segunda-feira, 11 de maio de 2009

Uma fluorescente nos incendeia o rosto.

Nascemos. Uma fluorescente nos incendeia o rosto. Um frio no toca as pálpebras não abertas. Alguém nos desprende e sentimos dor. Alguém no bate e sentimos ar. Como conseqüência, gritamos.

Nascemos. Continuamos nos braços de alguém. Nos colocam em uma bacia de água morna. Nossos membros se mexem em convulsão. Nos tocam. Nos limpam. Fazem com que nosso ventre deixe de ter um sentido. Como conseqüência, existimos.

Nascemos. Somos enrolados em uma toalha felpuda. Existe um conforto que não está para o frio das pálpebras e nem para o calor da fluorescente. Aos poucos a retina se acostuma com a luz. Como conseqüência, percebemos.

Nascemos. Uma pessoa nos pega com cuidado. Nos deitam em uma cama ao lado dessa pessoa. Vemos com os olhos recém abertos o que chamaremos de rosto no futuro. Então sentimos uma necessidade que vem da boca. Como conseqüência, choramos.

E se gritamos, existimos, percebemos e choramos nos minutos que se seguem ao nosso nascimento, é porque a próxima etapa será falarmos, pois apesar de nos depararmos com rostos sem-nome em cada esquina, é necessário que um nome seja dado a tudo isso. Caso contrário, não há mais nada, visto que as etapas anteriores já foram vencidas.

Por baixo desse cotidiano de ponteiros, porém, existe uma dança que aprendemos logo ao nascer.

Nossos membros que em convulsão se movem, dão uma pista dessa dança. Nossas pálpebras que no útero se contraem em sonho e mistério, mas no mundo se contraem em pleno frio, também dão pistas dessa dança.

E enquanto não aceitarmos a total ausência de sentido para tudo que não esteja para essa dança, falaremos sem parar daquilo que não sabemos mas que se encontra na raiz da própria fala.

Todo o mais é um ritual profano e divino. Todo o mais convulsiona sêmen e terra em uma mística que traz do cosmo a semente da própria vida.

Se hoje nascemos no incêndio das fluorescentes para depois sermos enrolados em toalhas felpudas, ontem nascíamos na terra, nas folhas, com o cordão umbilical se misturando à placenta recém despovoada no canteiro de alguma casa, seja de barro, madeira ou pedra.

E o tempo?

Começa quando falamos. Começa quando vemos tantos sem-nome se dirigir a nós, que somos obrigados a fazer algo além de gritar, existir, perceber e chorar. Começa quando, ao nomear as coisas, envelhecemos nossa história e o nosso próprio rosto envelhece por pura ilusão dos passos dessa dança que aprendemos mas da qual não queremos saber.

Então morremos.

Morremos sem encontrar sentido algum além daquela dança dos membros e das pálpebras. Morremos entre o sexo e a morbidez do cheiro que exala das entranhas. Morremos sem qualquer compreensão daquilo que vivemos, daquilo pelo quê choramos, daquilo tudo que sentimos.

Não houve nenhum porque no incêndio dos olhos pela fluorescente da sala de cirurgia.

Somente houve um porque para a necessidade da boca.

Essa boca, antes de morrer, irá procurar outras bocas, irá sugar outras bocas, desejará ir além da palavra em outras bocas justamente para gritar, perceber, chorar e existir antes de falar. E por isso essa boca trará consigo a presença da eterna ausência, de um saciar que não sacia, de um ventre que perdeu o sentido quando foi separado daquela que lhe deu a vida, pois amar também é uma forma de fome:

- Eu te fome assim como tu me fome. – e é isso.

Biológicos? Só se for pela comida e pelo desejo.

No mais, apenas o que falamos e apenas o que passamos enquanto falamos para morrermos. História e linguagem: nossa constituição fundamental. Afora esses siameses, ossos e carne para assim sem mais morrermos.

Além? Não, seria demais pedir um além. E seria canalhice dizer que alguém pode ter contato com esse além.

Se nascemos gritando para existir e se existimos para perceber e depois chorar, somente as palavras poderiam ser este além. Antes disso, a dança das pálpebras em sonho e dos membros em convulsão e nada mais. Portanto, nosso messias maior é o verbo, filho da dança e do mistério ao qual jamais teremos acesso mas mesmo assim ouviremos.

Desta maneira, nossa única possibilidade é a ação, pois na inação da morte os microorganismos farão sua parte.

E como naquele nascimento de ontem, voltaremos para a terra.

Afinal, nascemos.

E mesmo assim o mundo continuará a dançar a dança da qual morreremos desconfiando sem jamais aprender.

3 comentários:

Beatriz disse...

Grande texto.

O sentido é a dança

só esse. E a luz.

Mais luz

Camila disse...

Uau!
Que sensibilidade ao retratar uma realidade não tão bela assim.
Lindamente escrito.

BeijOs

pensar disse...

Inexplicavemente teve palavras para incompreensao.No mover das letras acordo o sentido e dou vida ao inanimado e suas palavras vibram em ressonancia aos ventos do mundo. Sera' que sobrevivea' na disponibilidade da inteligencia universal?E quem captara?
As ondas estao lancadas, o mais e' nada.
Bjs