sábado, 6 de junho de 2009

O Silêncio das Janelas do Povoado.*

Não há o que prever da sanha das nossas armas.

Nosso sangue é o pedregulho que atiça cada projétil.

Tudo quanto fizermos, tudo quanto quisermos, será mera decigrama daquilo que de modo algum somos.

Então seria o caso de idolatrarmos a negação?

Então seria o caso de renegarmos tudo quanto foi dito ou escrito até hoje?

Não, é claro que não, pois se assim fosse nos bastaria esquecer – e esquecer é muito fácil.

Ao contrário disso e mesmo que as coisas sejam assim, é preciso que chafurdemos no lodo daquilo tudo que fomos e fizemos.

É preciso que a lembrança e mais ainda a expectativa do fim, seja nossa missão de fé e não de temor, como disse Glauber.

Apenas do reconhecimento da presença ausente da morte em cada pedaço de vida, é que poderemos ir adiante sem temer o que nos acontecerá, sem olhar para trás apenas com olhos misericordiosos, mas sim com olhos que saibam da pólvora que dá cheiro e cor às nossas veias.

Somos da Latino América, somos de uma país que é tropical e subtropical e que não pode ser de outra maneira.

Se há séculos trazemos conosco a capa de almoxarifado do mundo, se há séculos, como tanto falou Galeano, somos a região das veias abertas, isso tudo não deve ser simplesmente jogado ao enfado de não suportarmos a realidade.

Talvez devêssemos aprender com os portugueses ou com as milongas do frio que por fina ironia trazem um nome africano.

Talvez apenas oitavas e sétimas aumentadas é que nos digam o que somos para além de qualquer palavra ou frase.

Tudo quanto fizemos, tudo quanto queremos, de maneira alguma é redutível ao verbo, o qual consiste apenas em uma maneira escassa de compreender o real.

Por conta disso é que a poesia/sonho é a lâmina pela qual todos os dias caminhamos, sendo que se nos distanciarmos de tal aresta, o que nos invadirá será tão-somente o medo e o nada.

Logo, não há política sem delírio, não há ação sem negação da ação, não há palavra sem silêncio, porque é justamente do contraste que vivemos aqui nesta parte do mundo.

Se anteontem um casal de mendigos morreu de frio na rua próximo alguns metros de uma residência quente e confortável, o que isso quer dizer?

Se janto em um restaurante de vidros para a calçada e vejo um menino pobre como olhos feitos vazio, o que isso me dirá?

Irei realmente me apiedar dessas pessoas ou construirei essas frases que poucos irão ler, como se meu manifesto não passasse de um testamento sem qualquer legado?

Não: isso não basta.

Não que eu queira ressuscitar um senso marxista da história, não que eu queira que façamos passeatas, que quebremos prédios públicos, que matemos aqueles que de uma forma ou de outra nos dominam, porque isso também não basta.

Antes disso, quero que cada consciência, naquele ambiente insubornável da solidão, tome conta daquilo que lhe circunda tomando conta do afeto que deveria unir todas as pessoas a partir de um mínimo ético que possibilite qualquer diálogo.

Quero, enfim, que a ágora grega seja revivida nos tempos atuais, conforme propôs Bauman: que não somente aqueles que são os representantes do povo tenham voz, mas que o povo, este povo aqui deste lado do mundo, também tenha voz.

Mas como terá voz esse povo se esse mesmo povo não tem as condições mínimas para articular a própria voz quando morre de fome e frio pelas ruas do país?

Mas como terá voz esse povo se as escolas públicas são mais fábricas de marginais do que qualquer outra coisa, nutridas por famílias desmontadas à mercê do vício por serem lixo humano na maré do capital?

A mudança começa aqui e não há possibilidade de qualquer mutação no sentido vertical.

Muito diferente disso, toda e qualquer mudança deve partir do cotidiano, deve partir das relações entre as pessoas no agora, pois antônimos a isso apenas aceitaremos crenças absolutas e nos tornaremos óbvios intolerantes, isto para lembrar do Boff.

E ainda que não haja como prever a sanha das nossas armas e a métrica nada sutil que existe entre as balas e o sangue, nessa parte do globo o único pensar possível, no rumo que Dussel traçou, é um pensar que parte da ética enquanto condição e possibilidade do pensar.

Apartados disso, repetiremos um mantra que há séculos nos foi costurado na boca e nada construíremos a não ser réplicas em cima daquilo que há muito já foi tido como certo.

Que o novo é difícil, claro que é, mas é do anseio que se constrói a possibilidade e é da ação que se constrói a condição.

Sem esses pensares, as janelas do povoado permanecerão caladas, encaixotadas pela mão invisível daquilo que dizem ser o real.

E ainda assim sorridentes.
*O título deste texto remete para música de mesmo nome, cuja letra é do Gujo Teixeira, musicada e interpretada pelo Luiz Marenco. Aqueles que são do Sul do Brasil (possivelmente) conhecem a mesma. Entretanto, caso não conheçam ou ainda para aqueles que não são dessas plagas conheçam, segue o link de uma versão da canção que encontrei pela internet, a qual, embora não tenha ótima qualidade, dá conta do que quero dizer: http://www.youtube.com/watch?v=_Uny7RQwVF0.

3 comentários:

Biba disse...

Gosto de vir aqui, de ler seus escritos, cheios de citações e alguma dureza. Faz a gente pensar. Faz a gente querer pensar mais sobre todas as coisas.

Beijo
Carpe Diem!!

Canteiro Pessoal disse...

Eduardo, o que falar sobre todos os seus escritos ? Letras que essa mera mortal [sua leitora aqui] não caberiam para um descrever em grande estilo, que seria de excelente gabarito. Tenho lido cada um, pena é o tempo que me é ofertado para deixar uma marca por aqui no dizer-te que estou lendo-te, pois seus escritos são pra mim para obrigatória. E confesso que a cada leitura e releitura sou remetida num metamorfar, faz-me pensar em coisas que até então não pensei, e isso, nossa, é excelente, pois solidifica no meu âmago o tal interacionalismo.
Percebo peculiaridades inimagináveis em cada letra que exprimes neste espaço, uma mente aberta e viva para muitos assuntos. Lábios letrais que parecem desenhar a forma de um todo belo, e este ao mesmo tempo não é o fim de todas as formas e linhas, apenas um adoçicar no leitor. Um componente de forte caráter entre risos cativantes e assim, formando todo conjunto de palavras de som arrepiante à porta para um coração no atingir. E de tudo que guarda, seu silêncio é quebrado brilhantemente neste jogo letral. Teu ego simples e ao mesmo refinado, conduz a uma perca saudável em meu íntimo; permitindo-me a ser levada para o sonda-me, onde sou uma obra inacabada.
Sinto-me em diferente época do recomeçar. Tempo necessário para compreender muitas coisas, inclusive a distância de coisitas que ainda não se aproximam, mas todas as manhãs, passeio em 'mente' na praia. Olhando o mar com a mesma misteriosa curiosidade e admiração. E no real, na pausa daquele café com leite e quentinho que tanto amo. Pausa simples, mas que entrega a escrita forte em amor. Nisto, sento em frente à folha de papel em branco e num impulso inexplicável solto sentimentos presos e as palavras começam a brotar um novo capítulo facilmente. Facilmente que denoto bailar no simples. Quantas vezes nos perdemos o simples não é !?
Agradeço por seu talento e por voejar por aqui e sulgar néctares de grande reflexão, intimando-me o próximo [eu] ir além.

[...]

Beijos querido e linda semana.

Priscila Cáliga

pensar disse...

Edu,

Que da tua mao vazam palavras pela falta de esquecimento.Gritam por atencao aos gestos, a vida.
Clama em tua voz a vida: com a dureza da falta de ignorancia, o saber ainda que a melhor opcao eh privilegio dos coragosos.
Facil nao eh esquecer, facil eh reprimir.
Bjs