sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

RÉQUIEM PARA UMA NOITE ESCURA.

Repousa em ti revolta incandescente. Em ti crescem veias passadas. Faces passeiam teu corpo em procissão de dor e prazer. Frases ressoam poros em paredes de ontens indetermináveis. Estampa dos pêlos teus, dourados por um sol impressentido. É disso que falo. Há doçura na morbidez do presente, mágoa no riso que medeia caninos. O marrom da terra, da pedra, persiste entre a saliva que molha a boca descendo pelas entranhas. Lá fora vento, talvez silêncio de cada oportunidade. Passa uma lembrança de sol desprovido de luz, de lua desprovida de noite. Andas entre pessoas, reconhece a própria face na janela de uma casa e perguntas: “quem és?” A resposta é a veneziana fechada e um violino do lado de cá. A única permanência é essa: fetiche que tua voz pensa erotizar, crer além da crença, amolda cada falha que entreabre tua angústia. Quem sabe esquecer anos e calendários fosse recomeço. Não é apenas tato deslizando futuro, desviando caminho. Sondar com mãos suaves, estancar a respiração insone de todo negrume pressentido e silenciado. Não basta o desejo furtado da palavra. Não basta a fala que brota da antipatia de sentir. Uma encruzilhada de sorrisos traçada diante do medo. Sem novo mapa, união entre metria e carbono de olhos, a veneziana continuará fechando-se tarde após tarde, ocultando a partitura, razão do violino. Essa luz que ilumina tuas mãos é uma pista. Esse ar úmido que enche teus pulmões traz consigo o caminho. Tuas asas serão alimento para a rocha tingida pelo vermelho dos teus propósitos. Quando estiveres na altura da nuvem mais negra, um pássaro cruzará ao lado e dirá do erro de percurso. Será tão exato quanto o projeto das tuas asas. Distante da grama cairás. Ao lado, o gris do vôo manchará cada pedaço dos teus ossos, soletrando o único ofício que cabia à madrugada. Levantarás e sairás de casa. Cruzarás janelas sem se dar conta dos desfiladeiros. Insciente, novamente perguntarás: “quem és?” A resposta, antes música, freará perto de alguém que cruza na esquina para tatear um grito oco no asfalto quente. Um cemitério surgirá. Num ponto mais alto, feito de ânsia lúgrube, lápide após lápide, coluna após coluna. Por cima um véu de poeira cobre tudo e ficará maior quando teu queixo estilhaçar os vidros da infância. O veludo não será tua segurança e teu pai terá de te carregar nos braços, com o recalque dos olhos fazendo fronteira entre qualquer expectativa futura e presente. Mas crescerás, ganharás mais cicatrizes e passarás várias noites em claro. Dentro de alguns cadernos e no imã de alguns lugares, pedaços de carne furtadas de escuridão esperando reconhecimento. Essa carne brilha dentro de ti. Do sonho rebentará grandezas feitas de lã, rochas e rios. Do sonho tu sentirás a textura do mundo entrelaçando o teu. Essa pele, consciente de intenção, provará da magia de ser ontem, hoje e amanhã no único lugar destinado. Descerás escadas de sonho, verás um espelho cruzar às pressas sem dar conta do surdo apelo que vinha da tua garganta púrpura. Perguntarás: “quem és?” Mas a velocidade será ágil e doce, sepultando luz no coração dos sóis. Tua estrela nascerá, pulsando dentro e fora de ti a florescência da claridade em pétala e chama.
Crédito da imagem: Egon Schiele (1890-1918), pintor austríaco.

11 comentários:

Eunisia disse...
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Eunisia disse...

A angústia, a doçura, a mágoa, o silêncio, as lembranças,o contestável, o aprazível, os sonhos e a esperança serão conteúdos das nossas máscaras? Mística do ser!!! Será os nossos verdadeiros eus?
Eunísia

pensar disse...

Que delicia te ler novamente. Tua escrita tem carne e terra vermelha, apoderando-se das nossas emoções.
Um grande beijo Mari

Ana Valeska Maia disse...

Muitos caminhos podem ser traçados em uma noite escura.
Embarquei na viagem!
Degraus, curvas, estradas, metamorfoses comprovando que a luz precisa da sombra.
Bjs querido!

Duarte Pinto disse...

Apesar de sua muito curta vida (afinal, ele morreu com 28 anos), Egon Schiele se confunde com toda a vaga expressionista da Áustria. Sempre com o dedo acusador em direção a uma sociedade corrupta, Schiele teria em Oscar Wilde um par na literatura. Na música, eu estaria tentado a apontar Handel como uma espécie de precursor, ainda que em mundos muito distintos. Não tendo sido um inovador nato nem tão-pouco um revolucionário, Handel era muito viajado e deixava transpirar essas influências em suas composições. Por qualquer motivo, vendo essa gravura de sexualidade latente de Schiele, não consegui deixar de pensar em Handel. Olha, fica o desafio: dá uma olhada nas rádios desse site para ouvir música dele e concorda ou discorda do que eu escrevi
http://cotonete.clix.pt/

Unknown disse...

Eduardo, esse teu caminho literário intenso, que tensiona cada palavra, cada frase, cada passagem, é árduo, mas gratificante. Foges do ramerrão das falsas facilidades. Vejo que procuras sempre e não te dás trégua, como todo criador deve ser. Admiro teu trabalho desde o primeiro instante e sei que ele vai continuar firme, cada vez maior. Pois sei que terás cuidado em não deixar que a palavra se esvazie, ou que a alma do texto seja substituido pelo jogo de palavras. Tens longo caminho pela frente, forte presença ao redor. Gde. abraço.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fábio Salses disse...

Eduardo,é intrínseco a tua pessoa enquanto escritor essa densidade textual,que ao mesmo tempo em que não nos deixa respirar,sopra um ar fresco da beira de um calmo mas profundo açude,em uma noite estrelada.Retomada enm grande estilo.

Marcelo A. de Moura disse...

Eis que eu volto aqui para admirar teu trabalho. Encontro uma narrativa angustiante, confusa... Exatamente como deveria ser (eu acho). A personagem clama por isso, eu a compreendo em meio a esse caos de palavras, significados. E por compreender, eu tenho a sensação de que tudo faz sentido e está interligado no texto. Muito bom

Moni Saraiva disse...
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Moni Saraiva disse...

E que bom retorno...

De cara, me veio Leminski:
"Haja hoje
para tanto
ontem"

E depois esse teu passeio pelo tempo, que ora confunde, ora deixa clara a possibilidade de ir e vir, de refazer, de escolher outro caminho. Só que às vezes fincamos pé nas mesmas perguntas, com a mente fechada para a possibilidade de outras respostas, diferentes das planejadas ou ilusoriamente construídas.
Um bom caminho, uma boa chave-mestra para as portas adiante talvez fosse: "quem sou?"

Repito: bom demais "revê-lo"