sábado, 24 de abril de 2010

ESQUECIMENTO DE CHUVAS.

As desculpas esvaeceram assim que olhou o oceano e percebeu em todos os faróis abajures. As coisas tomavam um alcance diverso, como sonhos que se materializam em água descendo pela corrente com as ondas que as algas traçam nas pedras. Pressentiu a voz do filho subindo a escada. Seus passos eram o silêncio cerzindo fissuras vermelhas.

Cada abraço tomava o rumo dos seus propósitos. As ruas, os parques, os lagos que freqüentava surgiam a todo instante sob seus pés, pairando indecisos diante da consciência espiral dos pensamentos sepultada por símbolos de razão.

Sufocar aquele feixe era loucura.

Era hora de aceitar, assinar palavras com a letra miúda que desacreditava, endossando o engano com a tinta que emergia. Deixar de lado essa decisão não fazia sentido algum. Podia sentir a pele e ouvir sua respiração pausada dentre casulos de sonho maculando seu dorso tingido. A maquiagem dos lábios, das sobrancelhas, os poros de cada milímetro da face bastavam para convencer de que a vida, culpada pela calma e pelo fracasso, encontrava-se naquela sensação, sorvendo o desespero amanhecido do cinzeiro transbordado.

Os espelhos finalmente perderam seu fundo raso. Podia sentir o toque brando da inocência envolvida pelo líquido que lhe enchia a boca. Tudo aquilo não apenas orbitava seus cabelos, mas dava ao futuro a impressão plena de um campo desconhecido, repleto de manchas lilases: gramado que cegava e duplicava sua extensão no momento em que era fitado. As torres eram erguidas pelo rubor violeta das veias, contornadas por algum circuito de folhas e outonos até então lapidares, emudecidos por epitáfios de uma língua amordaçada.

Precisaria filmar, registrar aquilo para que outros pudessem sentir o que lhe fez escorrer abaixo do pensamento. Mas era algo demasiado íntimo para ser compartilhado, resignando-se ao consolo da transformação parcelada pela memória.

Não interessava o crédito que lhe concederiam. Não importavam as taças que ergueria, os corpos que beijaria ou o que suas mãos tocariam com aquela descoberta. O mergulho valia mais, bastando o salto completo para que os olhos mudassem, verde ao azul, cindindo espelhos com sua luz perolada.

Sabia que o salão se estendia além da vista e que o vinho descia pesado até o estômago para que a magnésia tivesse motivos. Mas a doença nos lábios continuava sendo a ressaca de uma exceção, dos risos na madrugada de domingo enquanto decidia aquilo que almoçaria.

Não havia beleza na privação, não havia vitalidade na perda e nas desculpas. O que havia era o resto, o refugo, o refluxo do lixo do fracasso – andar pelas calçadas querendo ruas, desejando rodas por cima dos ossos: vidas ao caos, vidas ao limbo de cada manhã e relógio, tudo consumindo o vômito preso nas frestas do corpo, decidido a tornar-se sangue quando engolia o gosto da derrota.

Quando o chamassem para alguma festa, diria que preferia dormir. Diria que o dia afetava sua pele fazendo surgir espinhas pelos cílios. Fecharia a porta a quem pedia sua presença pela mera formalidade de estar. A verdade só existia no abandono, na flor da janela mais alta morrendo em esquecimento de chuvas.

Esse cheiro de profundeza agora não mais lhe mataria. Essa placa de aço que construíra, permaneceria intacta como o ventre da mãe, como o irmão que não nasceu, como a interrupção dos dentes no suco da fruta. Esqueceria da imagem que um dia fez de si. Sabia que a espiral se alongava pelo ralo.

Em porções sem forma, as folhagens perdiam cor. Resumiam-se a exercício esquecido, relampejando as paredes da sala. O retrato ao lado, as torneiras negando o petróleo e suas mãos trêmulas de nicotina disfarçavam a solidão imensa do oceano violáceo, invocando razões para a desrazão na plenitude do que podia imaginar e lembrar.

Mas não adiantava falar. Tudo que saia de sua garganta era mera formalidade para ganhar a vida. Ninguém estava interessado.

O que havia eram olhares vidrados em cabeçalhos e rodapés repletos de nomes mofados, suando anfetamina na saliva de alguma teoria.

Tudo denunciava a verdade paliativa de uma região natimorta, estirada inconsciente na cama de um bordel para que a fila de clientes aumentasse em sua mortalha azulada. A revolta jamais ocorreria fora das palavras e não passava de um engano da idéia, de uma lógica furtada de humildade, imersa no barro que cruza por baixo das pontes.

E mesmo assim continuaria.

Respirou um gole de café e seguiu o curso dos riscos no quadro, da sistematização cruel e fria de conceitos que não eram seus. Quando a hora chegou, foi embora pela mesma rua. Tinha vergonha. Estava condenado a viver consigo naquele lugar.

Restava contentar-se com obrigações e com a permanência da ignorância feliz em cada rosto bem arrumado. Talvez mulheres fossem consolo se houvesse compaixão pela inutilidade do corpo. Mas estava na terra das noites úmidas de gritos e prazeres, o que rasgava qualquer possibilidade de esperança longe do delírio do luto.

Isso bastou para que uma tranqüilidade de olhos discretos chegasse até ele.

Havia qualquer coisa de absoluto em seu contorno. Talvez fosse rímel, talvez o som da retina perturbando o silêncio do Cosmo. Ouvir sempre lhe parecera uma profanação da realidade, onde o próprio fato de respirar e não se encontrar no vácuo era uma prova dessa violação.

Só aí, no ponto final que deveria atingir, esticou os braços para a ausência de segredos no vórtice daquele que fora. E o esquecimento que desejava sugou-lhe pelas encostas, calmo e castanho como o solfejo das nuvens pelas redes submersas na previsão do passado.

Crédito da imagem: Fotografia de Marcos Villas Boas.

4 comentários:

Anônimo disse...

A suavidade da forma desvela um conteúdo profundo, denso.
Belo texto!

Biba disse...

Divino. Nem quero comentar, apenas agradecer por algo tão belo.

Beijo
Carpe Diem!!

Laís Grás Possebon disse...

Inefável... Amei, amei, amei... Não me canso de ler.

Jéssica disse...

Achei seu blog de maneira aleatória, não me recordo como, mas parei para ler. Li e tive a impressão que deveria ler novamente. Gostei de seus escritos e da forma como trabalha a palavra. Esse texto por exemplo, sua verborragia é incrível.