domingo, 17 de maio de 2009

Pela garganta da noite.

Silencia minha voz pela garganta da noite. Na fronteira das estrelas a solidão do que sou. Deixo o campo no horizonte do presente dessas horas. Me aqueço com o fogo calmo de anteontem. Há muito senti dias como suor pelo corpo. Só me resta disso ausência que é pele da memória. Trago pouco comigo pois quase nada sobrou. E os anos hoje me calam antes do sol nascer.

Madruguei com água fria os olhos cheios de lua, porque me deu na veneta de deixar a porta aberta pra que ali da cozinha a janela mostrasse a idéia do que era o céu de um meio de maio.

Quando meus pés rangeram as tábuas brutas do assoalho, ouvi ao longe o canto de uma coruja acordada. Um vento semeava folhas com geadas e amanheceres – e venezianas sopravam chiados frios visitantes.

Apaguei todas as luzes, puxei os panos da cama, mas antes de me deitar e me confundir com as coisas, divisei no meu encalço o caminho do luar desenhando minha sombra. Vi contornos nublados, precisos e verticais, que estancavam o óleo de traços fracos medidos.

Um medo estranho, um anseio, um desejo da minha face nas poucas cinzas do chão, fez meu cotidiano passo verter pulso diverso na casa acostumada. Dei largo ao gesto impensado de feiras e de semanas com o sono sem chave que o inverno abraçou.

Dormi como quem acorda, abri um mundo fechado – e um sol de brilho incolor uniu em nó a corrente do que se passou em mim.

Me afoguei no açude que fica perto daqui. Moldei os dedos no barro de uns peixes invisíveis. Pulmões, coração pesado fluindo sangue de um poço à beira de secar na corda que rompia e que cortava as palavras. Não busquei movimento ou qualquer reação. Soltei membro por membro na angústia que me tomava. Havia uma força nas costas, havia uma força no ventre, havia uma força em mim que dizia ser a entrega o único rumo livre. Sussurrava tão suave, em tons de resposta e consolo, que percebi a pergunta minando pouco a pouco na voz vaga do peito. Por mais que eu não soubesse qual era a interrogação, o imenso de mim disse frases feitas de um suspiro – e o corpo sentiu o lodo que saía dos poros.

Um astro surgiu no alto, secou a terra molhada, o sal tumultuou minha língua, turvou o gosto da lama – e pedras de um deserto brotaram então afiadas como flores sem vida.

Me vi de areia e dor jogado no infinito, rastejando em direção a uma luz distante. A boca já saturada era carne e mosca sem qualquer distinção entre presa e predador.

Os pontos ao meu redor não inspiravam nascer senão pelo couro gasto, de rugas, mapas e vales, que um lagarto exibia fora de sua toca. Tinha um ar de esfinge na simulada estátua daquela sua aspereza.

Movi os tornozelos para que os joelhos apoiassem os metros que haviam de ser vencidos palmo por palmo. Então um riso impreciso que não se sabia grito, corou meu rosto de fome – mas com felicidade.

Pensei transitar cidades, interiores, divisas – e quando a escuridão caiu por cima daquilo, olhei para trás o nada que havia percorrido.

Foi coisa de lua, eu sei. Não cruzo mais limites. Não presta colher verde o que se come vermelho. Eu devia ter freado o que me tomou inteiro. Se fosse assim não teria despertado desse jeito. Não teria corrido, esbarrado no sofá para ver no espelho aquele que sempre fui. Não teria depois me flagrado com o que agora devora o sossego que persegui. Mas não adianta remorso – e tudo já transbordou nas nuvens que sangram mais um amanhecer.

A água, a falta dela, o fim lado a lado, a dupla monotonia de pequeno intervalo, cobriu com um sonho aquilo que eu escondia nas penas do meu próprio leito.

Como pode ser possível a minha maré virar os corais de um repouso? Como pode a represa de repente ceder ao peso de uma visão?

Nem sei se existe resposta. Então me sento e calo nesta madrugada pouca sorvendo quieto a mágoa na bomba do chimarrão.

Talvez meu engano todo não passe de um respingo, de uma toada fraca em meio a todo esse caos. Mas quis me encontrar promessa em qualquer desejo meu e não divisei os vãos daquilo que realizei.

Então meu sonho é vida, minha condição de fim – e só posso erguer este muro com minhas velhas lembranças que silenciam minha voz pela garganta da noite.

Um comentário:

Canteiro Pessoal disse...

Hum... acabo de redigir meu trabalho, o término tão esperado, e, que delícia agora no ler seu escrito. Cada letra imprime um ar letral em meus dedos, confesso que ainda em desalinho, mas concerteza durante a semana sairão do estado verde. Minhas madeixas ficam em grande desalinho agradável [como amo esse desalinho em minhas madeixas]e isso me acorda para o mais, no melhor que está por vir. Ah... a bússola, o aquecer do meu sangue em doçura e o amolecer da dureza do meu âmago, em que a minha direção depende de ouvir o silêncio. A voz e o olhar do que me silencia e rompe em meu íntimo as fronteiras do que o "eu" perverso e tão umbilical opera.
A minha memória traz o inspirar e expirar. Aspiro. Transpiro o que trago em minha pele retinal no encontro de um dia que muito me foi revelado e que continuas uhhh... sendo revelado e mexido. Transbordar de óleo renovável que muda o meu modo de ser, olhar e viver. Pra que a tinta que escorrer, não borre o papel, mas polvilhe na noite, as estrelas que crescem e pintam o lindo. O caminho escondido que acende nos braços. Lugar que é tão intenso, e nenhum lugar é melhor do que este, isto é o que se ouve. [- Tu ouves ?]Como madrugar é delicioso, pois meu olhar dorme no ombro letral que aconchega e é luar mesmo na madrugada fria. As gotas colam-se ao vidro da janela do quarto. Pingos que anunciam aquecer mãos geladas. [- Tuas mãos estão ainda frias ?] Onde apagar as luzes denota o acender da que permanece ontem, hoje e sempre acessa. Percebas, lá fora, a chuva escorre lenta tão somente para aquecer seu andar. Medo, anseio, desejo... hum... ele, moço, no beber pequenos goles do vinho tinto suave, e, acender galopante aos espaços opacos e sepultados. Calor que percorre labirintos das veias e do pensar. E começa abrir pastas antigas, e encontra escritas que já faz lembrar o retorno hálito vival [sabes], este não cruzar mais limites, pois és ilimitado, intraduzível. O viver de um espetáculo imperdível no corar de seu rosto.Como arrepia e absorve cada poro a pergunta, "nem sei se existe resposta", resposta que canta na pele da retina. A pele íntima do toque e que não existe hora ou estimativa de tempo, mas o dom em forma única de conquista e a arte de conhecer o sabor. [- E que sabor !]

- Será que posso saber o gosto desse sabor ?

Amei e amei seu post !

Vou término por hora, acho que me empolguei.

Beijos mil querido Eduardo.

Priscila Cáliga