segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Hoje é dia vinte e nove de dezembro e daqui quarenta e oito horas acabará o ano de dois mil e oito.

O entardecer é cor-de-rosa e ainda faz calor. Hoje é dia vinte e nove de dezembro e daqui quarenta e oito horas acabará o ano de dois mil e oito. Se existem expectativas para o ano de dois mil e nove, creio que as mesmas começaram no início deste ano de dois mil e oito. Mas entre falar de expectativas e falar do que estou pensando deste entardecer cor-de-rosa, prefiro uma terceira alternativa.

Então irei contar uma história.

João era uma menino de uma perna só. Nascera assim e quando o médico vira que nem o toco da perna ele tinha, falara para a mãe:

- Olha, vai ser complicado ele viver desse jeito.

A mãe, ainda nas dores pós-parto, meio arrebentada da barriga pra baixo, apenas olhou pro médico e disse:

- De qualquer modo é complicado.

E assim João foi crescendo.

Quando completou cinco anos, seu pai cujo nome é desconhecido lhe deu de presente uma perna de madeira. Era uma perna rústica, havia de admitir, e logo de início algumas farpas da madeira lhe cutucavam a outra perna causando imenso incômodo a João. Em todo caso, porém, já era alguma coisa ter uma perna de madeira ao invés de uma perna só, sendo que antes desse protótipo que ganhara do pai, João andava era se arrastando mesmo.

Na verdade ele até gostava de andar se arrastando. Com a cara quase colada no chão, via coisas que outras pessoas jamais teriam a oportunidade de ver. Via a forma das formigas e das baratas e cada rachadura do piso ele também via. Havia tardes de janeiro nas quais ele gostava de ficar analisando os vincos entre as lajotas para comparar se os vincos da lajota da direita eram simétricos aos vincos da lajota da esquerda. E assim esquecia que o sol brilhava e que na praça em frente a sua casa as crianças iam para cima e para baixo na gangorra que o Vereador Nelson instalara no inverno passado.

Quando João ganhou a perna de madeira do pai, o pai lhe disse, aliás:

- Filho: essa perna sou eu que estou te dando, mas tu tens que agradecer pro Vereador Nelson que mora lá na Zona Leste, porque se não fosse ele eu não teria emprego e aí não poderia comprar essa perna. Por isso amanhã nós vamos lá. E vamos à pé, só pra provar pro Vereador que a perna de madeira agora te faz uma pessoal normal.

João achou a idéia estranha e pra falar a verdade não compreendeu direito qual era a intenção do pai ao querer caminhar até a Zona Leste com o filho. Conhecera o Vereador Nelson da janela do seu quarto quando ainda se locomovia rastejando. Vira ele fumando um charuto gordo e colocando seus dois filhos, um mulatinho e um albino, em cada ponta da gangorra no inverno passado. O povo ao redor aplaudira mas João não compreendera ao certo a intenção da gangorra e nem mesmo a euforia do povo. Talvez agora que tinha uma perna de madeira as coisas poderiam ser diferentes. Mas isso era história para outras histórias, porque agora ele tinha que pensar que teria que andar até a casa do Vereador Nelson junto com seu pai.

E assim ocorreu.

Quando chegaram na casa do Vereador Nelson, o dito estava sentando na varanda branca com um charuto gordo no canto da boca. João lembrou que o charuto era da mesma cor do charuto do dia da inauguração da gangorra e até achou que aquilo bonito, porque o charuto era da mesma cor da cara do Vereador Nelson. Contudo preferiu não mais pensar nisso porque não gostava muito do cheiro do charuto.

- Agora sim és um menino normal! – disse o Vereador abraçando João e apertando suas costas na altura dos suspensórios pretos e novos que a mãe comprara justamente para aquela visita.

- Sim, doutor! – disse o pai. – E graças ao senhor agora ele é um menino normal!

- Graças a mim não, meu caro! Graças a Deus! Quem fez isso foi Deus!

João tentou sorrir mas não conseguiu. Os cabelos pretos lambidos com brilhantina, coisa que a mãe fizera especialmente para a visita, eram o motivo do fato de ele não conseguir sorrir. Porém, como sentiu o pai lhe dar um cutucão nas costas, forçou um “obrigado” e um riso em colchete pra não ter que ouvir desaforos do pai no caminho de volta pra casa. Afinal, a Zona Leste ficava a quarenta quarteirões da sua casa e não queria ir da casa do Vereador Nelson até sua própria casa tomando esporros do pai, considerando que se a perna lhe incomodara muito em todo trajeto até ali, com esporros a coisa seria pior ainda. Mas como o pai disse que ele tinha que ir à pé até a casa do Vereador Nelson, ele apenas obedeceu e foi isso que ocorreu.

Na volta pra casa João se sentia diferente. O “graças a Deus” do Vereador por algum motivo ficou soando na sua cabeça. Quando estava se aproximando de casa, olhou a gangorra pintada de vermelho e azul e viu que a lua já nascia lá por detrás dela. Achou aquilo bonito mas logo lembrou que tanto a gangorra quanto a sua perna de madeira eram presentes do Vereador Nelson, e por alguma razão isso lhe deu uma enorme tristeza, já que apesar de ser o pai que comprara a perna de madeira, a razão de tudo era o Vereador, e isso ele tinha claro pra si.

Durante o jantar decidiu não comer a sopa de beterraba que a mãe havia feito especialmente pra ele. Sempre gostara de sopa de beterraba, mas naquelas condições, com aquela perna de madeira que tinha farpas raspando na sua outra perna, não sentia a menor fome. O que lhe passava pela cabeça era o fato de que ano após ano teria que remendar a perna, pois afinal iria crescer. E isso de ter que colocar tábuas e mais tábuas na sua perna de madeira até que enfim sua perna normal deixasse de crescer, trazia uma completa falta de ânimo a João, pois no final das contas seria um trabalho completamente inútil.

Quando todos foram dormir e ele estava só no seu quarto, já sem a perna de madeira que tirara para conseguir pegar no sono, decidiu se arrastar até a janela e abrir a mesma bem devagarinho. Quando abriu notou que era uma noite clara, e que apesar do calor não havia ninguém na rua naquela hora que poderia ser nove ou dez da noite. Lá mais adiante, na praça em frente a sua casa, a gangorra que o Vereador havia dado a comunidade permanecia parada em seu azul e vermelho foscos à luz dos postes amarelos. João sentiu vontade de ir até lá mas não vontade de ir até lá com a perna de madeira que ganhara: sentiu vontade de se arrastar até lá.

E foi isso que fez.

Cuidando pra não fazer barulho para o seu pai que dormia em uma rede no meio da sala, ele rastejou pelo corredor, passou pela cozinha, abriu a porta com mão leve e logo estava na rua. A calçada estava gelada mas o calçamento da rua ainda estava quente. Ele nunca reclamara dessas sensações. Até gostava de saber que se por um lado as pessoas andavam com duas pernas, ele andava com todo corpo, pois isso lhe dava o privilégio de sentir coisas que ninguém jamais chegaria a sentir. E sentindo o calçamento quente que entrou na praça e ficou parado diante da gangorra vermelha e azul.

Sabia que mesmo sem uma perna poderia subir em uma das pontas da gangorra. Entretanto, certamente ficaria no chão e mais nada, já que teria de haver outra pessoa na outra ponta para o efeito da gangorra se concretizar. Como não havia ninguém, intuiu a falta de nexo da sua jornada até a gangorra e com algum pesar se arrastou em direção a sua casa. Quando estava quase atravessando a rua, com o rosto um tanto manchado de terra e grama, uma caminhonete passou em alta velocidade e atropelou João. Certamente o motorista pensou que fora um cachorro ou algo do tipo porque não fez a menor questão de parar. Contudo ele atropelara João, o qual, antes de morrer, olhou uma última vez para a gangorra vermelha e azul e lembrou das palavras do Vereador Nelson:

- Graças a mim não, meu caro! Graças a Deus! Quem fez isso foi Deus! – e isso lhe soou completamente sem sentido, porque fora ele quem quisera atravessar a rua para ver a gangorra na praça em frente a sua casa. Além disso, o pai só era empregado da prefeitura por causa de um concurso público e isso não tinha nada a ver com o Vereador Nelson ou com Deus.

Só foram encontrar o corpo morto de João no outro dia pelas sete da manhã. E foram os lixeiros que o encontraram. O pai, quando ficou sabendo do ocorrido, lamentou o fato de não ter chaveado a porta que dava pra rua, pois caso contrário João não teria saído. A mãe, que sempre fora uma figura quieta naqueles cinco anos de existência de João, dissera para uma rádio local que aquilo era muito complicado e só. O Vereador Nelson lamentara o ocorrido e pronunciara um extenso discurso no funeral de João, o qual, contudo, ninguém conseguiu escutar por conta da chuva forte que caia no telhado de zinco da funerária. O enterro de João se deu na manhã seguinte e hoje ninguém mais lembra dele naquela rua.

Permanece, porém, a gangorra vermelha e azul, a qual hoje talvez esteja iluminada por este entardecer cor-de-rosa do dia vinte e nove de dezembro de dois mil e oito. Se daqui quarenta e oito horas apenas uma pessoa subir em uma das suas extremidades, nada adiantará, pois são necessárias duas pessoas para que a brincadeira se dê, para que o efeito da gangorra se dê.

Ninguém vive sozinho e para isso não há alternativa.

Essa é a condição e também a história.

(P.S.1: A tela de hoje é de Edward Hopper.)

Nenhum comentário: