quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

CINCO FACES DE UM ENTARDECER.


Dedo na lâmina dos dias. Língua no gume das auroras. Vidro no tapete do destino. Face ao quebra-cabeça do espelho. Rastejando, carne e osso, chorar lágrimas que abrem garimpos nas cavidades do olhar que perdeu a si mesmo na distância que de si o separava. Nada virá: o pássaro continuará com os órgãos de suas asas por sobre ramagens e abismos que de longe parecem chama, mas são joelhos afiados por pedras e junções. Pouco esperar a não ser raios refletidos na terra. Vapores indizíveis maculam certeza e descaso. O indicador alheio é mais que solidão ou imagem narcisa. Desarmado, impressentido em pêlos e sêmen, beija feridas e sorri, eliminando a sombra dos passos na enxaqueca do presente que a tudo consome e confunde.


Extremo em declive e fosso. Mas também extremo em braços que batem o vazio das águas. “Pra onde?”, é a voz de alguém antecipando fatalidade. E na gangrena que queima, algum olhar no horizonte de plano e linha. Se nós e sedas irão cruzar um com o outro, não sabe. Se queixas podem ou não afetar futuros, não faz idéia. Bolores do tempo não pernoitarão seu sono. Trovões continuarão. Haverá prédios, ruas, riscos e satélites. Nas cócegas dos pulmões, arejados por culpa inocente, permanecerá. No peito somente estrelas do mar.


Caso, acaso: planície tenra de costas tortuosas. Caules dentre caules no vigor de cordas que massas criam. Juncos de lama e viço na fissura das pedras. É lilás a copa que vê. O pássaro é um quase-caminho para o que não sabe. Alça morada ao infinito que teme. Um fio mínimo sustenta a argamassa do entardecer. Cala com naco úmido o que era puro banho em seus cabelos. Assusta a pena que coça e já se duvida ciente. Mel não lhe escorre nem aspira velhice de dias e fumaças. Apenas ônus de um frescor furtado. Baforada infantil que logo passa.


Brilho. Lustre. Manchas cor-de-fome no corpo do desconhecido. Nos dias festivos ou quando há parafina, um canal do acaso pretende flores vermelhas altivas e orvalhadas onde só musgo verde e escorregadio pode nascer. Escada de nuvens modulando o eco de troncos agora tolhidos. Acena náufrago na torrente do asfalto. Cruza o areal da rua em incompletude que ofusca. Sombras correm por corredores de casas que não mais são. Calcam óleo e querosene em toda madeira que tenha intenção ao longe. Réstia de vela e música de alguma estrela ou planeta. Amnésia e cura que a tudo responde. Portanto vá mas volte, pois aquilo que alisa e limpa pode cair nesse exato delicado toque.


Brutalidade e chama. Esparrama atalho fugaz. Insinua farol do nada na certeza da lenha. A intenção da imagem pela imagem não se alcança. Mas algo gritou quando todos dormiram. No murmurar rouco de uma fonte avessa, soletrou luz negra de um passado calcário no mosaico das constelações. Beleza na curva de um rio de saliva, suor e sangue. Quando sonhou, divisou no silêncio o lamento da foto viva na lareira da sala. Seria imprecisão áspera e verídica de um beijo impossível. E seria homem: lâmina, fosso, acaso, lustre e chama de entardecer.

Crédito da imagem: Fran Setim, foto simples feita de um telhado. Ao entardecer, ouvindo Beethoven. “Beethoven é crepuscular”, diz ela.

12 comentários:

Anônimo disse...

Vou roubar aquele pedacinho das estrelas do mar que habitam o peito. Morri de achar lindo!

Ana Valeska Maia disse...

Quando leio teus textos sempre sinto um transbordar. São intensos, viscerais, febris como um jorro poético. Sigo o fluxo: entrega. Em cinco tempos entardeço, anoiteço e amanheço. Não consigo te ver imerso nos agravos. Sempre te vejo poeta.
Completamente dionisíaco!

Luiz Otávio Ribas disse...

O Warat é realmente um cara inspirador para qualquer estudante de direito. Bom saber que cada vez mais o espaço dos blogues está tomado pela ludicidade.

Luiz Otávio Ribas disse...

Pensa numa postagem especial para o nosso blogue que a gente publica.

abração

m. matos disse...

achei lindo o texto. um trabalho com a palavra que não quer ser correta, mas sensível.

adorei o espaço. não compreendi por inteiro o nome.

e é lindo. não penso, sinto.

gloria disse...

Eduardo,

Não se pode passar por aqui como quem segue o tempo entre chegar e ir. Passar por aqui significa morar. Eu tenho quase estado plantada nesse lógica, vertiginosa, do movimento que não se fixa. A arte afrouxa assim, e fica entretida lá por um baixo, um lado, uma caverna ou uma ausência. Não é fácil ter algum grau de lucidez e estar na condição de Secretaria de Direitos Humanos de uma capital noredestina. O medo do outro, o preconceito, os guetos, as cancelas, os individualismos povoam o coração/corpo de homens e mulheres. eu sinto. tentamos tecer políticas mergulhando em dobras de subjetivação, em trilhas imaginárias. Claro que todo o Sistema de garantia de direitos deve ser acionado, articulado, matriciado. isso é só o óbvio. O desafio é de um outro lugar, de outras cartografias.

As "cinco faces" dizem do poeta "em carne viva":

"Portanto vá mas volte, pois aquilo que alisa e limpa pode cair nesse exato delicado toque".

Do homem que borbulha. Eu aprecio daqui e não quero te perder de vista. Mesmo que nuvens de ocultamento nos envolvam.

bjs

tagg disse...

senti saudade de interlocutores antigos - e, veja bem como é o nosso tempo, já somos velhos conhecidos. e continuamos muito parecidos com o que éramos: um assovio daqui, uma ópera de lá, ou o contrário. valeu, mais uma vez.

Moni Saraiva disse...

Um entardecer tão grande que mais me pareceu vida inteira.
Se parar pra pensar que pode se viver toda uma existência sem perceber isso, chego a crer que a maioria de nós nunca "viveu" um entardecer.
Mas agora é noite. E mal posso esperar para ver com olhos virgens cada minuto do dia de amanhã.

Grande, Eduardo. Você e o que escreve.

ítalo puccini disse...

maravilhoso, meu caro.

parabéns pela força das palavras.

abraço.

Laís Grás Possebon disse...

Muito lindo!

Anônimo disse...

Tudo isso para dizer o que especificamente?

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Para dizer especificamente o quê? Também não sei, Caríssimo Anônimo, do mesmo modo que não entendo porque ainda não tacaram fogo em todos os museus e livros do mundo. É tudo inútil, não é mesmo?