É possível que essa casa seja algo como o mundo atual. Nas casas a alguns metros adiante, cercas elétricas, vidros pretos, carros importados e tudo o que a vida de quem tem dinheiro pode proporcionar. Naquela casa, duas frases sem nexo frente à realidade na qual se encontravam, mato crescendo no pátio e a angústia bordada nas paredes num misto de quebra-costela e ameaça de morte. Tudo bem que alguns digam que a realidade dos dias de hoje nos proporciona mil facetas, mil amores, mil oportunidades em cada palavra dita. Mas a pergunta que deve ser feita é para quem essas mil facetas e oportunidades podem surtir algum efeito.
Será que quem vem de uma família transfigurada pelo vício, pela pobreza, pela falta de afeto que a miséria causa, pode ter essas varetas fincadas na sua realidade? Será que realmente sentimos algo além de pena hipócrita do menino que bate no vidro do restaurante no qual jantamos aos risos? Será que comentar com a esposa dentro do carro da triste realidade daquele menino após dar uns trocados pra ele é realmente comiseração, é realmente compadecimento com essa realidade?
O fato é que a pobreza é o câncer do capitalismo, mas no corpo capitalista o câncer é o centro do sistema. Ou seja: quanto mais pobreza, mais saudável o sistema. Da mesma forma ocorre com o lixo que todos os dias produzimos, fruto de um consumismo que nos faz recorrer a compras e mais compras que só nos proporcionam um gozo imediato para logo após fazer com que a insatisfação se instale. Ou seja: com nossas lixeiras abarrotadas de marcas multicoloridas e nossas mentes que enxotam a inteligência em prol de mastigações intelectuais, todo o sistema funciona perfeitamente bem, toda estrutura está mais do que sadia.
O idêntico ocorre com a pobreza, sendo que essas vidas desperdiçadas, para usar a expressão de Zygmunt Bauman, são apenas o produto residual humano que provém dessa lógica que tantos abençoam. E nesse sentido, poderíamos até nos perguntar para onde vai o dinheiro que pagamos em impostos, porque o governo não toma soluções aqui e ali e coisa e tal. Mas a pergunta correta não está para os atos governamentais e sim para os nossos próprios atos, porque aqueles são apenas a conseqüência alargada destes.
Talvez por conta disso que cruzar por essa casa abandonada perto do Colégio Teresa Verzeri, tenha me provocado aquela estranheza, pois enquanto muitas crianças grávidas de futuro freqüentavam a escola, outras tantas crianças grávidas de dor não poderiam ver perspectiva de amanhã para além das próximas horas de suas vidas. Não que eu tenha visto crianças na casa abandonada, não que minhas palavras se direcionem apenas para a infância, mas é que num país que traz em sua bandeira as inscrições de “ordem e progresso”, não deixa de ser curioso haver uma casa abandonada com inscrições de “seja bem vindo” e “obrigado pela preferência”.
Se a ordem realmente existisse para além da vontade daqueles que detém o poder, talvez algum progresso se daria. Mas como a ordem de maneira alguma existe fora das arestas do consumo, cada vez menos acredito em um futuro digno para o Brasil e muito menos para o mundo. Então é que tenho de buscar os olhos daquele garoto que bateu na vidraça do restaurante enquanto eu me empanturrava de pizza e bebia um bom vinho tinto seco. Caso contrário, nada faz sentido e muito menos a escrita tem alguma razão.
Por isso é que o homem não é o lobo do homem, como queria Thomas Hobbes, pois seria depositar muita confiança na nossa espécie a comparação com qualquer cão. Por isso é que combater a miséria é apenas dar paracetamol para a dor de cabeça na expectativa de que ela jamais volte. Por isso é que acreditar na juventude também não traz mais nenhuma esperança, já que aqueles que podem conquistar algo, ou se preocupam com os seus umbigos ou se preocupam com o esquecimento completo de tudo aquilo que é de algum modo importante, assim como fizemos com o isolamento dos detentos e dos loucos – indesejáveis para nosso filminho à Hollywood da década de cinqüenta.
O estranho, contudo, é nos acharmos feitos à imagem e semelhança de Deus. O estranho é acharmos que respingos de ética podem forrar um chão de sofreres. E mais estranho ainda é sermos o eterno país do futuro, o que talvez esteja para o intuito de sorrir desdentado ao samba enquanto alguns sangram sua mais-valia. E justamente por isso, bom brasileiro que sou, abandonei tudo o que acabo de dizer logo após cruzar pela casa abandonada, porque amanhã minha preocupação será o Zé Ramalho que deu pra achar que o Bob Dylan é do nordeste. Afinal das contas, Nei Lisboa já profetizou: “cada povo tem o novo que merece”. E ponto final para minha insônia.