segunda-feira, 10 de novembro de 2008

um cachorrinho carregava um pedaço de caixa de papelão com a boca ladeira acima.

cildo meireles.
um cachorrinho carregava um pedaço de caixa de papelão com a boca ladeira acima. sem mais, largou a caixa e seguiu farejando as pedras da rua, procurando sabe-se lá o quê. aí parou e começou a latir em resposta a uns outros latidos que vinham da quadra de cima. de repente, outros dois cachorros surgiram mais abaixo: um poodle, desses de madame mas com a tosa por fazer, meio com cara de decadente, e um outro que a escuridão de um quase-noite não me trouxe distinção, mas que parecia um vira-lata qualquer. esses dois olharam para aquele que estava no meio da ladeira e que havia carregado a caixa até há pouco. nisso desceu uma pampa pintada nas portas com uma cor que a luz dos postes me fez pensar que era amarela, o que fez também com que o cachorrinho da caixa de papelão fosse para o costado da rua e respondesse a mais uns latidos que vinham da quadra de cima e da casa do vizinho, no qual existem três cachorrinhos, também poodles decadentes, presos em um canil minúsculo. fiquei observando aquela cena enquanto batia no meu rosto um vento norte que meu avô sempre disse ser de chuva. entretanto a lua era alta e algumas estrelas ainda podiam ser vistas entre as nuvens, o que me fazia pensar que não iria chover tão logo. porém, lembrei que essa coisa de premonições ou constatações prévias de coisas que estão para acontecer sempre faziam algum sentido. afinal, o fato do meu avô dizer que o vento norte era prenúncio de chuva devia ter alguma fundamentação ancestral. talvez o pai do meu avô, tecnicamente o meu bisavô, tenha dito isso pra ele e ele tenha dito isso pra mim, de modo que aquela fala que se perdia nas décadas ainda encontrava ecos na minha fala. mas pensar em toda essa linha de falas que se perdiam em décadas e de cachorrinhos que subiam a ladeira me fez cansar. logo entrei pra dentro de casa e fechei a porta da sacada para que o vento não amontoasse pó nos móveis. porém, ao sentar na frente do computador, o calor de novembro me fez ligar o ventilador, fazendo com que um outro vento, dessa vez um vento artificial, batesse nos meus pés suados pelo começo do verão. lembrei nesse momento de um jogo que existe no meu celular. o jogo é mais ou menos assim: um programete manda você pensar em uma palavra e nisso faz várias perguntas a você tentando adivinhar a palavra na qual você pensou. as perguntas às vezes são meio sem pé nem cabeça. por exemplo: você pensa em uma pedra de ouro e ele pergunta se você faria um buraco nela. necessariamente, quer dizer, ele não pergunta se você faria um buraco nela. ele pergunta assim: você faria um buraco nessa coisa? desconsiderando a hipótese de uma aliança, isso soa estranho, convenhamos, mas de vez em quando esse programete adivinha as palavras que você pensa. claro que o programador do programete deve ter pensado em palavras do senso comum que qualquer desocupado pensaria se jogasse um jogo desses no celular. hoje pela manhã, só pra se ter uma idéia, pensei em um ventilador e me pus a jogar o dito jogo. pergunta vai e pergunta vêm, ele me deu a resposta: você está pensando em uma ventoinha elétrica. claro que eu achei isso meio português demais, meio luso demais para o meu senso brasileiro e sulino. quem irá chamar um ventilador de ventoinha elétrica? mas o fato é que o programete havia acertado a palavra ou a coisa na qual eu havia pensado meio com sono e meio acordando pela manhã. pra deixar mais claro o tempo no qual se passou isso, não era necessariamente manhã: era quase-tarde. mas quem define o que é manhã e o que é tarde para quem recém está acordando? a resposta é ninguém. podem até haver definições de tempo marcadas ao sabor das fábricas da vida, mas essas definições não se aplicam àqueles que não trabalham nessas ditas fábricas. contudo, tenho de admitir que era quase-tarde, o que talvez crie certo adjetivo de preguiçoso para quem estiver me lendo, mas isso não há de ser nada, mesmo que o zé carioca não seja dos meus favoritos. porém, pensar que um programete de celular pode adivinhar uma palavra que penso com sono me faz pensar que o meu avô não estava de todo errado ao dizer que o vento norte é prenúncio de chuva. quantas gerações meu bisavô deve ter ouvido para chegar a essa conclusão? viajemos. imaginemos um matzembacher de quinhentos anos atrás. certamente ele estaria na alemanha e vamos supor que ele estaria morando perto da floresta negra, aquela na qual o heidegger tinha uma cabana nos tempos da segunda guerra mundial. essa floresta negra, quatrocentos anos antes do heidegger, certamente era muito maior e mais extensa, sendo que só as bombas aliadas devem ter explodido metade dela, considerando, é claro, que as bombas aliadas tenham lá chegado, sendo que aqui sou totalmente a-historiográfico. logo, quando soprava um vento norte, meu antepassado dizia: é prenúncio de chuva, vai chover, etcetera e tal. não sei como se diz isso em alemão, mas certamente ele diria isso com um sotaque carregado e com o intuito de ir pra mata cortar mais lenha pra não ficar sem almoço no dia seguinte. ou sem lareira pra noite fria. enfim, não interessa. mas séculos depois, décadas depois, meu bisavô falou isso para o meu avô e meu avô falou isso para mim. consequentemente, acabei pensando nisso quando senti bater o vento norte na minha face, ainda que desconfiasse que essa previsão era completamente disparatada daquilo que havia lido em um site na parte da tarde, o qual dizia que chuva só para o final de semana. e levando em conta que é apenas segunda-feira, só podia ser bobagem aquele eco antigo que em meu ouvido se fazia voz. afinal das contas, o que pode o senso de um matzembacher de quinhentos anos atrás contra os telescópios e barômetros dos dias atuais? a intuição me faz querer dizer que pode muito, mas a razão me faz querer dizer que pode pouco. mas só para dar mais foz à voz, opto pela intuição. há de se convir que esta às vezes vale mais que a razão, ainda mais levando ao pé da letra o diagnóstico de certos economistas nesses tempos de bolsas em crise. não dá pra notar que eles tratam a economia como uma mulher prestes a entrar em um surto qualquer? concordo que a própria palavra economia assim como a palavra verdade sejam femininas, mas sopesando o fato de que esses sujeitos se julgam especialistas, acho que não é pra tanto. acontece, enfim, que tais economistas dizem que o mercado está nervoso e que por conta disso a tendência é a economia ficar mais nervosa ainda. será o mercado o marido da economia ou será a economia a amante do mercado? das duas hipóteses fico com a última, pois volátil do jeito que é, a economia só pode ter amantes. portanto, leia-se volátil como infiel, o que chega a ser uma denominação bacana. estranho é que pensar que a economia tem amantes me faz pensar em quem seriam os seus amantes. seriam os estados unidos ou a união européia? se fosse a união européia, há de se convir, a economia seria lésbica. mas se fossem os estados unidos, ela seria um tanto atrasada, já que seria quase que tradicional uma mulher casada com o mercado ter por amante os estados unidos, supondo que ele seja texano e presbiteriano. entretanto, se ela tivesse por amantes tanto os estados unidos quanto a união européia, a qual, só pra não perder o glamour, seria existencialista e fumante, não seria uma hipótese mais cabível? algo me faz pensar que sim, sendo que em tempos de liquidez, e aqui lembro do bauman, tudo se torna frágil e fugidio, até mesmo a fidelidade. e quer algo mais infiel ou volátil que a economia? certamente não há, levando em conta o fato de que ela é casada com um sujeito chamado mercado. contudo, se a economia é infiel e se o programete do meu celular acaba adivinhando que a palavra que penso assim como a premonição do meu avô adivinha que vai chover, quem está certo? a resposta é tanto um quanto outro e mais outro, nunca esquecendo que já me esqueci de quantos falei. se formos levar o assunto à fundo, o fato de tirarmos conclusões imateriais das coisas materiais que nos rodeiam é algo constante. isso até me faz lembrar que o descartes acreditava que a glândula pineal era uma espécie de órgão cerebral que transformava o material em imaterial, isso por conta de uma ilustração dele que vi ontem. entretanto, lembrando que alguns dizem que o ser humano só pode se movimentar no cenário da cultura, e portanto no cenário da linguagem, posição com a qual compactuo, haverá algo material a não ser o imaterial? claramente que não, pelo menos considerando aquilo que podemos conhecer. mas aqui cabe outra pergunta: seria a palavra imaterial sendo que ela está por todas as partes no mundo onde vivemos? há de se concordar, aqui, que palavras nos cercam por todos os lugares. basta sairmos na rua para vermos alguma placa de trânsito dizendo pra não irmos praquele lado ou alguma propaganda dizendo pra comermos tal e tal coisa porque faz bem à saúde. aliás, essa coisa de fazer bem à saúde sempre me soou mal. o porquê disso fica para outra ocasião. mas voltando ao questionamento das palavras serem materiais ou imateriais, a constatação de que essas palavras são anúncios e são placas e até mesmo regem nossas vidas, já que a maior parte dos estados tem constituições e todas as religiões tem livros que dizem o que são essas religiões e no que os fiéis devem crer, serão as palavras algo imaterial? algo me faz pensar que sim. mas ao mesmo tempo algo me faz pensar que não, visto que aquilo que mostra a palavra não se confundiria com a própria palavra. seria como o mecanismo do sonho do freud: aquela coisa de condensação e deslocamento. mas deixo isso pra outra hora também. a realidade, voltando àquilo do que falava, talvez encontre aporte no fato de que as palavras não são materiais nem imateriais. ao contrário, as palavras se dão na intersecção da materialidade com a imaterialidade, no esbarrar de ombros do de dentro com o de fora. logo, o significado dessas palavras existe como que na saída de um estádio após um jogo de domingo. e existe somente porque algum administrador que mal sabe administrar, deixou que as duas torcidas saíssem pelo mesmo portão, o que gerou esbarrões mil e pancadarias lógicas. e é nesse conflito que se dá a palavra, e é nesse esbarrão e nessa confusão da má administração que se dá a palavra: fusão da imaterialidade do sentimento da torcida com a materialidade de um bofetão nas fuças. por causa desses fatores, é que creio que qualquer transformação social que se queira jamais irá se dar de cima para baixo ou mesmo de baixo para cima. ao contrário, qualquer transformação social que se queira precisa de centros irradiadores tanto na parte de cima do estamento social quanto na parte de baixo do estamento social. afinal, relações sociais não são linerares: são em rede. isso pode soar óbvio, mas tomando por norte o fato de que no brasil, por exemplo, temos uma classe média que se divide em outras subclasses de A à Z, é muito mais complicado falar tal coisa. qual seria o fundo do poço da classe média? qual seria o ponto que diria que aqui começa a classe média e aqui começa a classe baixa, como que numa divisão de times da quarta série? são coisas muito difíceis e sempre acaba sobrando um perna-de-pau que vai pra sobra de um dos times jogar de zagueiro. por conseqüência, qualquer transformação social que se queira teria que levar em conta todas essas vicissitudes e ainda por cima utilizar a palavra para levar em conta todas essas vicissitudes. logo, não seria uma transformação de fora pra dentro e nem de dentro pra fora e muito menos de cima pra baixo ou vice-versa: seria uma transformação que se daria no conflito e portanto na própria materialidade imaterial da palavra. seria uma transformação que, por outro lado, somente se daria porque tem pontos conflitantes em si, coisa que não existe tanto nas pretensões comunistas quanto nas pretensões liberalistas, já que ambas carregam consigo um ideal de pureza. e considerando que a pureza é algo inalcançável nos dias atuais, nos quais por mais que queiramos nenhum alvejante irá nos livrar dos ácaros, o palpável teria de passar por essa confusão, sendo que a complicação começa no momento em que o próprio palpável decide passar por essa confusão. e onde começa essa confusão? certamente no instante em que alguém de dentro pensa ter razão e alguém de fora também pensa ter razão. ou melhor, pra ser mais direto, começa no momento em que uma torcida crê em uma coisa e outra torcida crê em outra coisa completamente diferente, sendo que ambas acabam se esbarrando na saída. assim, achar uma via racional em meio a essa profusão de identidades que deixam de ter identidade pelo próprio movimento, pelo próprio conflito, seria o único rumo possível para uma transformação social, sendo que este rumo, ao que se vê pelo menos dos governantes atuais, não irá ser alcançado. mas por algum governo ele foi alcançado? mas algum governo viu o que vemos hoje? a resposta é não, apesar de certas críticas sociais do próprio machado de assis, feitas lá no século XIX, poderem ser aplicadas perfeitamente aos dias atuais. entretanto, isso se deve ao fato de que o brasil é um país mais do que plural. o brasil, em suma, é aquele país no qual pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade convivem uma ao lado da outra. é algo como você ter uma carroça, uma fábrica e uma lan house em uma mesma esquina. e quem vive no brasil sabe que isso existe em todas as cidades. portanto, como querer aplicar uma lógica que vem da europa a um espaço que é completamente distinto da europa? o fato é que nós não nos adequamos a qualquer conceito que venha de outro lugar. o fato é que mesmo sendo lidos por olhos daqui, somos quase sempre lidos com conceitos de lá, de modo que não há como haver subsunção. e isso não implica em um senso que quer se livrar de uma suposta espoliação do terceiro mundo pelo primeiro mundo. considerando que a dívida externa do brasil nos dias atuais está praticamente paga, isso de acordo com algumas fontes da imprensa que li por aí, como levar em conta tal subsunção? não há mais que se ter esse sentimento de inferioridade latino-americana, o que era muito caro aos nossos pais e mesmo a alguns que tem a mesma idade que nós, supondo que meu leitor tenha vinte e poucos anos. até porque governos pouco comandam hoje em dia: mais valem empresas. há que se achar, por outro lado, racionalidade em meio ao conflito, e por conta dessa busca há que se achar uma nova racionalidade que se amolde aos dias atuais, que se amolde a essa profusão de crenças que se mostram no cenário social, já que abstração por abstração rima com castração. do contrário, toda e qualquer solução será como uma previsão do tempo que provém de séculos atrás e que chega aos meus ouvidos por conta de uma lembrança do meu avô. do contrário, todo e qualquer ato que diga alguma resposta não passará de um ato que encontra margem naquele programete de celular que adivinha as palavras que penso. e pensar que ele tem ares lusos, ares portugueses, me faz ter um riso irônico que aponta diretamente para o modo como o nosso estado é organizado. mas isso é conversa pra outra hora. o que vale dizer agora é que ao abrir a porta da sacada e olhar para a rua, percebi que os cachorrinhos não mais estão ali. permanece, contudo, soprando um vento norte, e aquela caixa de papelão que o cachorrinho carregava na boca ladeira acima está jogada nas pedras. talvez espere que um carro passe e a arraste para outro lugar, pois imagino que até as coisas tenham alguma consciência. e se fosse uma pampa com as portas pintadas de amarelo, a ironia seria tamanha que nem beiraria o real. porém a luz dos postes sempre ditaria a cor das portas, e isso já tiraria qualquer pretensão de realidade daquilo que vejo: não passaria de previsão. e esta é a beira do real: uma previsão cujo valor vem de nós.

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