sexta-feira, 12 de março de 2010

O NASCIMENTO DO CIDADÃO.

Quando no Brasil se deu o parto da República, do seu ventre, décadas depois, um homem foi expelido sem vida. Nasceu nu, como todos. Mas por questões éticas, arranjaram-lhe um macacão azul. Ninguém ao redor teve ânimo para reanimá-lo. Não era conveniente. O temor por um coração que pulsa é maior que o medo por um coração que pára.

O Cristão que estava ali, versado na engenharia das mais belas torres, disse que, em nome de Giordano, o Bruno, deveriam conservá-lo em formol. “A eternidade da carne só num pote de vidro se dá!”, emocionou-se teomante e mescalino. O Moralista, mais ao lado, clínico das sangrias infalíveis, falou que aquele homem serviria, qual mito teofobista, de exemplo para todos os homens: “Sua roupa será a bandeira de toda gente de bem.”, profetizou costumado e sério pela poeira da romanidade. Mas o Democrata, ao centro, gravura de reta conduta, emudeceu em princípio, apesar da grande expectativa daquele ar de tabaco.

Pediu sussurrante ao garçom um pote grande o suficiente para que o homem coubesse e fosse lá conservado. Encomendou duzentos e cinqüenta litros do mais limpo formol para que o homem ficasse acomodado e visível em seu macacão azul. Convocou as lupanares para uma conversação que não se deu e escreveu em letras garrafais quais seriam as regras para que o homem resistisse aos séculos. Sem qualquer manifestação das vozes ao redor, também decidiu que aquelas regras deveriam ser impressas em letra miúda imediatamente, colando-se as mesmas no pote do homem imerso no cristalino líquido dos seus amanhãs.

Ecce homo!”, entoaram trezentas laringes ao contemplar a bela natureza morta em cima da mesa. Mas quando o Cristão, o Moralista e o Democrata perceberam que a República, à Príapo amordaçada, desfalecia perto do balcão, intuíram que algo faltava ao homem. “Se até Jesus dos Magos ganhou presentes, também merece nosso homem algum.”, especulou o primeiro. “Mas que presente se dá a um natimorto?”, enervou-se o segundo, privado das Traças de Lácio.

Fez-se então um silêncio de trinta minutos. Nenhum olhar sabia como presentear o homem do pote de vidro. Heranças longínquas rebuscavam suas mentes e tudo quanto podiam fazer era se inspirar na cachaça. O pote continuava aberto. Faltava, antes de fechá-lo, um toque que dissesse da identidade daquele homem cercado de letras miúdas, morto filho que fizera da República mãe, ainda que o genitor chamado M. houvesse partido para as Terras do Norte há vários anos.

Foi aí que o Democrata, exegeta do torno de Coimbra, lembrou de uns papéis que viu em França e de umas chaminés que em Londres o encantaram. Igualmente lembrou da escultura de um Olho que vira às portas de uma viagem que fizera ao interior da grandiosa América de Washington, apagando imediatamente, por não convir, tudo que um calvinista lhe dissera. Num clarão que reuniu as faíscas do seu cérebro na mais performática luz, percebendo a rigidez verde-amarela da República de pupilas secas, enfim pronunciou: “Dar-lhe-e-mos uma brilhante coroa dourada para que o pote seja fechado. Providenciaremos réplicas de cera desse homem e espalharemos tais potes por todo nosso território. Serão a base e o modelo para o povo. A República, que jaz sem expectativa de coito há quatro horas e meia, agora chamar-se-á Estado. E dessa soma ptolemaica, soberano, surgirá nosso Estado-Nação!”

Os aplausos ressoaram pela madrugada tropical. Copos foram lançados ao ar e vestidos, antes presos às ancas das moças da casa, caíram aos eretos desejos presentes. Porém, o Moralista se deu conta de que faltava mais alguma coisa. “Toda coroa representa majestade. Temos de dar um nome a essa coroa.”, falou dentre lufadas de fumaça presas pela boca que lhe sugava a língua. “Estamos a trazer a Cidade de Deus para o cá dos homens. Estás certo: precisamos de um nome para a coroa.”, inquietou-se o Cristão à Agostinho, escondendo-se da carne cada vez mais nítida na sua batina marrom.

O Democrata, famoso por suas cantatas gregas de direito e justiça nas cadeiras de tantos boleros, havia esquecido o óbvio. Enovelado por seu discurso de passados, o adjetivo da coroa havia lhe escapado ao Verbo, fiat lux do porvir. “Chamar-se-á Coroa do Voto. Sim: seu nome será A Coroa do Voto.” “Mas e o nosso homem que nome terá?!”, gritou de espasmo uma mulher nos seus vinte e dois anos, com a anágua pela cintura e um outro alguém por cima. O Cristão fitou o Moralista que cerrou as pálpebras para o Democrata. Restou a esse a resolução daquela noite histórica: “Seu nome será Cidadão.”

O que se passou depois, dizem, não foi nada demais. Tratava-se do Brasil. A expressão que trouxe o sol para a festa que seguiu, até hoje é estampada na testa de cada homem que aqui nasce vivo ou morto: “Deixa estar.” Seu autor, desconhecido estrangeiro de Alexandria, perdeu-se no vinho interminável – e naquele prostíbulo tudo permaneceu imune ao tempo. Mas um grave erro adveio dessas brincadeiras de salão: esqueceram de fechar o pote do Cidadão.

5 comentários:

Biba disse...

Eduardo, muito interessante esse texto. Versar assim sobre política e democracia de um modo inovador em muito me agradou.
Viu que recoloquei seu blog entre meus favoritos? Foi aquela parada que você deu que me fez tirá-lo de lá. Agora está no lugar certo.
Beijos
Carpe Diem!!!

Eunisia disse...

Excelente texto. Parabéns pelo trabalho escrito realizado. Metáforas bem colocadas e extremamentes curiosas.
Abs
Eunísia

tagg disse...

trocamos palavras como olhares de esguelha, com algum cuidado e interesse. bom vê-lo novamente, também. bjos!

ANGELICA LINS disse...

Gostaria que soubesse que há algum tempo comecei a ler-te. Sem nenhuma pressa, li cada uma das suas postagens... Parabéns pelo blog!!! Não demore a postar, sinto falta quando não aparece.

Boa Páscoa!
=)

Anônimo disse...
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