sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Inconsciente da Cidade.

“Agricultor aposentado reside há uma década no seu Corcel 68”. Foi essa a manchete da contracapa da Tribuna Regional do dia 09 de junho de 2009. Já em outro jornal da cidade, o Jornal das Missões do dia 04 de junho de 2009, vejo que “a justiça autoriza o DEMAN a efetuar a desapropriação e a limpeza de residência”, tendo em vista que o morador acumulava lixo em todas as dependências da sua casa com o intuito de reciclar o mesmo, o que não fazia. Além disso, há alguns anos, lembro de ter lido a notícia de que uma senhora que residia próximo ao Colégio Santo Ângelo morreu de frio em uma dessas noites de inverno, sendo que quando as autoridades por lá entraram, descobriram que ela vivia com mais de vinte cães em meio a restos de comida e lixo. E para completar o quadro, semana passada a Zona Norte da cidade perdeu um dos seus mais famosos moradores de rua: o Perereca, o qual, mesmo tendo sido recolhido a um albergue municipal por assistentes sociais, veio também a falecer por conta do frio.

Diante desses fatos, não saberia o que pensar. Mas como muito que digo tem alicerce em muito que li, posso partir de uma constatação da filósofa Marcia Tiburi ao dizer que os moradores de rua são o inconsciente da cidade. Neste sentido, o que representam essas pessoas para a compreensão da realidade social que existe em Santo Ângelo, considerando que muitos de nós, seja simplesmente por virar os olhos, seja simplesmente por ter repúdio diante desses fatos, nada quer perceber? Talvez algo esteja acontecendo bem diante do nosso nariz.

Sei também que quando existe algum evento em frente à Catedral Angelopolitana, alguns agentes municipais passam por lá para recolher os moradores de rua. Sei ainda que algumas autoridades municipais dizem que não existe morador de rua em Santo Ângelo que não tenha auxílio dos meios governamentais que têm a função de lhes prestar atendimento. Contudo, partindo do fato de que estou falando de lixo real, de lixo humano, da falta de atenção às pessoas que, certamente, têm problemas mentais e dos perambulantes urbanos que vagam sem saber mais nem porquê, quem sabe fosse o momento de compreender nossa realidade urbana a partir dessas pessoas, as quais são aquelas que não conseguiram se agregar em algumas gavetas do nosso sistema social e então se tornaram o que são.

Claro que alguns dirão que essas pessoas não querem auxílio, que a rua é o seu habitat natural, sendo que, portanto, esse modo de vida consiste em uma opção que essas pessoas fizeram. Porém, entre a opção e a imposição existe o fato de que deve haver uma oportunidade para que as pessoas possam ter uma opção, mas que não existe oportunidade alguma quando um modo de vida provém de uma imposição. Logo, ainda que digamos que muitos desses moradores de rua ou desses doentes mentais optam por viver assim, temos de admitir a realidade de que assim eles vivem por conta de uma estrutura social que não lhes abriga.

Consequentemente, dizer que vivem desta forma porque querem viver desta forma é uma mentira tremenda ou quem sabe uma falta de consideração tremenda. Ontem mesmo, enquanto voltava do IESA, instituição na qual leciono, um sujeito cruzou por mim, vindo vai saber de onde, pedindo informação de onde era a Rodoviária, já que um patife qualquer disse a ele que a Rodoviária ficava para os lados do Bairro Harmonia. Aí me pergunto: por que fazer isso com um sujeito que, dadas as suas poucas vestes diante da noite, não tinha a menor condição de discernimento pelas ruas da cidade? Isso simplesmente espelha a falta de consideração que a maioria de nós tem com essas realidades, pois acreditamos que isso é coisa que aqui não ocorre.

Mas se existe esse pensamento, como reagir diante do fato de que o crack, essa droga que vicia crianças de menos de dez anos de idade pelos subúrbios, está disseminada por toda cidade? E como reagir também diante do fato de que muitos dos nossos adolescentes da classe média estão enfurnados no vício apenas para amenizar a futilidade da sua existência?

Por isso creio que se a ética é o pressuposto do Estado Democrático de Direito, é a moral que dá base para a ética. Desta maneira, indignação de botequim é mera trela de quem quer mais beber que falar. E é por causa disso que enquanto não mudarmos nossos pensamentos em relação aos nossos semelhantes, jamais estaremos nem perto de uma sociedade minimamente justa, pois continuarão a morrer de frio e lixo por aí, seja dentro de um Corcel 68 ou pelas ruas de junho. Afinal, os moradores de rua são o inconsciente da cidade – e de quebra, um sintoma da nossa loucura santo-angelense.

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