quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Foram só cortinas e tudo está nublado.

Queria erguer seu arsenal de derrotas como quem sai ileso de uma noite que chega.
Queria conjugar cada verbo e cada canal assim como quem conjuga passados em cima do espelho.
Se as coisas fossem ou não dar em alguma coisa, queria saber apenas da possibilidade, uma vez que o que importava era o fato de respirar e ao mesmo tempo estar em algum lugar.
De resto somente resto, não mais que um apanhado de lixo levado embora tal qual dissera a professora da primeira série:
- Se você não aprender a ler, ficará que nem eles.
- Mas eu aprendi a ler e acho que a senhora não definiu muito bem o que era lixo, professora. Até eu sou professor.
E você pede desculpas por ser rude. Afinal das contas, contar as cristas do sol nunca foi fácil para olhos que não sejam cegos.
Mesmo que fosse um século de padrões liquefeitos, mesmo que fosse uma semana como outra qualquer, importava a maneira como ergueria seu arsenal de derrotas porque sabia que somente após o seu advento poderia sair pra rua.
E este dia chegara.
Mas tem horas que é melhor não dizer nada – e tinha de reconhecer isso.
Tem horas que é melhor esquecer toda mágoa e tudo o que se traz na lembrança e que é realmente lembrança.
Tem horas em que erguer qualquer coisa não adianta, ainda mais quando essa coisa tem a ver com algo do Jeff Buclkey.
Morrer no Mississipi é antiquado e tal antiguidade se torna maior ainda quando você se dá conta de que o Mississipi fica nos Estados Unidos e que na sua cidade existe apenas um rio cujo nome nem vale a pena lembrar.
E há de se convir que se o Mississipi fica nos Estados Unidos e na sua cidade não existe sequer um Tejo pra dizer de algo, o que dirá você de alguma coisa?
As poças da rua que não existem porque não choveu?
O vento que não sopra ou as nuvens que não estão no céu pelo simples fato das cortinas estarem fechadas?
Não, nada disso dirá pois tudo isso é o único fim verdadeiro: o caso que não teve, o balaço que não tomou, a sede que não veio. Certo estava o Pessoa.
O que dirá de algo então é o confronto e mais especificamente o seu confronto. Por mais que olhar demais no espelho faça com que você se difira de você de um modo quase antônimo, é melhor ser diferente de si mesmo do que não saber o que no mundo diz de você.
Mas acaso o mundo diz alguma coisa?
Pedras cantam? Janelas dão tchau? Cores são mais que frutos da luz nas paredes da biblioteca?
Não, nada disso é nada.
Tudo é apenas representação. E essa de empilhar fracassos para encontrar alguma lição, é representação em cima de representação tentando tirar alguma lição daquilo que mal soube aplicar e quiçá viver. Língua dentro de língua, trave dentro de trave, bola dentro de bola: fale, escute, ande e solte aquilo que está em você e mesmo assim nada adiantará porque será puro teatro e clichê.
Ir para a Espanha? Correr touros, pintar Picassos?
Pra quê mais angústia?
Talvez seja melhor empilhar derrotas do que inventar vitórias. Mas entre uma e outra é que se dá a distribuição das medalhas, é que se dá a confecção dos troféus. E é isso que vale mesmo que você não seja pragmático. Mesmo que você não olhe pras mulheres no baile já pensando qual delas é boa de comer, é isso que vale.
Além do mais, que mal há em ser de carne?
Que mal existe em ser quem se é sem qualquer artefato representativo para além da própria mentira da fala?
Mais vale dissecar uma ambição antiga do que construir uma ambição nova, ainda que a própria fala negue essa autópsia e prove essa construção. Não passa no fim de pilhas: pilha de pilhas, entulho de gestos, despedidas de camas, alvoroço de queixos que jamais se verão boca.
Não passa no fim de palavras: adjetivos, substantivos, verbos e ligações quaisquer que no Limbo da página passam a ter algum sentido. Logo, basta o contentamento com o Limbo com L maiúsculo, porque é nele que os significados se projetam assim como projetamos o dia do nosso nascimento no céu pra saber como será o nosso dia de hoje ou de amanhã ou de ontem, igual aquele filme do Vittorio De Sica que você não assistiu.
Mas acaso nascemos? Acaso você nasceu?
Acaso você sabe o que é o neo-realismo italiano?
Continua sendo apenas um texto, uma fala. Continua sendo isso apenas uma interrogação tecida pela voz de Camus e Quintana, porque é certamente pelo tom das palavras e só pelo tom das palavras que Camus começa com a mesma ânsia de quês que Quintana.
Ocorrências. Cápsulas e capuses.
Parecências, pois se isto parece aquilo ou parece com você, isto ou aquilo já não são nada. Que dirá você que tem medo de tirar os chinelos dela de cima da cômoda:
- Vá saber o que ela dirá amanhã.
- E vá saber se não haverá um adeus de au revoir ou um au revoir de adeus.
Melhor a permanência do desconforto que a solidão do colírio: melhor os parêntesis da redução que a simples projeção do intuito.
Se há e parece é porque há e parece, já que lembrar daquela amiga loira que se matou, é só lembrar que você ficou sabendo disso nessa época do ano enquanto ouvia Wish You Were Here e estava em Porto Alegre.
É só lembrar da lembrança mas nunca da pessoa que a lembrança lembra.
É só lembrar de você.
Novamente parecências e ocorrências: cápsulas de capuses que você queria erguer pra sair ileso da noite que chega mas não conseguiu.
Foram só cortinas e tudo está nublado.
(P.S.1: A foto é da Sophia Loren no filme do Vittore De Sica chamado Ontem, Hoje e Amanhã. A amiga que se matou é a Keyla e o sobrenome dela é desconhecido. O Google não disse nada e é hora de dormir.)
(P.S.2: Razão: o Jeff Buckley vê o sol entrando na água e desaparecendo pouco a pouco.)

Nenhum comentário: