segunda-feira, 15 de junho de 2009

Estatura Mediana.

Estatura mediana. Apartamento abarrotado. Pêlos nas pernas e na face. Revistas e livros pelo chão. Músculos por exercitar e ossos bem postados. Janelas fechadas e uma claridade miúda que entra de vez em quando e que vêm dos faróis dos carros da rua. Olhos verde-musgo e pele algo branca algo incolor. Paredes vazadas pela umidade que as ramagens do mofo pincelam. Pés nem pequenos nem grandes e joanetes. Poucas portas que rangem e que não fecham sem um empurrão de ombros. Cabelos gastos pelo descuido que empacota a sala e a cozinha. Goteiras no teto do corredor e uma bacia de alumínio amassada com um toco de cigarro dentro. Quadros pequenos pendurados tortos ao redor de um espelho retangular do quarto com cama de casal. Colchão sem lençol e três travesseiros sem fronhas. Sobrancelha esquerda com dermatite que junho duplica. Copo de extrato de tomate com borra de vinho grudada no fundo em cima do bidê da luminária. Sorriso de cinismo contido quando alguém duvida da sua voz. Carpete com cheiro de velho e de usado e de coisa mal seca. Dedos amarelados e mãos trêmulas distantes da gengiva que arde com bicarbonato de sódio. Guarda-roupas com roupas que estão e não estão na moda. Camiseta preta de banda manchada de esperma há três meses na gaveta mais baixa. Bibelôs na mesa do escritório e na estante do escritório e no frigobar do escritório e nas pilhas de papel impresso que o parquê do escritório sustenta. Porta-retrato com foto de mulher vestindo uma camisa branca e com dentes brancos à mostra. Telefone perto de um globo terrestre de metal e de uma caderneta com capa de couro com manchas de gordura e dedos. Caneta antiga com tinta seca que fora do avô em um cinzeiro âmbar. Cadeira que é verde-musgo que nem seus olhos e que é estofada e confortável e boa de sentar. Panelas sujas a cinco metros de distância. Geladeira velha vazia e uma garrafa de vodka pela metade e um pote de margarina rançosa em cima da mesa azul-celeste que era da casa da mãe. Fogão com quatro bocas com crosta de óleo de fritura. Uma caixa de fósforos perto da torneira que goteja e goteja e goteja. Fluorescente com defeito que forma sombras da chaleira inox no tanque cimentado na área de serviço. Panos sujos pendurados com o friso de manchas de vômito no varal há três dias. Banheiro que não dá descarga e que seria da empregada e que está com a porta escancarada com uma privada onde está sentado. Azulejos de um bege que se aproxima do amarelo e um jornal da semana passada ao lado do papel higiênico e da lixeira vermelha com adesivo limão. Sala e corredor e quarto e escritório e cozinha e área de serviço e banheiro que não dá descarga e que não é o único mas que a pressa requisitou. Batem na porta e é só correspondência. Sua e tem dor de cabeça e talvez precise de uma aspirina e de um chá de macela. É noite ou quase-noite e só agora percebeu que há trinta e duas horas não dorme e que suas pálpebras pesam. Não tem pretensão de atender a porta. Quem bate insiste. Pega o papel higiênico e se limpa e enche um balde na torneira da pia e joga na privada. Levanta as calças e aperta o cinto e vai até a porta com os pés descalços e abre a porta e não há mais ninguém ali. Na soleira há um envelope cor-de-rosa que pega e rasga e desdobra e lê. São letras e sílabas e sinais e palavras e frases num bloco-parágrafo de estatura mediana. E sete meses atrás o apartamento está vazio e duas semanas antes desses sete meses ali mora alguém que raspa os pêlos das pernas e não tem pêlos na face. Esse alguém não esparrama revistas e livros pelo chão e seus músculos não estão por exercitar. Ossos bem postados têm esse alguém que não deixa as janelas fechadas para uma claridade miúda vinda dos faróis dos carros da rua entrar de vez em quando. Não tem pele algo branca algo incolor e nem olheiras roxas de exaustão. Não tem olhos verde-musgo e não se deixa levar pelas paredes vazadas de umidade em ramagens de mofo que o ar que circula não deixa criar. Pés pequenos e sem joanetes ao invés de um meio termo sem lá nem cá. Não importa se as portas rangem e precisam de um empurrão de ombros para fechar porque as portas não precisam fechar por completo. Sala e cozinha estão embrulhadas com cuidado e perfume e goteiras no teto do corredor não existem e nem bacia de alumínio amassada em qualquer peça do apartamento. Colchão sem lençol e três travesseiros sem fronha e quadros pequenos pendurados tortos ao redor de um espelho retangular do quarto com cama de casal nem pensar. Há um espelho oval e uma cama bem arrumada com um edredon rosa-claro. Sobrancelha esquerda delineada e junho como um mês de trabalho duplicado e não de dermatite duplicada. Copo de extrato de tomate só cheio dentro da geladeira e uma garrafa de vinho na gaveta mais baixa do guarda-roupas que tem roupas que estão e não estão na moda e que são de tons escuros. Voz quer como todo mundo mas o cinismo só vêm quando atacam seu orgulho. Dedos finos e mãos suaves e distantes dos lábios vermelhos e espessos. Carpete com cheiro de velho e de usado e de coisa mal seca não pode porque tem renite. Não gosta de camisetas pretas de banda e nem de naftalina mas gosto de esperma já sentiu por umas cinco ou seis vezes e nem sabe o porque da curiosidade. No lugar chamado de escritório existem paredes vazias com uma tela em branco em um cavalete perto da janela. A cinco metros de distância há um fogão com seis bocas e uma mesa verniz de madeira que foi comprada na loja da esquina. Uma taça lascada na borda direita deixa a torneira gotejar e gotejar e gotejar. Fluorescente com defeito não há mas as sombras de uma chaleira esmaltada estão no tanque cimentado da área de serviço. Peduradas no varal duas toalhas de banho brancas e felpudas e um pouco gastas com uma mocinha ingênua costurada em cetim. Banheiro que não daria descarga e que seria da empregada já não dá descarga e já é da empregada. Ninguém na privada olhando os azulejos de um bege que se aproxima do amarelo está perto de um jornal de anteontem mas da porta da frente se escuta um barulho de fechadura que abre. Sala e corredor e quarto e lugar chamado de escritório e cozinha e área de serviço e porta que destranca com a pressa que a fechadura não têm. Entra e tira o casaco e joga em cima do sofá a sacola de supermercado. Rolam laranjas de encontro ao linho que esconde a paisagem que a lâmpada da luminária revela. Ouve um trovão e sente dor no pescoço enosado. Pensa que deveria ligar para alguém. Vai até o telefone ao lado do balcão com tachos de cobre e nesse momento o telefone toca. Silêncio. Riso. Sim, diz, mas com A no final. E o tempo passa e sete meses e duas semanas depois lê uma carta e logo se vê no vidro temperado da janela. Estatura mediana.

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