terça-feira, 28 de julho de 2009

"Não existe pecado do lado de baixo do Equador."

Todo poder corrompe. Todo laço é corrupto. Mas a pior democracia é melhor que a melhor ditadura. Se as coisas não são como deveriam ser, é porque o futuro existe, apesar da democracia não se medir por eleições periódicas e sim pelo conflito de interesses no espaço público. Para serem conflitantes esses interesses precisam de voz, a qual não irá partir da classe alta e muito menos da classe baixa, já que toda mudança política que algum dia ocorreu no Brasil partiu da classe média. Mas uma classe média anestesiada pela redução do IPI pra comprar sua TV de plasma ou pelo financiamento do seu Escort 97, não irá fazer nada além de acompanhar interessantíssimos debates futebolísticos. Portanto, não há perspectiva de mudança em médio prazo.

Reclamamos da alta carga tributária e da violência urbana, mas a questão maior é a nossa apatia frente ao que acontece no país. Falar em mesas de bar ou no Orkut pode ser um começo. Assistir ao Casseta & Planeta é rir da própria tragédia, o que é saudável. Mas ficar só nisso é pura falta de atitude, pois de uma ou de outra forma nossas discussões políticas tiram o corpo fora da própria política. Ou seja: a população faz o papel de “boazinha” e os políticos de “malvados”. Mas como disse Gramsci, o pior diagnóstico não pode passar ao largo da possibilidade de ação.

Por essas razões é que não é possível uma mudança de cunho vertical. Todo radicalismo é burro. A classe alta não fará nada e muito menos a classe baixa fará algo. FHC já falou em 1979 que no Brasil nunca houve um proletariado: apenas um operariado, porque até para a CLT existir, por exemplo, o ditador Getúlio Vargas teve que dar propulsão para a organização dos sindicatos. O povo não se articulou sozinho. Aceitou a merreca da CTPS em troca da sua liberdade. Assim, a única mudança possível parte do reconhecimento de que o poder se dá em rede, como disse Foucault. Dando-se em rede, não existem atores sociais preponderantes, mas sim atores sociais que medem seu papel no espaço público a partir do seu grau de influência no espaço público.

Logo, não me venha falar que é preciso uma política mais humanitária ou algo assim. E nem me venha falar de conscientização. Todo humanismo é um fascismo que conscientiza. Puro adestramento do humano, zoologização. Para quebrar a lógica do imediatismo que nos anestesia com o consumo e provavelmente evoluirá para a autofagia, é necessário que haja profundidade ao invés de velocidade. E para haver profundidade ao invés de velocidade, primeiramente é preciso haver o reconhecimento da alteridade do outro: o outro como igual mas diferente de mim. Precisamos de diálogo para construir conhecimento e reconhecimento: individual e coletivo, igualdade e diferença.

Caímos então na questão ética. Mas como a ética provém da moral, é necessário quebrar o ciclo imediatista de alguma forma. E como somos atores sociais em todas as nossas relações, pense em um corpo. Do mesmo modo, pense em um câncer. Se o câncer se alimenta do corpo, OK. É impossível evitar. Mas lembre que o câncer pode alterar o metabolismo de ao menos um dos órgãos do corpo. E para certos tipos de doença, nenhuma quimioterapia adianta. Mas será que ao invés disso não precisamos de uma análise psicanalítica de mais ou menos três décadas? Se for esse o caso, é possível que confundamos a analista com nossa mãe. Será amor à primeira sessão, o que não tem nada demais. “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”.

Mas antes de tudo isso, acredito que o berço da nossa inércia está para o fato de que jamais houve uma revolução no Brasil. Tivemos apenas revoltas. Nossa independência política é fruto de um acordo de cavalheiros. E de lá pra cá, somente remamos a favor da maré que nos disseram ser a única. Os oligarcas de ontem continuam com nossos cabelos nas mãos: apenas camuflaram o cabresto com ajuda das agências de publicidade. Os laços políticos são reflexo dos laços sociais: uma “cosa nostra” sem senso de justiça. E os laços sociais são corruptos porque são egoístas e ainda assim pregam a compaixão: o solidarismo analgésico desses clubes grã-finos e das grandes empresas. Quanto ao poder do jeito que está aí, é questão edípica. E talvez esteja para uma visão sensual do Brasil. Afinal, todos querem tetas por aqui.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Postas sobre Anil Duran.

Escrever é cada vez mais desaprender. Andar é cada vez mais tropeçar. Não existe linha reta para quem se arrisca. Se existe um traço, esse traço é apenas uma virtualidade geométrica. Retidão é moral escassa. É disso que se destila literatura.

Mas pensar sobre isso ao fazer literatura, faz com que a própria literatura seja obstruída na medida em que a palavra cega o objeto. Racionalizar o ato já é anular o ato. Por esse fato é que a literatura é só. O escritor não tem amigos para sua arte. Conversa de maneira incessante com todas as vozes que sussurram nos seus ouvidos. Alguém pode chamar isso de psicografia. Mas responder a humanidade da escrita com uma metafísica dos medos é fazer com que o próprio projeto humano morra. Por essa razão não é justo culpar o invisível pelas criações que fazem com que o mundo seja mundo e com que nós sejamos nós. Seria no mínimo uma tremenda injustiça com aqueles que estão eterna mas finitamente à deriva e só por conta disso existem.

E pensar nesse existir implica em imaginar paisagens. Essas paisagens podem ser das cores que você quiser, mas em sua maioria serão amarelo ocre porque tudo seca tudo: a flor seca a árvore, a árvore seca a terra, a terra é secada pelo homem que despedaça a árvore e coloca a flor em um vaso pra morrer em uma semana. Tudo assim unitário. Tudo assim singular. Fazer literatura é brincar de hiena: quanto mais carniça melhor. Perguntar da razão dessa tonalidade amarela é demais. Convém apenas aceitar as palavras como elas se apresentam aos sentidos. Pretender mais é pensar na estrutura das frases e assim mostrar o que não deve ser demonstrado. Se fosse, a literatura inexistiria.

Mas escrever sobre isso é convencer você de que o que você faz é literatura. A teoria é que dá a razão da prática. Funciona como uma mentira domingo pela manhã. A voz tentará dissuadir você da sua própria intenção. Você ficará nervoso, tentará abandonar seu cobertor factual. Mas no final ensaiará uma cara de coitado e falará aquilo que inventou por sobre aquilo que fez. O lábio tremerá e as palavras sairão rápidas mas nem por isso isentas de convencimento. É necessário, você admite para si, ainda que saiba que isso também é mentira, garantir o carinho antes de preservar a franqueza.

Um dia você pensará: como hierarquizar o que é humano de você para você e que apenas virtualmente irá em direção aos outros? Ouvir que todos querem ser ouvidos é uma coisa. Ser realmente ouvido é outra. O espaço que existe entre aquele que fala e aquele que ouve é que constrói o sentido. Esse espaço, por sua vez, só existe enquanto obscuridade. Sua essência está distante da sua forma. Talvez nem carregue uma essência. Dizer que o silêncio compõe esse espaço não é um erro. Seria um erro se houvesse uma explicação do silêncio, uma violência no silêncio. Toda palavra é um estupro porque nasce da ausência de consentimento. Aparece, penetra e morre. Permanece o silêncio e seu corpo.

Vale muito contar algo, portanto. Vale também descrever algo, ainda que tanto contar quanto descrever sejam palavras perfeitamente equiparadas quando se fala da escrita. Do contrário, não existiria a necessidade da palavra no papel para organizar aquilo que somos: bastaria a fala. E acaso não é ela mais justa com a nossa própria condição, esvaecendo logo depois que se faz? O que ficará dela será só lembrança. Dessa lembrança é que faremos o que somos, pois aquele momento se fará representação em seguida – como um show onde o que mais se vê são câmeras apontadas para o palco do que a vivência do espetáculo, já que viver o espetáculo implica em conviver com o outro.

Conclusão? A alteridade atrapalha. Imagine então para quem escreve. Aquele que escreve não pode ser interrompido. Os fluxos de raiva serão inevitáveis e redundarão em socos e divórcios. No primeiro caso há a polícia, no segundo caso há a Justiça. Na parcela que resta entre a prevenção e a correção, acontece o escrever: pra quê importunar quem estava quieto? Não interessa se são seis ou sete da manhã: importa é que as palavras estão se fazendo vida na proporção da organização que deflagram naquele que escreve. Esse terá mais dívidas com as palavras do que com seu próprio nome. Afinal, listas sempre são queimadas no final, isso quando não são enviadas para um museu e esquecidas nesse museu, tornando-se pouco a pouco taxidermias de si mesmas.

O cheiro delas é que persistirá por muito tempo se isso ocorrer. Cheiro amarelo, amarelo ocre. Antes de ser enterrado, talvez você invoque algumas para sua lápide e chame isso de epitáfio. Caso isso ocorra, poderá vislumbrar a orelha da sua morada final e terá de se contentar com essa visão. Após ela ninguém lhe escutará: tudo quanto você fez restará opaco, morno, não queimando e muito menos cozinhando. Alguém descobrir seus feitos vinte anos depois é possível. Mas a esperança não é válida para quem fala. Se fosse, não falaria, porque a fala expressa uma ausência e nada mais.

A folha ou a tela são brancas. As letras quase sempre são pretas. Nessa condição é que caminhando você perceberá que se o branco é a união de todas as cores, o preto é a ausência de todas as cores. O preto é opacidade, é condição. Desse horóscopo é que surgirá o seu sentido: interpretação da completude, grito da ignorância, desfazer plural e impossível. Dele você poderá teorizar. Isso trará calma. Só com o tempo é que haverão mais e mais perguntas no patamar da redução das respostas. Essas perguntas serão bolhas: sabão e bolas subindo pelo ar em direção à lua. Confundir a transparência com a escuridão será sintoma da sua condição. A geometria desaparecerá. Caixas deixarão de ser caixas e você duvidará que em algum momento caixas existiram. Permanecerá a proeza das equações, dos números e letras que sua vontade moldou.

Quando essa vontade for moldada, começarão a surgir importâncias. Essas importâncias não poderão ser carregadas em uma sacola. Existirão no máximo enquanto ilustração da sacola, enquanto designação de um suporte nato. Mais que isso será pura paranóia e motivo para choques. Se jogarem você em uma banheira cheia de gelo, não há o que estranhar. Você pediu pra levar. Continuando no limite da resistência, você iria muitos anos ainda. Mas como você resolveu baixar a guarda, os arqueiros invadirão seus terraços e levarão você embora. Você será colocado em uma gaiola e levado por uma trupe e por um exército.

No caminho você tentará dissuadir alguém. Mas perceberá que seus algozes são desprovidos de ouvidos. Seus gritos serão completamente inúteis e você se dará conta de que o carinho se confunde com a vergonha. A vergonha nasce da afronta moral. O carinho nasce do fato de você não suportar essa afronta. Daí o significado do castigo: a gaiola e depois a banheira de gelo. Você rezará um Glória ao Pai se houver nevado nesse dia, pois nu na gaiola você morreria mais rápido. Mas parando de cidade em cidade para que o exército estupre as mulheres e para que a trupe faça suas apresentações, você perceberá que a neve não chegará.

Tentando situar no tempo o seu desejo, construirá um alicerce no mês de julho. Pelos ingredientes com os quais o vento toca sua pele, você se dará conta de que já terão passado no mínimo dois meses de rotina e nada de neve. Implorar ou rezar seriam opções. Mas implorar para o cavaleiro que encabeça a fila? Rezar para o brasão que o cavaleiro traz no escudo? Não que eu queira assustar, mas isso será o mesmo que sobreviver ao oceano sem água doce. Nesse tempo você beberá sua urina. Chegará um ponto em que comerá suas fezes. As fezes e a urina, contudo, tornarão escassa sua resistência. Chegará então o fim sem lápide, mera ocorrência natural de um fato banal: seu fim.

Como resistir? Postergando páginas para gentes do futuro? No metrô lerão sua obra. No coito lerão sua obra. Lerão sua obra principalmente na presença dos outros. Você será a razão da misantropia do século XXI. Você acompanhará todos para todo canto. Bolsas e pastas serão seu esconderijo. Querendo sair, não haverá qualquer resistência. Você sairá e pronto. Do contrário seus pêlos crescerão mais rápido, suas orelhas ficarão pontudas e retangulares ao passo que você nada poderá fazer. A aniquilação total deixaria no mundo apenas a sua palavra, sendo ela benzida ou não, tendo você mastigado a óstia ou não.

Os filhos talvez continuem seu legado. Mas um dia todos cansam de chorar. Sua mulher arranjará outro. Seu cansaço apaziguado irá então aproximar outros: filhos e psicólogas, viúvas e pretendentes. Tendo seu filho um ou dois amigos, bastará para as vodkas que ele ama. Entornará copo após copo no prazer das desproposições. Caindo na Igreja, na praça, tudo será como planejado. Será uma trama sem maiores enleios. Tombo após tombo, tropeço após tropeço, chegará talvez no ponto daquilo que fazia para então deixar de fazer e começar a falar. A geração dessa fala será o passo seguinte. Uma geração sem útero, sexo ou carinho. Uma geração nervosa. Mas nem por isso menos uma geração.

Aparentada com todas as gerações precedentes, haverá a tentativa de definição. Haverá o ímpeto do conceito. Precisões e necessidades inúteis estarão na sua fala. Você teorizará pela voz de outro aquilo que disse ontem. E desaprenderá com todos os seus tropeços: o
ciclo se fechará.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A Revolução Francesa e o Solidarismo Analgésico.

Venho tratando nas últimas semanas das implicações do senso imediatista na sociedade atual. Tenho referido que vivemos em uma sociedade onde impera a Lógica do “Carpe Diem”, na qual o imediatismo tanto com relação às pessoas quanto com relação às coisas faz com que o processo de aproximação se dê em razão do consumo. Essa aproximação dada em razão do consumo, faz com que a liberdade se dê enquanto liberdade de consumir. Dando-se a liberdade relacionada com a possibilidade de consumo em uma determinada estrutura social, se alguns terão a possibilidade de desfrutar das maravilhas dessa sociedade, outros passarão a vida buscando essa liberdade sem jamais alcançá-la. Desta maneira, se o significado da liberdade está relacionado com a possibilidade de consumo, chega-se a conclusão de que se a liberdade existe, ela é para poucos.

Entretanto, é possível que ainda se fale em liberdade se a própria liberdade é para poucos? A conclusão óbvia é que não. Certo é que hoje temos mais liberdade em relação ao passado. Mas mais liberdade implica em uma graduação da liberdade e não necessariamente em liberdade. A liberdade, contudo, será sempre uma graduação da liberdade e não necessariamente liberdade porque apenas será liberdade em relação a algo ou alguém. Portanto, mesmo que se critique a liberdade atual relacionada com a possibilidade de consumir, esta é somente uma face da liberdade a partir das suas condições de existência.

Porém, partindo dos lemas da Revolução Francesa, cujo marco se deu em 14 de julho de 1789 com a Queda da Bastilha, estes baseados na tríade “liberdade, igualdade e fraternidade”, pode-se dizer que as conquistas do Estado Moderno que se formou a partir de então estiveram relacionadas com esses ideais. Apesar disso, ainda que a liberdade e a igualdade sejam garantias constitucionais, por exemplo, elas não passam de estipulações formais ao invés de estipulações com reflexos efetivamente materiais. Isto se dá em razão do simples fato de que nascemos iguais tão-somente porque nascemos nus, já que nossa igualdade estará sempre relacionada com a estrutura social na qual nascemos. O mesmo ocorre com a liberdade, porque é clara a conclusão de que a liberdade apenas se dá em uma sociedade igualitária, sendo impossível a efetivação da liberdade em uma sociedade desigual.

Mas e a fraternidade? Com relação a esta, é de se dizer que a fraternidade implica em solidariedade e solidariedade é a face que a sociedade atual menos demonstra. Alguns podem dizer que o brasileiro é solidário, que sempre ajuda seu semelhante quando este necessita. Mas a realidade é que a solidariedade do brasileiro atualmente é impulsionada por determinações da mídia, durando o tempo que dura o estardalhaço midiático que evoca a própria solidariedade. Neste sentido, com certeza que temos solidariedade para com aqueles que nos são próximos, para com nossos amigos e nossa família e, em alguns casos, certas pessoas demonstram uma solidariedade franca em relação aos mais necessitados. Mas o que ocorre em uma sociedade onde impera a Lógica do “Carpe Diem”, é que a solidariedade existe mais para ajudar a si próprio do que para ajudar os outros, já que, muito embora o mundo desabe ao nosso redor, se nos atrelamos a alguma ação dita “humanitária”, ao menos podemos dizer que “fizemos nossa parte”. E se fizemos nossa parte, livramo-nos da culpa de termos ficado de braços cruzados. Trata-se assim de um solidarismo analgésico.

Em face de tudo isso, ainda que os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” tenham impulsionado gerações na luta política, a estrutura social e econômica na qual estamos posicionados e a qual estamos presos, absorveu esses ideais e os transformou em objetos de consumo. Transformando ideais em objetos de consumo, talvez tenhamos que, para efetivamente fazer com que idéias se tornem ações, não vê-los como ideais, mas sim como possibilidades de movimento para a mudança da realidade. Caso não houver essa transformação de idéia em movimento, permaneceremos presos à concepção de que uma sociedade igualitária não passa de uma utopia inatingível. Portanto, antes de uma revolução social, precisamos de uma revolução do pensamento para que a própria revolução social ocorra, pois um outro mundo é possível somente com uma mudança do pensamento acerca do próprio mundo.

domingo, 12 de julho de 2009

A Prisão da Liberdade.

Semana passada escrevi sobre o que agora denomino como Lógica do “Carpe Diem”. Essa lógica, refém do imediatismo, dissemina o medo na sociedade pelo simples fato de que esse imediatismo pode cessar de uma hora para outra. Exemplo disso é o medo que todos têm da violência urbana. Esse medo diz do temor de não fruir daquilo que as cidades mais oferecem. Mas o que é que as cidades mais oferecem? A resposta é clara: o consumo. Extrai-se disso que os temores atuais, ligados ao imediatismo da Lógica do “Carpe Diem”, estão para o medo de não termos uma relação segura com o consumo.

Essa relação segura com o consumo, entretanto, sustenta-se a partir da própria insegurança da sociedade para com a possibilidade de consumir. Essa insegurança está relacionada principalmente com o medo de perder o emprego. Perder o emprego, nesse sentido, não significa apenas perder a renda com a qual o indivíduo se sustenta. Ao contrário, significa perder seu lugar na estrutura social. Perdendo seu lugar na estrutura social, os cartões de crédito e mesmo as relações afetivas estarão prejudicadas, pois se a liberdade na cidade está para a possibilidade de usufruir das oportunidades de consumo que a cidade oferece, tudo se torna objeto de consumo.

Logo, o que se nota é que a liberdade, antes de ser uma questão filosófica ou jurídica, está para a possibilidade do indivíduo usufruir das oportunidades de consumo que a cidade oferece a partir da sua condição na estrutura social, a qual está diretamente ligada ao seu poder econômico. Consequentemente, a liberdade não é para todos. O que se conclui é que se a liberdade da atualidade está relacionada à possibilidade de consumo do indivíduo, a liberdade não existe. Ou melhor: existe para poucos enquanto inexiste para muitos. Esses poucos é que poderão aproveitar a oferta intermitente que a sociedade de consumo oferece, viajando pelo globo e não tendo qualquer preocupação com a profundidade das suas relações com as coisas e com as pessoas, porque se o que garante a liberdade é a Lógica do “Carpe Diem” relacionada à possibilidade de consumir, tudo que me prende a algo ou alguém é tão fugaz quanto o ato da compra.

Contudo, os muitos que não poderão provar dessa liberdade ficarão presos em suas condições econômicas relacionadas à estrutura social na qual estão inseridos. Geralmente reféns de contas e dos seus empregos, não terão a liberdade para consumir tanto quanto gostariam. Porém, se não terão a liberdade para consumir tanto quanto gostariam, irão se endividar eternamente na expectativa de que no futuro poderão cobrir suas contas do hoje. E o que acontecerá será o surgimento do “devedor eterno” do qual falei na última quinta-feira. Mas o estranho de existir apenas uma liberdade relacionada à possibilidade de consumo, é que nem mesmo aqueles que podem usufruir dos produtos que estão à venda por todo o globo são livres. Sua liberdade, ao contrário, é uma liberdade existente até segunda ordem. Assim, se de um lado existe um indivíduo que busca de todo modo essa liberdade, por outro lado existe um indivíduo que pretende manter de todo modo essa pouca liberdade conquistada.

Desta forma, tanto um quanto outro irá sofrer as conseqüências que o excesso de velocidade e a ausência de profundidade provocam. Esses efeitos, pode-se dizer, não são nada diversos dos efeitos que os psicotrópicos provocam nas pessoas. Se a droga proporciona uma ilusão de liberdade relacionada a uma substância química e o consumismo provoca uma ilusão de liberdade pela possibilidade de comprar, o que temos é uma prisão da liberdade e jamais a liberdade.

Mas se a liberdade atualmente está para a possibilidade de consumir, não se deve julgar sua verdade ou mentira. Talvez se deva, muito antes de formular conceitos morais acerca dessa realidade, diagnosticá-la da maneira mais crua possível, pois a única coisa que pode frear o imediatismo consumista e medroso da Lógica do “Carpe Diem” é justamente a profundidade que lhe falta. Se o rio é profundo ou não, temos de crer na sua profundidade mesmo que a água seja tão barrenta quanto nossa indecisão. Caso nos falte coragem, a superfície será nosso lugar. E ofertas não faltarão para que esqueçamos que ao nosso lado tudo desmorona.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Cavalo das Quartas.

Parece que hoje foi uma repetição de ontem. Não fez sol e a chuva cessou em alguns momentos para retornar em muitos.

Aqui dentro de casa está tudo úmido. Até meus pensamentos parecem úmidos.

Talvez isso tenha postergado tanto minhas palavras de hoje. Talvez elas tenham escorregado em algum azulejo do banheiro e estatelado no chão, sangrando dois dentes perto da pia. Mas o provável é que tenha sido apenas preguiça.

Costumamos colocar as culpas da nossa inércia em tudo quanto nos rodeia e raras vezes em nós. É muito mais fácil responsabilizar a chuva ou o governo do que dizer que você não fez o que tinha que fazer por pura falta de vontade. Mas também não é crime nenhum a falta de vontade.

Lembro de um poema do Pessoa que fala do prazer em descumprir um dever. E nesses tempos em que os deveres são muitos e o tempo é pouco, quem sabe seja justamente disso que necessitamos. Claro que existem prazos que devem ser cumpridos e exigências inadiáveis se queremos conquistar algo. Mas de todas essas exigências, quais são aquelas que verdadeiramente importam?

Ao falar isso, recordo que quando tinha dezoito anos colei no teto do meu quarto, bem em cima da cama, uma cartolina com a seguinte pergunta: O QUE IMPORTA? Essa pergunta me fez cair em uma crise existencial daquelas. Porém, quando hoje recordo dessa crise, me dou conta de que ela foi mais um pretexto pra encher a cara do que qualquer outra coisa. Por causa da crise, eu podia chegar em casa a hora que fosse e faltar aulas e aulas da faculdade que cursava com a desculpa de que estava em crise. Mas esse tempo no qual dormia e acordava com o questionamento sobre o que importa me foi muito proveitoso.

Na verdade tiveram que acontecer algumas coisas para que eu me desse conta desse tempo. Tive de passar por algumas experiências não muito boas que inclusive me legaram uma cicatriz no queixo para que esse tempo realmente me fosse proveitoso. E posso dizer que de maneira alguma agiria de forma diversa. Com certeza que me prejudiquei em alguns aspectos e deixei passar várias oportunidades bem diante do meu nariz. Mas ainda que sempre tenhamos a tendência a glamourizar o passado, como se o antes fosse eternamente melhor que o agora, ao menos nesse sentido me valeu a pena ler aquela pergunta amanhecer após amanhecer.

Isso me remete diretamente aos deveres que não cumpri e aos deveres que hoje tenho de cumprir para sobreviver. Para algumas coisas não posso simplesmente abdicar da responsabilidade. Entretanto, tento o máximo possível não culpabilizar o mundo ou as pessoas pela inexistência de efetividade em alguns atos que pratico ou deixo de praticar. Muito antes disso, o único responsável sou eu, coisa que aprendi com o Albert Camus.

Por isso é que hoje, ouvindo a chuva que molha o telhado e me chega com um vapor leve pela janela, penso que a aceitação da fatalidade é necessária para certos alicerces daquilo que somos. Não podemos compactuar com as fatalidades que dizem que o mundo é este e nenhum outro mundo é possível, por exemplo. Mas temos de compactuar e aceitar aquelas fatalidades relacionadas a nossa própria condição humana. Nessa condição, jamais saberemos ao certo o que verdadeiramente importa. Mas dentro de nós ou ao menos no olhar de certas pessoas, poderemos perceber que aquilo que verdadeiramente importa não pode ser comprado ou aproveitado ao deus-dará do consumo.

Por outro lado, aquilo que verdadeiramente importa talvez esteja para aqueles cavalos que não se deixam domar. Mesmo que o domador tente pôr um cabresto em seus movimentos, eles sempre se desvencilham de qualquer viseira que diga o lado para o qual devam cavalgar. Por isso é que ao invés de apenas aceitarmos a inevitabilidade dos invariáveis aborrecimentos que toda quarta-feira nos traz, temos de tentar mudar nosso rumo com gestos visíveis e invisíveis que digam justamente daquilo que somos.

Por mais que falem que somos enquanto momento, que somos fragmentados e jamais passíveis de uma união, existe algo que nos faz únicos na fatalidade da existência. Como cavalos selvagens, temos de negar a viseira das ruas e compor o horizonte dos campos em pé, sabendo que se a noite existir, a lua desenhará nossa sombra na grama e fará com que nossos sonhos de eternidade rabisquem uma nova constelação a cada estrela que apaga.

Essa é a única liberdade possível para as quartas úmidas e chuvosas. Estranho será se nada nos parecer estranho e não nos darmos conta de que nosso único dever é o sonho.

terça-feira, 7 de julho de 2009

O João-de-barro das Terças.

Santo Ângelo fica na região noroeste do estado. É longe de Porto Alegre. Se não me engano uns quinhentos quilômetros. Mas isso não impede Santo Ângelo de ter sua região metropolitana. Ou cidades satélites, como dizem.

Entre-Ijuís, por exemplo, é uma cidade satélite de Santo Ângelo. Trata-se de um daqueles municípios que surgiram às margens de uma rodovia. Caso seus moradores queiram algo que não possa ser encontrado nas prateleiras do comércio local, tem que embarcar em um ônibus da GMS e zarpar pra Santo Ângelo.

Também é uma dessas cidadezinhas nas quais duas famílias se revezam na prefeitura. E quando não é uma das famílias, é algum laranja que representa elas. Esses tempos até ouvi falar que esses caudilhos enriqueceram nos anos 80 com o tal do adubo papel. Nunca entendi do que se trata esse adubo papel, mas pelo mero fato de haver papel no meio da coisa dá pra deduzir que é sacanagem.

Mas sacanagem por sacanagem, não é disso que quero falar. Me interessa falar da Cruz Missioneira que fica no trevo que dá acesso à Entre-Ijuís. Imponente e branca, serve, até onde sei, pra informar os passantes que por aqui houveram as Reduções Jesuíticas.

Somente falar acerca dessas Reduções, faria com que minhas linhas se estendessem ao infinito. E como ontem reconheci que esses lances de infinito só podem ser alcançados pelo Buzz Lightyear, não falarei nem dos caudilhos de Entre-Ijuís e muito menos das Reduções.

Por outro lado, falarei de um joão-de-barro que fez sua casa em um dos braços da cruz, coisa que reparei hoje cedo quando voltava de Ijuí, uns cinquenta quilômetros daqui, abaixo de umas pancadas de chuva que certamente farão com que o inverno volte por esses campos.

Esse joão-de-barro não conhece nada da cultura missioneira. Muito menos sabe das maracutaias que perpassam as prefeituras da região. Apenas construiu sua casa em um dos braços da cruz pra apreciar o movimento. E apesar de eu não ver graça alguma em assistir carros e caminhões passar de lá pra cá a todo momento, vai saber o que se passa na cabeça do joão-de-barro.

Sempre me disseram, aliás, que a gente deve respeitar o joão-de-barro. São passarinhos que constroem sua própria casa com pedaços de graveto e barro que acham por aí. Assim, judiar de um joão-de-barro é demonstração clara de falta de caráter.

Contudo, o que me intriga é que as pessoas acham normal o cidadão se matar de trabalhar pra comprar algumas quinquilharias no decorrer da vida, ao passo que acham uma crueldade tremenda alguém desmanchar a casa do joão-de-barro com um cabo de vassoura.

Não que eu esteja defendendo essa gurizada que mata passarinho de bodoque. Acho sinceramente que são umas pestinhas que merecem uma tunda de laço.

Mas se os bancos tomam terras e mais terras dos agricultores, se os supermercados obrigam seus funcionários a entrar no tal do banco de horas pra não ter que pagar horas-extras aos caras, se duas famílias se revezam na prefeitura de Entre-Ijuís ao deus-dará e aplicam o dinheiro público sei lá eu onde, existe algo estranho nessa história toda.

Porém, tenho de admitir que essa estranheza acaba no exato momento que lembro de uns temas que estão me deixando mais louco que de costume: economia, política e sistema.

Mas que nada. Sete palmos pra eles nessa terça.

Hoje ficarei tranquilo construindo meus dizeres que nem o joão-de-barro constrói sua casa.

Por isso é que o joão-de-barro agora é meu bichinho das terças.

Sim, porque é a terça-feira que faz com que a semana inicie, porque somente nela você se conforma um pouco com feira que acompanha todos os dias do calendário. Coisa de mascate recalcado, óbvio.

Ainda assim, hoje minha vontade é me entocar aqui na biblioteca e não botar as fuças pra fora. Me dá medo um sonho bobo que tive: sou atropelado por um caminhão de porcos. Para minha segurança, ficarei com meus livros. Distante de caminhões e porcos, estarei seguro. Mas mais tranquilo ficaria se os gatos deixassem de frescuras e dessem cabo em todos os pinchers do mundo. Dessa forma os latidos dessas criaturas desprezíveis não me fariam escrever um texto tão ruim.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O Gato das Segundas.

Segunda-feira é um dia prático. Ao menos acredito que seja.

Se aqui em Santo Ângelo ainda posso ouvir os cantos de sei lá eu quantos passarinhos, talvez isso seja o que chamam de bênção.

Longe de mim estar em um daqueles prédios cinzas de Porto Alegre, encaixotado pelo tráfego e pela paisagem interminável de paredes ao amanhecer. Claro que não condeno Porto Alegre. Gosto daquele ar sacana e tal. Mas não troco o interior por nada.

É possível que daqui uns tempos eu tenha que sair do interior. Se isso acontecer, garanto que volto.

Melhor é andar tranquilo na rua do que andar se cuidando na rua. Melhor é saber que a Caixa fica dez minutos à pé do que fazer malabarismos no trânsito pra não atrasar as contas. Além disso, melhor é essa tranquilidade para pensar e escrever, mesmo que no mais das vezes ela seja policiada.

Mas esse policiamento, antes de ser um policiamento com fuzil AR-15 ou ferros do tipo, é mais um policiamento moral do que qualquer outra coisa. Uns dirão que isso é pra lá de irritante. E até concordo que seja.

O problema de morar no interior, é que qualquer coisa que saia um pouco da normalidade é vista como sacanagem. Por isso é que o pulo do gato por aqui é fazer muita sacanagem mas aparecer nas colunas sociais da cidade.

Fora isso, aparecer nessas colunas abre mil e uma portas, como me disseram uma vez. Mas eu fico é me perguntando que tipo de portas essas colunas abrem.

Seriam portas de madeira, daqueles mognos centenários que algum desnaturado derrubou para o deleite das lojas de tinta, ou seriam portas de ferro, dessas que o pessoal compra por falta de grana pra fechar a baiuca?

Pra ser sincero, acho que nem uma nem outra. Ao contrário, acredito que essas portas são feitas de papel. Se não fossem, por que as tais colunas estariam nos jornais da cidade? Seria um despautério lógico.

E apesar de eu não gostar de gatos, se o domingo depende de um elefante para existir, a segunda depende dos gatos para existir. Podem falar que os gatos são desconfiados e não confiáveis e et cetera. Mas quem vai duvidar da agilidade desses bichos chatos?

Entre um pincher (leia-se: morcego que late) e um gato (ainda que eu não goste de gatos, coisa que é NECESSÁRIO reiterar), prefiro um gato.

Quem sabe ele ficasse me observando e fosse mais preguiçoso que eu nessas semanas que iniciam. Ouviria meus lamentos materiais com toda paciência e me olharia com aquela cara de descaso, cagando e andando pra mim. Comeria as gatas da vizinhança, viria pra casa pra chiar aquele chiado asmático e dormir e deu pras bolas. Ao invés de um labrador, amigo de fé/irmão camarada, um gato seria meu algoz da empatia e por isso eu gostaria dele.

Mas há de se convir que essa é uma hipótese pra lá de remota. Fico com minhas considerações sobre Santo Ângelo. E espero que nenhum gato féladaputa pule naquela pomba que está passeando pelas gramas do pátio. Se acontecer, juro que dou todos os ratos pra ele.

Assim o malandro aprende a caçar e deixa dessa ladainha de Whiskas e apetrechos de sardinha que vendem por aí. E talvez eu entenda então que esse meu pertencimento ao interior é mais de fora do que de dentro. Não fosse, as lágrimas seriam doces e não salgadas.

Mas esqueci: segunda-feira é um dia prático. Portanto nada de bichices.

Ao trabalho, porque ao infinito e além, só o Buzz Lightyear.

domingo, 5 de julho de 2009

O Elefante dos Domingos.

Amanheceu o domingo com cara de chuva. Ou eu que amanheci com os olhos nublados? Não interessa.

Uns passarinhos cantam nas árvores do pátio. Os cães devem estar dormindo depois de suas conversas noturnas.

Há pouco assisti no Globo Rural uma reportagem sobre quem planta café. Sempre me interessei por coisas do campo. Gosto até de ver aqueles comerciais estranhos de produtos que supostamente revolucionam o tratamento do gado. Mas o fato é que não tenho a menor intimidade com isso.

Porém, tenho intimidade com o quê? Com esse domingo com cara de chuva ou com meus olhos que estão nublados de sono?

Sei apenas que a madrugada passou rápida. O livro do Saer, o livro do Bauman, umas palavras aqui, outras ali e logo veio o dia.

Nunca acreditei que os dias começam após a meia-noite. Pode até ser que as datas comecem formalmente após a meia-noite. Mas dia, só com sol. De resto, ontem e nada mais.

Penso em dormir agora. Mas também penso que poderia ficar acordado e dormir após um churrasco ao meio-dia. Aguentarei? Meu estômago responde que sim. Mas ao mesmo tempo dá ares de Atacama em suas dobras.

Mais fácil seria deitar, coçar o pé no colchão e dormir. Abraçar quem dorme comigo todas as noites e não pensar em outra coisa senão no sono.

Mas então por que a escrita? Por que perder tempo com essas frases que nada dizem de importante? O que é importante? “Importante é o que importa”, falei em um conto de uns cinco anos atrás. Mas o que importa?

-Importa o que é. – me sussura uma voz de imediato.

Mas o que é? A voz se aquieta e não diz mais nada. Talvez seja apenas expectativa de chuva. Ou de sono. Água por água, tudo acaba escorrendo. Quem fica somos nós: olhos, café, peito e contas.

Que nada...

Negócio é espantar a monotonia com o churrasco do meio-dia. Negócio é esquecer de quem planta café e dos programas obscuros que ensinam como inseminar vacas manualmente. Negócio é esquecer dos negócios e imaginar um elefante imenso caminhando pouco a pouco por cima de tudo que está acordado.

Esse elefante não virá da Índia porque nunca entendi como podem existir elefantes na Índia. Esse elefante, ao contrário, virá pesado por sobre uma escada de passarinhos e me olhará fixo com sua tromba de água. Por medo ou por ser domingo, enfim dormirei.

E então é que chegarei a conclusão mais sábia de todas: esse elefante é que carrega a cidade aos domingos. Longe dele, não é domingo. Com ele, tudo depende da harmonia das suas costas e do seu andar preguiçoso e distante.

Não importam mais as padarias que vendem frango assado, os adolescentes com voz de cerveja ou os casais dos móteis de peles morais. Não: importa apenas o passo pausado do elefante e o silêncio dos cães, porque é aí reside o domingo.

Tudo depende do elefante dos domingos e nada tem a ver com meus olhos nublados. Afinal, de qualquer forma irá chover e de qualquer forma já estou dormindo.

Falta apenas fechar os olhos para a mãe travesti do sono: o sonho. É dele que o elefante dos domingos se alimenta e afoga as preocupações da segunda. Por isso hoje me esqueço de mim na chama branda de um fogão de quatro bocas que guarda minha liberdade assistida. E um pouco de café para as quatro horas da tarde.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O Devedor Eterno.

Semana passada escrevi sobre a lógica do “carpe diem”. Falei do quanto essa lógica faz com que ao invés de nos submeter ao processo que antecede toda conquista, queiramos que tudo aconteça da noite para o dia. Defendi o argumento com as expressões “atalhos” e “torpedos”, as quais, surgindo amarradas aos computadores e celulares, hoje significam muito mais, concluindo que o melhor “atalho” para os “torpedos” é explodir sem sair do lugar. Entretanto, também prometi que voltaria a escrever acerca do assunto partindo do fato dos cartões de crédito nos estragularem mês a mês, bem como do fato do "ficar" relacionado às casas noturnas ou quaisquer outros ambientes ser algo corriqueiro entre as pessoas. Desta forma, é disso que irei tratar hoje.

Com relação aos cartões de crédito, a tentação que eles proporcionam é tremenda. Com eles você pode comprar qualquer coisa sem ter dinheiro na hora da compra, o que gera a possibilidade de pagar tal coisa em outro momento. Todos os estabelecimentos comerciais que conheço utilizam esse sistema, o qual, até onde sei, é bastante seguro para esses estabelecimentos, pois posiciona a cobrança nas empresas que concedem os cartões de crédito e não nos estabelecimentos. Contudo, não me interessa falar desses estalecimentos comerciais ou mesmo das empresas que concedem os cartões de crédito, mas sim do ímpeto da compra que sustenta o próprio consumidor que utiliza os cartões de crédito.

Esse ímpeto, o qual é impulsionado por todos os lados pela mídia, faz com que você fique preso a dívidas sem que muitas vezes tenha condições de pagá-las. Levado ao extremo, faz de você um devedor eterno, o qual necessita do seu emprego para pagar suas dívidas e então sobreviver. Fazendo de você um devedor eterno, essas dívidas disseminam o medo na sociedade. Esse medo, relacionado também a violência das ruas, angustia você e aprisiona você em contas que terá de pagar em não se sabe quantas vezes, tendo de garantir seu emprego, o que igualmente gera medo, para que possa pagar tais contas e então sobreviver.

Com o “ficar” das casas noturnas ou quaisquer outros ambientes ocorre o mesmo, com a diferença de que não existem contas futuras a pagar. Se você prefere relacionamentos fugazes ao invés de relacionamentos duradouros, certamente faz isso, ainda que diga que é apenas por diversão, para não trazer para si qualquer comprometimento, já que o comprometimento, a exemplo das dívidas dos cartões de crédito, suscita inevitáveis cobranças, as quais não estão para suas expectativas emocionais no assoalho da lógica do “carpe diem” e do medo.

Se inicialmente o “ficar” era símbolo da revolução sexual que teve início na metade do século passado, hoje o “ficar” se torna símbolo do próprio medo, visto que se inexiste a intenção do comprometimento emocional e existe a intenção do comprometimento financeiro, surge um nítido descompassado entre realidade financeira e realidade emocional, pois se por um lado há a sustentação dos pagamentos financeiros futuros, por outro lado há a isenção dos comprometimentos com relação às cobranças emocionais futuras. Isso provoca o distanciamento entre as pessoas, promove o desligamento dos laços afetivos e o surgimento de conexões ao invés de relacionamentos, porque é isso que a fugacidade do “ficar” suscita.

Desta maneira, porém, tenho de dizer que não me posiciono contra uma nem outra prática, mas apenas faço um diagnóstico claudicante do que existe por trás das mesmas. O temor que tenho é de que no assoalho do medo, esqueçamos do futuro emocional e apenas corramos atrás do futuro financeiro. Se meu temor se concretizar de maneira irreversível, a impessoalidade das relações e o surgimento de supostos especialistas que “entendem” dessas relações será ainda maior. Logo, tendo de correr atrás de dinheiro para pagar dívidas financeiras, também teremos de correr atrás de dinheiro para pagar esses especialistas, tornando-nos eternos endividados com nosso bolso e principalmente com nossos sentimentos oprimidos pelo imediatismo da lógica do “carpe diem”. Assim é que os “torpedos” pegarão seu melhor “atalho” de vez, gerando um medo irreversível para o qual jamais estaremos preparados.