso que é preciso jogar mesmo que as regras do jogo se dêem no próprio jogar. por isso que é preciso estar atento e dar alento àquilo que do mundo nos chega. pois nós estamos no mundo: pois nós fazemos o nosso mundo ao passo que esse mundo nos faz. e é isso que faz o poema ser esta raça que tão má-qualidade no mais das vezes tem hoje: o ego sobrepuja a criação e faz com que o criador tenha o protagonismo que deveria ser da obra. e isso é puro hedonismo. ora, poesia não é diversão. poesia é algo sério. sério demais para mim, talvez. poesia não é usar drogas ou ler filosofia. poesia é o contrário do que se pensa. poesia é o não-dito. poesia é a irresponsabilidade de dizer o que não pode ser dito. o poeta é um ilusionista. ou melhor: o poeta é um mágico. ou melhorando: o poeta é um alquimista. e sim: rimbaud estava certo, porque o que o criador faz é transformar e transformar sempre, mesmo que o objetivo não seja o ouro, mas sim o outro. e somente quando reconhecermos que é esse o objetivo de toda arte e de nós próprios, é que faremos obras sem a arrogância daquilo que somos ou acreditamos ser, pois a nossa melhor parte sempre está naquilo que calamos ao falar, naquilo que velamos ao mostar, naquilo que damos ao negar e naquilo que negamos ao dar. dessa contradição é que provém a obra. desse paradoxo é que provém a vida, pois é da vontade de sermos um que nascem nossos filhos. e se fosse diferente, não seria humano, porque somos estrangeiros em um tempo que está nos caçando na forma de espaço. afinal, temos corpo. restará, quando muito, alguma poesia. e este é o meu credo, pois é preciso jogar, ainda que a lógica do jogo se dê na frequência do relógio-mor que palpita no coração da coisa, no seio do ser - no movimento, no passar das cartas, no blefe de um simples texto que é puro movimento, tempo por sobre espaço, motivo tornado fundamento para dizer o que diz.

Nenhum comentário: