sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Era impossível esquecer o cheiro da terra.

Era impossível esquecer o cheiro da terra.

Quando chovia, aquele cheiro subia até suas narinas como se fosse uma respiração das coisas que da terra cresciam, fossem elas vivas ou não.

E era daquilo que lembrava enquanto olhava a noite tranqüila que passava diante da sacada.

Recém havia chovido e algumas gotas se desgrudavam das paredes. A luz dos postes da rua transformava cada uma em uma pequena lâmpada incapaz de ser para além do mero reflexo que trazia em si.

A fragilidade das coisas se desprendia da própria essência que nascia das coisas. Fossem elas dependentes ou não, o fato de recém haver chovido e estarem aquelas gotas a se desprender das paredes, fazia com que tudo se tornasse aquoso como uma nuvem prestes a desabar.

O silêncio também era silêncio em demasia e até era estranho perceber o quanto ele era dominante, pois apesar de ser véspera de feriado, não se ouviam carros rasgando pneus na avenida acima e nem músicas repetitivas a ecoar pelas ruas em frente ao prédio no qual morava. Havia apenas o som do ventilador girando de um lado para o outro na biblioteca e o som das gotas se desprendendo das paredes da sacada em frente da qual aquela madrugada transcorria.

Se parasse um pouco mais, talvez pudesse ouvir a sua respiração. Mas entre ouvir a sua respiração e ouvir as batidas do seu coração, tinha mais tentação pela segunda alternativa, mesmo sabendo que essa era tão impossível quando olhar para trás e ver a cena que havia visto alguns segundos antes como em um instantâneo imóvel no tempo e no espaço.

Por isso decidiu por não tomar decisão alguma e apenas lembrar o cheiro de uma outra terra que lhe chegava pelo cheiro daquela terra, ainda que a primeira fosse algo mais que uma lembrança ou uma fantasia.

Mas fosse lembrança ou fantasia, o fato é que a realidade daquele agora lhe remetia a realidade de um outro agora que se desenhava aos poucos em sua mente. A silhueta da casa de madeira se apresentava emoldurada pelas árvores que haviam no seu pátio dianteiro, como que em uma tensão prenhe de possibilidades por ter sido erguida pelas mãos de um homem.

Esse homem, não por acaso, era um antepassado seu – antepassado esse que vivera há não mais que três gerações mas que fora capaz de erguer uma casa que mesmo na realidade que ele vivia agora, setenta anos depois, ainda se sustentava, o que talvez denotasse algum senso do imponderável ou do eterno que passara pelas mãos daquele seu antepassado.

Ele, contudo, sentindo o cheiro da terra de um antes através do cheiro da terra de um agora, sabia que nada daquilo poderia fazer. Sabia que morava em um apartamento alugado e que no máximo contrataria algum engenheiro, algum arquiteto e um grupo de pedreiros, para erguer uma casa qualquer dali alguns anos. Porém fazer com que uma casa nascesse do seu próprio talhe na madeira bruta, era algo do que ele se sabia incapaz, muito embora tivesse consciência de que tudo era capaz de aprender.

Mas se tudo era capaz de aprender, este tudo se direcionava a alguns setores da sua vida e de modo algum a todos. Do contrário, nada saberia e seria como aqueles sujeito do conto do Borges que pelo fato de muito lembrar acaba esquecendo daquilo que vive. Pensar na limitação das suas aspirações e mesmo das suas capacidades lhe trazia algum melancólico conforto, apesar desse conforto, no fim das contas, ser mais resignação que conforto.

E havia motivo para resignação? Por certo que havia.

Estar às quatro da manhã observando a chuva a se desprender em gotas das paredes da sacada era motivo bastante para várias resignações. A apatia da sua cabeça escorada na janela também era de algum modo uma resignação, pois entre cruzar os braços e encarar com certa altivez a noite que se diluía para dar espaço para a manhã, preferia escorar sua cabeça na janela e apenas sentir com despreocupação mas nostalgia aquele cheiro que lhe chegava da terra.

E mesmo que soubesse que a casa de madeira da qual lembrava era mais fantasia que lembrança, pois todos acabam inventando uma infância para si com a finalidade de encontrar uma justificativa para o seu presente, era bom lembrar que aquelas árvores e mesmo aquela casa ainda existiam para ter a certeza de que um dia voltaria lá.

Naquele momento, contudo, a viagem se dava restrita às fronteiras da memória e da imaginação, e quanto mais sentia o cheiro de terra lhe inundar mais lembrava da própria natureza daquela casa da sua infância. Se passasse estação por estação, inverno por outono e verão por primavera, poderia encontrar também uma coloração diferenciada da madeira em cada uma delas, desvelando-se a casa adaptável ao mundo assim como o são as espécies com o decorrer dos milênios.

E sabia disso quando via o seu antepassado de setenta anos atrás apagar uma vela grossa no parapeito das gradezinhas da varanda para logo fechar a porta e dormir. No outro dia levantaria um pouco antes do sol nascer e repetiria os atos que havia circunscrito no dia anterior, ainda que inexistisse qualquer motivo que desse ensejo a uma lógica ou uma linha para aquele cenário pelo qual ele vivia.

Este, ao contrário, era moldado pela casa de madeira, pelas árvores que haviam no pátio dianteiro da casa de madeira e pelas plantações de fumo que há uns duzentos metros dali começavam para se estender por cinco acres de terra. O fumo seria trabalhado na época certa e enviado para as fábricas distantes centenas de quilômetros dali também na época certa, de maneira que quando chegasse aos pulmões dos consumidores estivesse pleno de prazer e sabor, contrariamente ao que significava enquanto existia apenas enquanto planta daqueles cinco acres de chão.

Quem sabe por conta disso andou até a mesa de centro, apanhou um cigarro e acendeu o mesmo com languidez, deixando que a fumaça lhe enchesse idêntica às lembranças e fantasias que lhe preenchiam justamente no momento em que recomeçara levemente a chover.

O ventilador ainda girava solitário na biblioteca quando o telefone tocou. Ao olhar no visor do celular o número que lhe chamava, não identificou o mesmo pelo fato de aparecer somente a inscrição “número confidencial”. Por conta dessa confidencialidade certamente nascida da intenção de algum amigo notívago, não atendeu a chamada e retornou à janela da sacada, que agora era acariciada por um vento fresco e líquido na mansidão da madrugada.

Era possível que o início do ano fosse o fator deflagrador daquele vazio. Até mesmo sua memória recente se mostrava vazia, desenhando a cor de três dias atrás com uma opacidade que a lembrança era incapaz de penetrar. Da casa do seu antepassado, contudo, podia lembrar e relembrar continuamente, fazendo com que a imagem da mesma se desvelasse em fluxos e refluxos de inconsciência que deslizavam pela sua mente.

Fosse isso motivo de estardalhaço emocional, já teria se jogado do terceiro andar. Afinal, poderia bem representar uma tragédia o fato de não dar valor memorial àquilo que vivera há pouco mais de setenta e duas horas. Mas se aquilo que vivera fosse importante, certamente que se imprimiria com maior força em sua mente, de sorte que a casa de setenta anos atrás perseguida pelas plantações de fumo tinha maior significado que seu recente passado.

O que fizera neste recente passado? Lembrava que reclamara muito e que brigara muito, mas da natureza das reclamações e das brigas de forma alguma lembrava. Estas permaneciam apenas como conceitos em sua cabeça. Estes conceitos, ao invés de serem preenchidos por aspirações de futuro, eram conectados àquilo que ele era por meio de ilusões de passado, apesar de saber que era plausível acreditar que houvesse realmente existido um antepassado seu que plantasse fumo em algum interior perto dali.

Ele, contudo, lembrando de conceitos idealizava uma infância a partir da própria noção que tinha de infância, de modo que tudo aquilo que lhe acorria àquela hora da madrugada era fruto de uma divagação abstrata concretizada com imagens pouco confiáveis. Essa confiabilidade talvez existisse se estivesse lembrando de algo que realmente houvesse ocorrido. Mas qual seria a verdade disso? Certamente não mudaria muita coisa e a verdade residiria tão-somente no plano do passado para se fazer presente no seu agora por conta do cheiro da terra.
Tudo não passava de narrativa.

E quando chovia, aquele cheiro subia até suas narinas como se fosse uma respiração das coisas que da terra cresciam, fossem elas vivas ou não.

Mas era apenas abstração e devaneio limitado a alguns símbolos ocos. Sabendo disso foi dormir tranqüilo pelas invenções que a madrugada lhe injetara e que os sonhos por certo expandiriam no conforto e na resignação das suas linhas imaginativas pelo cansaço.

“Cansaço”, disse ao espelho quando foi lavar o rosto, “tudo se resume a um intenso cansaço de tudo com tudo”.

Quando acordou o dia estava branco porque ainda iria chover mais. Ao menos foi essa a conclusão a qual chegou. Se ela era fundada em algum passado, poderia ser mesmo fidedigna enquanto previsão. Mas o fato é que ela era restrita ao seu presente, ao seu ar de sono pela manhã, o que lhe perpassava o senso com uma mera intenção de futuro que poderia ou não se realizar.

“O inverno tem que chegar logo”, dissera-lhe uma pessoa no dia anterior.

Isso bastava para continuar a viver e sentir que a hora posterior poderia ser melhor que a anterior e assim indefinidamente.

(P.S.1: Quanto à fotografia, é uma réplica da casa onde Henry David Thoreau viveu entre 1845 e 1847 às margens do Lago Walden. Já a estátua, é uma réplica do próprio Henry David Thoreau. Ao falar "réplica" me referindo ao Thoreau, porém, me sinto incomodado. Acho que é natural, pois entre representar a si próprio e ser representado pelos outros, por certo que é mais segura a primeira observação. E creio que é por conta dela que venho escrevendo tanto nos últimos dias.)

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