sexta-feira, 24 de julho de 2009

Postas sobre Anil Duran.

Escrever é cada vez mais desaprender. Andar é cada vez mais tropeçar. Não existe linha reta para quem se arrisca. Se existe um traço, esse traço é apenas uma virtualidade geométrica. Retidão é moral escassa. É disso que se destila literatura.

Mas pensar sobre isso ao fazer literatura, faz com que a própria literatura seja obstruída na medida em que a palavra cega o objeto. Racionalizar o ato já é anular o ato. Por esse fato é que a literatura é só. O escritor não tem amigos para sua arte. Conversa de maneira incessante com todas as vozes que sussurram nos seus ouvidos. Alguém pode chamar isso de psicografia. Mas responder a humanidade da escrita com uma metafísica dos medos é fazer com que o próprio projeto humano morra. Por essa razão não é justo culpar o invisível pelas criações que fazem com que o mundo seja mundo e com que nós sejamos nós. Seria no mínimo uma tremenda injustiça com aqueles que estão eterna mas finitamente à deriva e só por conta disso existem.

E pensar nesse existir implica em imaginar paisagens. Essas paisagens podem ser das cores que você quiser, mas em sua maioria serão amarelo ocre porque tudo seca tudo: a flor seca a árvore, a árvore seca a terra, a terra é secada pelo homem que despedaça a árvore e coloca a flor em um vaso pra morrer em uma semana. Tudo assim unitário. Tudo assim singular. Fazer literatura é brincar de hiena: quanto mais carniça melhor. Perguntar da razão dessa tonalidade amarela é demais. Convém apenas aceitar as palavras como elas se apresentam aos sentidos. Pretender mais é pensar na estrutura das frases e assim mostrar o que não deve ser demonstrado. Se fosse, a literatura inexistiria.

Mas escrever sobre isso é convencer você de que o que você faz é literatura. A teoria é que dá a razão da prática. Funciona como uma mentira domingo pela manhã. A voz tentará dissuadir você da sua própria intenção. Você ficará nervoso, tentará abandonar seu cobertor factual. Mas no final ensaiará uma cara de coitado e falará aquilo que inventou por sobre aquilo que fez. O lábio tremerá e as palavras sairão rápidas mas nem por isso isentas de convencimento. É necessário, você admite para si, ainda que saiba que isso também é mentira, garantir o carinho antes de preservar a franqueza.

Um dia você pensará: como hierarquizar o que é humano de você para você e que apenas virtualmente irá em direção aos outros? Ouvir que todos querem ser ouvidos é uma coisa. Ser realmente ouvido é outra. O espaço que existe entre aquele que fala e aquele que ouve é que constrói o sentido. Esse espaço, por sua vez, só existe enquanto obscuridade. Sua essência está distante da sua forma. Talvez nem carregue uma essência. Dizer que o silêncio compõe esse espaço não é um erro. Seria um erro se houvesse uma explicação do silêncio, uma violência no silêncio. Toda palavra é um estupro porque nasce da ausência de consentimento. Aparece, penetra e morre. Permanece o silêncio e seu corpo.

Vale muito contar algo, portanto. Vale também descrever algo, ainda que tanto contar quanto descrever sejam palavras perfeitamente equiparadas quando se fala da escrita. Do contrário, não existiria a necessidade da palavra no papel para organizar aquilo que somos: bastaria a fala. E acaso não é ela mais justa com a nossa própria condição, esvaecendo logo depois que se faz? O que ficará dela será só lembrança. Dessa lembrança é que faremos o que somos, pois aquele momento se fará representação em seguida – como um show onde o que mais se vê são câmeras apontadas para o palco do que a vivência do espetáculo, já que viver o espetáculo implica em conviver com o outro.

Conclusão? A alteridade atrapalha. Imagine então para quem escreve. Aquele que escreve não pode ser interrompido. Os fluxos de raiva serão inevitáveis e redundarão em socos e divórcios. No primeiro caso há a polícia, no segundo caso há a Justiça. Na parcela que resta entre a prevenção e a correção, acontece o escrever: pra quê importunar quem estava quieto? Não interessa se são seis ou sete da manhã: importa é que as palavras estão se fazendo vida na proporção da organização que deflagram naquele que escreve. Esse terá mais dívidas com as palavras do que com seu próprio nome. Afinal, listas sempre são queimadas no final, isso quando não são enviadas para um museu e esquecidas nesse museu, tornando-se pouco a pouco taxidermias de si mesmas.

O cheiro delas é que persistirá por muito tempo se isso ocorrer. Cheiro amarelo, amarelo ocre. Antes de ser enterrado, talvez você invoque algumas para sua lápide e chame isso de epitáfio. Caso isso ocorra, poderá vislumbrar a orelha da sua morada final e terá de se contentar com essa visão. Após ela ninguém lhe escutará: tudo quanto você fez restará opaco, morno, não queimando e muito menos cozinhando. Alguém descobrir seus feitos vinte anos depois é possível. Mas a esperança não é válida para quem fala. Se fosse, não falaria, porque a fala expressa uma ausência e nada mais.

A folha ou a tela são brancas. As letras quase sempre são pretas. Nessa condição é que caminhando você perceberá que se o branco é a união de todas as cores, o preto é a ausência de todas as cores. O preto é opacidade, é condição. Desse horóscopo é que surgirá o seu sentido: interpretação da completude, grito da ignorância, desfazer plural e impossível. Dele você poderá teorizar. Isso trará calma. Só com o tempo é que haverão mais e mais perguntas no patamar da redução das respostas. Essas perguntas serão bolhas: sabão e bolas subindo pelo ar em direção à lua. Confundir a transparência com a escuridão será sintoma da sua condição. A geometria desaparecerá. Caixas deixarão de ser caixas e você duvidará que em algum momento caixas existiram. Permanecerá a proeza das equações, dos números e letras que sua vontade moldou.

Quando essa vontade for moldada, começarão a surgir importâncias. Essas importâncias não poderão ser carregadas em uma sacola. Existirão no máximo enquanto ilustração da sacola, enquanto designação de um suporte nato. Mais que isso será pura paranóia e motivo para choques. Se jogarem você em uma banheira cheia de gelo, não há o que estranhar. Você pediu pra levar. Continuando no limite da resistência, você iria muitos anos ainda. Mas como você resolveu baixar a guarda, os arqueiros invadirão seus terraços e levarão você embora. Você será colocado em uma gaiola e levado por uma trupe e por um exército.

No caminho você tentará dissuadir alguém. Mas perceberá que seus algozes são desprovidos de ouvidos. Seus gritos serão completamente inúteis e você se dará conta de que o carinho se confunde com a vergonha. A vergonha nasce da afronta moral. O carinho nasce do fato de você não suportar essa afronta. Daí o significado do castigo: a gaiola e depois a banheira de gelo. Você rezará um Glória ao Pai se houver nevado nesse dia, pois nu na gaiola você morreria mais rápido. Mas parando de cidade em cidade para que o exército estupre as mulheres e para que a trupe faça suas apresentações, você perceberá que a neve não chegará.

Tentando situar no tempo o seu desejo, construirá um alicerce no mês de julho. Pelos ingredientes com os quais o vento toca sua pele, você se dará conta de que já terão passado no mínimo dois meses de rotina e nada de neve. Implorar ou rezar seriam opções. Mas implorar para o cavaleiro que encabeça a fila? Rezar para o brasão que o cavaleiro traz no escudo? Não que eu queira assustar, mas isso será o mesmo que sobreviver ao oceano sem água doce. Nesse tempo você beberá sua urina. Chegará um ponto em que comerá suas fezes. As fezes e a urina, contudo, tornarão escassa sua resistência. Chegará então o fim sem lápide, mera ocorrência natural de um fato banal: seu fim.

Como resistir? Postergando páginas para gentes do futuro? No metrô lerão sua obra. No coito lerão sua obra. Lerão sua obra principalmente na presença dos outros. Você será a razão da misantropia do século XXI. Você acompanhará todos para todo canto. Bolsas e pastas serão seu esconderijo. Querendo sair, não haverá qualquer resistência. Você sairá e pronto. Do contrário seus pêlos crescerão mais rápido, suas orelhas ficarão pontudas e retangulares ao passo que você nada poderá fazer. A aniquilação total deixaria no mundo apenas a sua palavra, sendo ela benzida ou não, tendo você mastigado a óstia ou não.

Os filhos talvez continuem seu legado. Mas um dia todos cansam de chorar. Sua mulher arranjará outro. Seu cansaço apaziguado irá então aproximar outros: filhos e psicólogas, viúvas e pretendentes. Tendo seu filho um ou dois amigos, bastará para as vodkas que ele ama. Entornará copo após copo no prazer das desproposições. Caindo na Igreja, na praça, tudo será como planejado. Será uma trama sem maiores enleios. Tombo após tombo, tropeço após tropeço, chegará talvez no ponto daquilo que fazia para então deixar de fazer e começar a falar. A geração dessa fala será o passo seguinte. Uma geração sem útero, sexo ou carinho. Uma geração nervosa. Mas nem por isso menos uma geração.

Aparentada com todas as gerações precedentes, haverá a tentativa de definição. Haverá o ímpeto do conceito. Precisões e necessidades inúteis estarão na sua fala. Você teorizará pela voz de outro aquilo que disse ontem. E desaprenderá com todos os seus tropeços: o
ciclo se fechará.

6 comentários:

pensar disse...

Edu,
Tu es fantastico.Que texto!Pq nao escreve um livro?
Tua forca indomavel parece que tem uma via unica: palavras.
Um grande beijo Mari

Priscylla de Cassia disse...

"O espaço que existe entre aquele que fala e aquele que ouve é que constrói o sentido. "

carambola, tú és um filósofo legítimo! me faltam elogios...

abraço

Anônimo disse...

Fantástico!

Marjorie disse...

Você fala da cor luz como se visse a variação no papel. Isso é bonito e caracteriza o roubo da palavra, não o estupro. Pq a gente só rouba aquilo que nos falta... Sem técnica, mais leve, melhor.

. disse...

Gostei do blog.
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. disse...

Legal o blog... Tem futuro...
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